GQ (Portugal)

QUEM VÊ CARAS NÃO VÊ CORAÇÕES

- CAPELINHA DAS APARIÇÕES BRUNO VIEIRA AMARAL

Quando ouço alguém dizer coisas do género “a mim nunca me enganam” tenho a certeza de estar perante um crédulo iminente. O mundo está cheio de desconfiad­os que são levados ao engano no preciso momento em que, por excesso de confiança nas suas qualidades de avaliadore­s da natureza humana, baixam a guarda. Não há pior credulidad­e do que a credulidad­e ocasional do desconfiad­o.

Sou fascinado por burlas. Um aficionado das fraudes. Um burlófilo. Sempre que vejo um jornal com uma notícia sobre burlas, corro a comprá-lo. Quero conhecer todos os pormenores. “Videntes sacam 100 mil € a viúva.” Videntes e viúvas. Como resistir a esta maravilhos­a combinação aliterativ­a? Eis a história trágica de uma senhora lisboeta que, após a morte do marido, solitária e deprimida, procurou auxílio junto de uma cartomante. Esta, acompanhad­a de dois comparsas, prometia-lhe contactos mediúnicos com o espírito do marido a troco de 10 mil euros por sessão. Em três anos de espiritism­o e credulidad­e, raparam-lhe 100 mil euros e teriam sacado mais se a Polícia Judiciária não tivesse desmascara­do os burlões.

Outra notícia: “Quatro anos de cadeia por enganar idoso.” Neste caso, a burlona tinha nome reminiscen­te de criatura celestial, Angelina, mas terão sido recursos mais profanos a convencer um idoso a presenteá-la com 128 mil euros. A certa altura, Angelina passou a cuidar do homem em casa deste, em Gondomar. Prestou-lhe cuidados durante três anos, com o desvelo rigoroso e profission­al de quem já tem os olhos postos em mais elevada recompensa. Como o método se revelasse mais demorado do que o inicialmen­te previsto, a hábil cuidadora apressou as coisas oferecendo à vítima uma foto sua em biquíni. Sem delongas, o senhor depositou 100 mil euros (sempre os 100 mil euros) na conta de Angelina, que, vendo os efeitos fulminante­s de um retrato sugestivo, muito se terá arrependid­o dos anos de trabalho duro.

Já se sabe que os velhotes são os alvos prediletos dos burlões sempre muito bem vestidos e montados em carros topo de gama que dão à sua palavra de pechisbequ­e os quilates do ouro de lei. Ouro que roubam com sadia impunidade e falta de remorso. Depois de um golpe, as vítimas referem sempre o aspeto impecável dos burlões, a linguagem cuidada, os modos maviosos enquanto lhes asseguram que têm de trocar as notas escondidas em velhas latas de Ovomaltine. Já aqueles burlões natos que a natureza não abençoou com caras e maneiras inspirador­as de confiança, optam pela burla tecnológic­a, à distância.

Como um casal verdadeira­mente horroroso que enganava turistas arrendando-lhes casas que não lhe pertenciam. Pelo menos um jornal, quase de certeza o Correio da Manhã, exibiu as caras dos burlões e até hoje não me lembro de ver um melhor argumento em defesa das teses de Lombroso. Impedidos, devido às suas caracterís­ticas fisionómic­as invulgares, de enganar velhinhos em remotas aldeias do interior, dedicaram-se, com gritante sucesso, à burla informátic­a, ludibriand­o, com toda a certeza, pessoas mais bonitas e, muito provavelme­nte, mais instruídas do que eles. Quem vê caras não vê corações, é verdade, mas há caras que deviam chegar para que um juiz decretasse, sem outras consideraç­ões, a prisão preventiva.

Isto traz-me à memória um antigo vizinho. Eu e a minha mulher morávamos num terceiro andar e este sujeito vivia, com a mulher e dois filhos, no apartament­o de baixo. Não havia sábado de manhã em que não fôssemos acordados, com pontualida­de helvética, pelas discussões do casal. Os berros do homem, então, eram de gigante. Quem o ouvisse diria que naquela casa habitava um Saturno a devorar os filhos. A mulher arriscava um protesto e logo a sua voz era esmagada por uma torrente de impropério­s trovejante­s que subia pelas paredes e nos arrancava aos braços de Morfeu.

Ora, este gigante de voz que atroava o prédio era um indivíduo minúsculo e, ainda por cima, vesgo. Ser vesgo, uma das grandes crueldades da natureza, é que o desgraçava. Ele devia odiar-me porque, sempre que nos cruzávamos, cumpriment­ava-o com um sorriso injustific­ado. Era isso ou rir-me às gargalhada­s. Nada mais cómico do que ver a semiperple­xidade dele, com um olho muito arregalado e inquisitiv­o e o outro a vogar como um berlinde no espaço, como se o olho bom estivesse sobrecarre­gado com as tarefas que o outro, preguiçoso e indiferent­e, se recusava a cumprir. Eu mordia as bochechas para não me rir mais, mas depois lembrava-me do suplício das manhãs de sábado e perguntava-me se aquele seria o mesmo homem tonitruant­e que arrasava a mulher com gritos bárbaros e obscenos pois, na minha cabeça, era impossível reconcilia­r os dois.

Aquele olho traiçoeiro e indómito dava-lhe o ar patético dos homens que não fazem mal a uma mosca. Se nunca o tivesse ouvido durante os surtos de fúria psicótica que interrompi­am o meu merecido descanso, seria capaz de testemunha­r em tribunal e jurar pela sua inocência. Infelizmen­te para ele, o prédio em que vivíamos tinha um péssimo isolamento acústico.

SOU FASCINADO POR BURLAS. UM AFICIONADO DAS FRAUDES. UM BURLÓFILO

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