GQ (Portugal)

CONHEÇA O ELVIS DAS MILHAS AÉREAS

- MAN THINGS TONY PARSONS

Quando a pessoa que voa com mais frequência em todo o mundo se oferece para dar dicas de viagem, é bom que a ouçamos. Tom Stuker – um veterano que já acumulou mais de 10 mil voos e 21 milhões de milhas aéreas, o equivalent­e a dar 844 voltas ao Equador – sabe mais sobre a boa vida a 35 mil pés de altitude do que qualquer outra pessoa.

No mundo das viagens aéreas executivas, Tom Stuker é o Elvis Presley – o ne plus ultra. Com 65 anos, este homem originário de Nutley, New Jersey, cofundador da empresa de consultori­a automóvel Automotive Training Network, passa 200 a 250 dias por ano no ar. A sua companhia aérea de eleição – a United Airlines – gosta tanto dele que dá festas em sua homenagem: organizou dois bailes para comemorar o facto de ele ter atingido 20 milhões de milhas aéreas, um acima das nuvens e outro no solo. Atualmente semirrefor­mado, Stuker está a somar milhas aéreas mais depressa do que nunca, porque não há nada que ele mais adore do que voar para bem longe.

Stuker sugere uma relação monogâmica com uma única companhia aérea. A dele tem sido com o programa de fidelizaçã­o do Mileage Plus da United Airlines e já dura desde 1983. Aquelas milhas aéreas foram todas voadas com a United.

As dicas de voo de Stuker incentivam a tratar com cordialida­de o pessoal de bordo e os outros passageiro­s. As outras são contraintu­itivas – esqueça aquela história de se adaptar ao horário local assim que aterra. Ele faz sempre uma sesta de três horas ao chegar (as viagens de longo curso são o habitat natural de Tom – já fez 350 viagens entre os EUA e a Austrália e 100 dos EUA para Londres). Tendo crescido numa família de classe operária em New

Jersey, Stuker era um de sete filhos e nunca voara antes de atingir a idade adulta. Quando era jovem, foi avançando lentamente da “turística” – o hediondo eufemismo americano para o transporte de gado – para a parte da frente do avião, admitindo que nunca teria acumulado 21 milhões de milhas aéreas se tivesse sido obrigado a fazê-lo em económica. “Estaria hospitaliz­ado.”

Contudo, as maiores dicas de Stuker permanecem por divulgar. E mesmo nesta era de ecoguerrei­ros que envergonha­m as pessoas que viajam de avião, pilotos de drones, normas de segurança pós-11 de Setembro e greves de pilotos, voar continua a ser divertido. É uma das grandes alegrias da vida. Voar é romântico, glamoroso e uma das melhores coisas desta curta e deliciosa viagem. Estar bem instalado num voo de longo curso enquanto saltamos de um lado do planeta para o outro é afastarmo-nos – física, mental e espiritual­mente – do banal, da monotonia, do cansaço do dia a dia. Voar é uma alegria transcende­nte e meditativa.

“As nuvens emanam tranquilid­ade”, escreveu Alain de Botton em The Art of

Travel. “Lá em baixo estão os inimigos e os colegas, os sítios dos nossos terrores e angústias, todos transforma­dos em riscos infinitesi­mais na terra.” Na claustrofo­bia digital da vida contemporâ­nea estar bem instalado acima das nuvens é uma experiênci­a gloriosa de solidão. “Um avião a jato está isolado, separado e fisicament­e distante durante um certo número de milhas e horas”, escreveu Mark Vanhoenack­er no seu clássico livro de memórias Skyfaring, A Journey With a Pilot.

Voar é, com efeito, muito mais do que divertido. É viciante. “O objetivo são as milhas”, diz o dispensado­r (ele despede pessoas) de George Clooney em Nas Nuvens, a carta de amor de Jason Reitman às viagens de avião em executiva. “Tenho um número em mente e ainda não o atingi.” O número que a personagem de Clooney, Ryan Bingham, tem em mente é 10 milhões de milhas aéreas. “Eu seria a sétima pessoa a fazê-lo”, suspira. “Já houve mais pessoas sobre a Lua.”

No esquema hollywoode­sco das coisas, Bingham acabaria por descobrir os erros do seu modo de vida e aprender a amar, ligar-se a outros seres humanos e essas coisas todas. No entanto, enquanto voa rumo ao pôr do sol no fim de Nas Nuvens,a voz de Clooney não transmite qualquer arrependim­ento em relação ao facto de estar obcecado com aquelas sexy milhas aéreas. “Esta noite, a maioria das pessoas serão recebidas em casa por cães aos saltos e miúdos aos berros”, diz ele. “Vão dormir. As estrelas vão sair dos seus esconderij­os diurnos. E uma dessas luzes, ligeiramen­te mais brilhante do que as outras, será a ponta da minha asa, a passar.”

Há quem considere homens como Stuker e Bingham assassinos do nosso planeta, egoístas que desvaloriz­am as alterações climáticas, o aqueciment­o global e a pegada de carbono. Stuker insiste que tem a consciênci­a limpa. “Não estou a contribuir para a pegada”, diz. “O avião vai voar comigo ou sem mim. Seria muito mais relevante se eu voasse num avião privado. Essas pessoas podem ajudar muito mais o ambiente do que eu se voarem em aviões comerciais.”

Há vícios piores do que acumular milhas aéreas. E quando espreitamo­s pela janela dupla de um lugar de primeira classe num Airbus da British Airways, ligeiramen­te embriagado­s e com o segundo copo na mão, poderemos ter dificuldad­es em imaginar alguma coisa melhor.

VOAR É, COM EFEITO, MUITO MAIS DO QUE DIVERTIDO. É VICIANTE

Omais difícil de pintar são as mãos. É o que dizem. Eu mal consigo riscar a direito para sublinhar uma frase, então não sei. Quem costuma falar destas coisas são aqueles que realmente desenham, eles é que geralmente em conversas de café depois de um dia de trabalho costumam soltar o desabafo: difícil é pintar as mãos. Seja como for, nem faz falta que ouçamos os colegas pintores. Basta que qualquer um de nós, num dia mais afoito, se aventure de lápis em riste e se disponha a copiar numa folha a própria mão. Parece tão fácil. Não é. Mas a verdade é que quando nos sentamos à mesa para nos dedicarmos à brincadeir­a, quase todos imaginamos que não será trabalhoso o desenho. Afinal, estamos acostumado­s às mãos. Foram a nossa maior arma desde o começo e ao mesmo tempo a defesa. Foi com elas que conseguimo­s segurar o biberão pela primeira vez, achando assim que sabíamos comer sozinhos. Foi com elas que arrastámos o corpo pelos corredores quando ainda só sabíamos gatinhar e mais tarde foi por elas que pudemos segurar-nos à estante para arriscar começar a caminhar. Foi com as mãos que levámos a primeira fruta rija à boca. E depois foi com as mesmas mãos que passámos um dedo sobre a página, pedindo ajuda a essa linha invisível para aprender a ler. Com uma das mãos, começámos a escrever. Com a outra mão coçámos a cabeça, tal era a dificuldad­e. Com as duas mãos no chão demos a primeira cambalhota, com elas juntas batemos palmas, com as duas separadas segurámos o primeiro caixote de mudanças para a casa onde havíamos de morar sozinhos. As mãos estão tão presentes, desde sempre, que deveriam ser bem mais fáceis de desenhar do que uma casa, um sol, ou do que um boneco daqueles que qualquer de nós consegue fazer só com dois pauzinhos e uma bola. Mas não. As mãos são o mais difícil de desenhar.

Um destes dias fui passear na Gulbenkian. É lá que está a minha biblioteca preferida de Lisboa, e também o melhor jardim. É também lá que está a Coleção do Fundador, onde as centenas de peças que Calouste reuniu em vida estão agora à vista de todos. Arte Egípcia, Greco-Romana, da Mesopotâmi­a, do Oriente Islâmico, pinturas de Turner, esculturas de Rodin – está tudo ali, de frente para o jardim. Uma pessoa pode andar pelos corredores um dia inteiro e fixar-se só na arquitetur­a do edifício. Ou então nas histórias que brotam das peças que vêm de tantos lugares. Ou só nos rostos esculpidos e desenhados, quem sabe até apenas nos olhos deles. Eu, nesse dia, resolvi fixar-me só nas mãos. Numa pintura de Rembrandt, um velho segura com as duas mãos o cajado que o guiará até à morte. Numa outra de Mary Cassat, uma mãe usa as mesmas duas mãos para enfiar a meia no pé da filha pequena. Num quadro que representa a Anunciação, Maria leva a mão ao peito em sinal de susto e consentime­nto. Numa tapeçaria italiana um cupido enfia a mão na cabeça de outro cupido, puxando-lhe os cabelos. Num baixo relevo assírio, um génio alado segura com

ASSIM COMO NENHUM GESTO É IGUAL AO ANTERIOR, NENHUMA MÃO É IGUAL À SEGUINTE

a mão esquerda um balde de água sagrada. E numa escultura alta, junto à janela, está a deusa Diana a segurar com a mão direita a flecha. Nos corredores da galeria, para onde quer que se olhe, mãos performati­vas encarregam-se das mais diversas tarefas. Apontam, afagam, iluminam e até corrompem. Seguram. Afastam breus e vão buscá-los a seu bel-prazer. Cada uma à sua maneira, cada uma no seu tempo.

Não é fácil pintar as mãos. Observando uma arte mais antiga, e recuperand­o ainda aquela época em que eu passava a caneta em volta da mão para assim a reproduzir na folha, entendo: as mãos, como os seus donos, têm humores. Nalguns dias despertam-se inchadas de calor, noutros dias adormecem apertadas em dois punhos fechados. Noutros dias ainda surgem leves como penas. Para além disso, entre carpos e metacarpos, cada mão é um sem-fim de ossinhos. Uma mão não se repete. O mesmo acontece com os gestos que elas executam: assim como nenhum gesto é igual ao anterior, nenhuma mão é igual à seguinte. Talvez o certo seja mesmo não desejar fixá-las e aproveitar a bênção de um movimento livre, sem regras, capaz de levar um homem a levantar-se, capaz de segurar um gelado no verão. A mão, sendo praticamen­te impossível de desenhar, é o membro mais fiel que possuímos. Em tempos de dúvida, a mão é o tesouro. Pessoal, irrepetíve­l, mas felizmente muito transmissí­vel. É bom poder observar as tentativas bem-sucedidas de reprodução das mãos. Mas melhor ainda é fazer uso delas, cada dia de uma forma diferente.

Acabo de escrever e, em paz, em vez de desenhar as mãos eu toco com elas o rosto de quem amo. Nessa folha viva, vejo tudo em nitidez.

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