O MEU CÃO
No dia 23 de janeiro a minha cadela fez 6 anos. Fui buscá-la à sua ninhada, perto de Estremoz, passado pouco mais de dois meses e hoje, quase seis anos mais tarde, aqui estou a assinalar-lhe o aniversário e na iminência de escrever um texto lamechas ao mesmo tempo que tento evitá-lo.
No caminho de regresso a Lisboa ela veio sobre uma manta ao meu colo, minúscula e aninhada. De vez em quando eu assobiava-lhe baixinho – desde esse dia que uso o mesmo assobio, que é, já agora, o que usamos num grupo específico de amigos (assim, se eles andarem por perto, ela vai inevitavelmente ouvi-los) – e ela levantava a cabeça, ficava a olhar para mim, curiosa. Nunca pareceu assustada ou intimidada. Pelo contrário, foi confiante desde o nosso primeiro contacto – saltou-me para os pés e atacou-me selvaticamente os atacadores como se estraçalhasse um animal acabado de caçar. Lembro-me de ter pensado “só pode ser esta”, e era mesmo.
A decisão de adotar Lolita Josefina, também conhecida em publicações nas redes sociais pelo nome meio palerma de “Lolis Regina”, foi das mais impulsivas que tomei na vida. Estava desempregado e soube que havia, lá em Estremoz, uma ninhada de fox terriers acabadinha de nascer. Disse à minha companheira “em março, vamos ao Alentejo buscar uma cachorra” e ela respondeu-me “está bem” – só depois é que me perguntou se eu tinha mesmo a certeza de que isso era uma boa ideia. Eu disse-lhe que sim, que, estando desocupado e sem horários, era importante para mim introduzir uma rotina nos meus dias, mas uma que não me deixasse escapar, por um lado, e que me desse gozo e motivação, por outro.
A escolha da Lolita foi bastante óbvia. O fox terrier é o cão dos meus sonhos desde que eu era miúdo, não sei se por influência do Milu de Tintim – duvido, que eu nem gosto especialmente do Tintim – ou apenas porque são os cães mais bonitos e brilhantes que alguma vez existiram. Antes de ir buscá-la, estudei profundamente as características da raça, li conselhos de criadores, de cinófilos e de educadores, estudei técnicas e tentei aplicá-las. Não fui bem-sucedido em toda a linha (trincou a própria cauda quando tinha apenas 8 meses; noutra ocasião, atirou-se do muro da Costa de Caparica tentando voar atrás de uns pombos; doutra vez ainda comeu meia dúzia de comprimidos de paracetamol, o que a deixou substancialmente drogada), mas o animal está vivo, é saudável e parece sentir-se feliz.
Penso agora sobre o nome alternativo, Lolis, e acredito que nenhum dono consiga chamar sempre o seu animal pelo nome correto, aquele que foi decidido na hora de adotá-lo e que ficou registado no veterinário. Parece-me absolutamente impossível. Além de Lolis Regina, chamo-lhe imensas outras coisas, algumas delas tão simples como Bu ou, em dias de preguiça, Cão. “Anda cá, Cão”, e ela vem, toda contente. Acho que ela viria mesmo que eu lhe chamasse Aníbal ou Clotilde ou Pau ou Pedra. Os cães têm esta coisa fascinante de entenderem perfeitamente o que lhes estamos a dizer sem perceberem uma palavra do que dizemos. Este fenómeno resulta da combinação entre a minha entoação e a intuição dela.
Posso afirmar que a Lola – também lhe chamo assim – me salvou. A afirmação poderá conter algum exagero, porém existem muitas maneiras de se ser salvo. Uma delas é ter-se a ajuda de alguém para preencher um vazio e criar um desafio. A Lolis cumpriu essa função com tanta distinção quanto naturalidade. Tudo o que teve de fazer foi existir, ser apenas uma cachorra meio endiabrada e a precisar de alguém que cuidasse dela e a educasse, com método, com horários, com paciência, mesmo que às vezes surgisse alguma frustração – mas é muito diferente a frustração que se sente porque educar um cachorro leva o seu tempo da frustração que eu senti, um ano antes, quando me ligaram a dizer “Diego, vais ficar sem trabalho”, ou da outra que se sente quando se espera, e espera, e espera, e as propostas e as respostas não nos chegam, a vida não muda, o trabalho não surge, o dinheiro desaparece, o mundo se complica, a realidade se turva, a esperança se esvai.
Ao longo destes seis anos, a minha vida mudou. Não só por ter adotado Lolis Regina, mas também por causa dela. A vida com cão não é igual à vida sem cão, há uma dimensão que se acrescenta à nossa existência e que a afasta um pouco mais do autocentrismo. Os dias passaram a incluir a responsabilidade de levar Lola a passear, de a mimar, de brincar com ela – ela é ótima a jogar às escondidas –, de a manter razoavelmente limpa (até porque anda em casa, sobe às camas e aos sofás como se fosse tudo dela), de a alimentar na dose certa e com a ração indicada. As férias de verão passaram a obedecer a planos estratégicos que excluem as viagens de avião – recuso-me a enviá-la para o porão e não a imagino sossegada na cabine. Os fins de semana devem contemplar o seu “tempo de conforto”, que consiste em passeios longos e brincadeiras demoradas – o sexto sentido de Lolis Regina fá-la perceber que, se os dois donos estão em casa, então é porque é dia de passeio e escusamos de tentar sair de casa sem a levar connosco, simplesmente não vai resultar: vai fazer aqueles incríveis olhinhos de cachorro desamparado, uma coisa excruciante, capaz de causar no coração humano uma dor profunda e um aperto que mais parece um torniquete. Suponho que seja amor.
A VIDA COM CÃO NÃO É IGUAL À VIDA SEM CÃO, HÁ UMA DIMENSÃO QUE SE ACRESCENTA À NOSSA EXISTÊNCIA
Quando uma invenção consegue alterar o padrão estabelecido, torna-se um novo padrão. Pelo menos durante 24 horas. Em inglês, a língua franca do nosso tempo, esta afirmação é mais precisa: “The disrupter becomes the establishment.” Não é um fenómeno novo, mas antes uma situação constante, que ocorre ciclicamente. A diferença entre ontem e hoje é a velocidade a que ocorre. Por exemplo: quando o telefone começou a ter uma utilização corrente, substituiu o telegrama. Na década de 1920, em Nova Iorque, as pessoas mandavam telegramas a avisar o destinatário que iam telefonar no dia seguinte. (Ao ler Henry Miller, a descrever o seu trabalho na Western Telegraph, na década de 1920, a situação parece-nos surreal.) Rapidamente o telefone disruptor substitui o telegrama estabelecido, que lentamente passou à história: hoje já não existe e seria difícil explicar aos nossos filhos o que era. O telefone fixo, a invenção que fez desaparecer o telegrama, deu lugar ao perturbador telemóvel, logo melhorado para o smartphone, que além de telefonar substituiu o computador na transmissão de outra tecnologia, o email. Em 2019, havia 2,9 mil milhões de contas de email. Mas já há quem prefira comunicar pelo Messenger, ou o WhatsApp, que permitem escrever e/ou falar, com ou sem imagem.
A mudança de tecnologias, que sempre ocorreu desde que se descobriu o que eram – o termo “tecnologia” é da década de 30 –, passou a acelerar desde o princípio da Revolução Industrial e dá-se a um ritmo exponencial, como referimos nesta coluna há cerca de dois meses. Contudo, o que dissemos há dois meses já está ultrapassado. Os miúdos nascidos em 1920 conheceram o telefone fixo a vida toda. Os miúdos de 2020 não sabem discar num telefone fixo nem conhecem o telegrama, que era a forma de comunicação corriqueira duas gerações atrás.
Está em dificuldades para acompanhar esta espiral? Tenha cuidado, se não torna-se um desajustado ao tempo de hoje. Se ainda se lembra de quando tinha três canais de televisão por escassas horas diárias, não deixará de ficar perplexo perante as centenas de canais em emissão contínua. A televisão emitida a partir de estúdio, sempre em directo, foi o grande disruptor da informação na década de 50. Pensava-se que ia substituir o estabelecido rádio. (Não aconteceu, porque o rádio permite ouvir nas alturas em que não se pode ver.) Mas essa televisão original, completamente estabelecida no fim do século XX, encontrou o disruptor dentro de si própria: a emissão on demand, em que o espectador vê o que quer ver, sem ter de se limitar às programações dos canais. E também pode simultaneamente, no mesmo ecrã, mandar mensagens aos amigos sobre o que está a ver.
Um estudo da IBM – uma companhia que também foi ultrapassada pela sua própria inovação – mostra que a cadência a que uma nova tecnologia substitui a precedente está a acelerar exponencialmente. O inventor Raymond Kurzweil, entre outros académicos, calcula que o tempo entre descobertas ou invenções fracturantes está a diminuir com uma rapidez vertiginosa. Essa evolução faz surgir novas empresas, antes que as empresas novas de ontem tenham tempo de se actualizar.
O jornalista da Bloomberg Conor Sen relata como, a partir de 2010, a Internet começou a destruir vários sectores tradicionais, desde a imprensa à venda por retalho – também os centros comerciais e mesmo as grandes cadeias de lojas – para não falar nos pequenos comerciantes – foram esmorecendo, perante o crescimento da publicidade digital e das compras online. O Macy’s, que era a maior cadeia de lojas do mundo e vendia tudo por catálogo, desde casas a agulhas, entrou em falência em 2019, enquanto o seu equivalente digital, a Amazon, se tornou o maior vendedor online. No seu tempo, isto é, no fim do século XIX, o Macy’s foi um disruptor. Uma vez estabelecido, foi derrubado por um novo disruptor, a Amazon.
Do mesmo modo, o FaceBook liquidou os blogues, que surgiram há apenas 22 anos. O termo weblog é de 1997. Em 1999 existiam 23 blogues – um nicho para entendidos. Em 2006 eram 50 milhões. Metade da população dos Estados Unidos lia blogues diariamente. A partir daí, começou uma queda vertiginosa. O ano passado, o Facebook tinha 2,5 mil milhões de contas activas, enquanto os blogues não passavam de 500 milhões.
Pergunte ao seu filho se leu algum blogue nos últimos seis meses. Melhor: pergunte-lhe se acede regularmente ao Facebook. Agora, hoje, se ele for jovem, o mais certo é dizer-lhe que o FB é para velhos. Ele e mais mil milhões usam o Instagram (dados de 25 de Janeiro de 2020).
Posto isto, a grande pergunta é: quem são os perturbadores que estão a deitar abaixo os actuais estabelecidos? A resposta hoje será uma, daqui a 30 dias já será outra.
Como disse a grande filósofa Mae West: “Apertem os cintos que a viagem vai ser acidentada!”l
A INTERNET COMEÇOU A DESTRUIR VÁRIOS SECTORES TRADICIONAIS, DESDE A IMPRENSA À VENDA POR RETALHO