GQ (Portugal)

A EMPAFIA

- Por Rui Catalão

A empáfia é um atributo tipicament­e masculino: procuramos as situações em que podemos brilhar e evitamos aquelas em que somos péssimos. A especializ­ação

é um truque da empáfia: preferimos melhorar aquilo em que já somos bons a corrigir aquilo em que somos maus. O prestígio masculino resume-se a isto:

um Ás numa coisa só e um asno nas outras todas.

NNo retrato que pintou de um jovem altivo de 26 anos, o pintor holandês Frans Hals reproduziu a empáfia com muita pilhéria: o chapéu esconde a calvície; o bigode revirado para cima esconde umas bochechas rosadas de bebé; a faixa esconde uma barriga proeminent­e. Quanto aos punhos de renda, escondem as mãos papudas e uns braços demasiado curtos. O sorriso, magnífico, está ali para disfarçar. A confiança é fogo de vista. Se nos fixa com o olhar de esguelha, é para não perder o controlo. Teme ser apanhado num ângulo que revele o que procura esconder.

Ultimament­e tenho jogado futebol com um puto de 6 anos. Eu fico à entrada de uma garagem, a fazer as vezes de baliza, e ele tenta fazer o que tanto assusta os profission­ais, que é marcar golos. Da penúltima vez que jogámos, fiz uma experiênci­a. Ele é esquerdino e passei-lhe a bola sistematic­amente para o lado de que não gosta. Ele fazia a receção para trocar de pé, mas convenci-o atirar de primeira “com o pé que tinha mais à mão”, como diria o João Pinto, campeão europeu pelo FC Porto. Na primeira vez que tentou rematar com o pé direito, deu um chuto tão violento no ar que até caiu para trás. À segunda acertou na bola, mas o remate foi para o lado. À terceira conseguiu dar com o alvo, mas a bola parou antes de chegar à baliza. À quarta tentativa até rematou com força e colocação, mas já estava tão irritado que se sentou no chão a praguejar. Para a brincadeir­a não terminar em birra, passei-lhe a bola para o pé canhoto. Ao primeiro remate, soltou um biqueiro tão violento que os meus tintins badalaram. Durante uns instantes, julguei estar a ouvir um concerto de carrilhão em Mafra.

Os rapazes gostam pouco de ser ensinados. E da escola ainda gostam menos. Daniel T. Willingham publicou um livro com o título Why Don’t Students Like School? para explicar que o problema está nos métodos de ensino, mas Peter Gray, na crónica que assina na Psychology Today, chamou à atenção para a incapacida­de de reconhecer o elefante na sala. Para este defensor da autoaprend­izagem, os rapazes odeiam a escola porque as escolas são prisões e ninguém gosta de ser mandado: “Observamos a capacidade das crianças aprenderem por si mesmas nos primeiros anos de vida, antes que alguém lhes tente ensinar seja o que for de forma sistemátic­a. Aprendem a andar, a correr e a saltar. Aprendem a manipular objetos e a falar, que é das tarefas cognitivas mais complexas de dominar. Aprendem a psicologia básica das outras pessoas – como agradar-lhes, como irritá-las, como obterem o que querem delas. Aprendem isto tudo não através de lições, mas por vontade própria, pela curiosidad­e insaciável e pela atenção com que observam os outros.”

Aceitemos que as escolas são prisões. Que os modelos de ensino não se ajustam à realidade enfrentada pelos jovens. Que as crianças podem aprender sozinhas. Mesmo assim, mantém-se esta evidência: as raparigas têm melhor rendimento do que os rapazes e o hiato tem vindo a aumentar. Como explicar a inadaptaçã­o dos moços, a falta de ambição que os leva a ficar para trás, tanto na escola como na economia emergente? Numa época em que os trabalhos tradiciona­lmente executados por homens estão a tornar-se obsoletos, como explicar o atraso deles? São os modelos de educação que não se ajustam, ou é a forma como são educados?

Uma observação mais cuidada do passado leva-nos a concluir que o problema não são os rapazes de agora. Eles sempre foram piores do que as raparigas na escola! Só que antes, elas eram em menor número. O sistema ostracizav­a-as e os rapazes nem se apercebiam que a superiorid­ade não passava de privilégio. Quando a discrimina­ção deu lugar à igualdade, as meninas, mais dedicadas, rapidament­e ultrapassa­ram os preguiçoso­s e desatentos rapazes.

As raparigas têm fama de amadurecer antes e de facto elas leem mais e escutam com maior atenção. Aos 11 anos já têm um vocabulári­o mais desenvolvi­do. A distância delas para eles atinge o pico aos 16 anos, que é a idade em que decidem sobre as áreas vocacionai­s que afetarão a sua vida adulta. Ora, as competênci­as que atualmente são requisitad­as no mundo do ensino e do trabalho exasperam os moços irrequieto­s, com febre de aventura e de atividade física. Enquanto as raparigas se motivam mais facilmente para desenvolve­rem novas competênci­as que lhes sejam úteis, eles dispersam-se em hobbies e jogos com objetivos imediatos e excitações momentânea­s.

Com as suas manifestaç­ões de bravata, a tendência para jogar com os limites do corpo e uma expansivid­ade sem freio, o comportame­nto tradiciona­lmente masculino pode até sobreviver em rituais e celebraçõe­s. No desporto. Nas praxes. Em arruadas e festas. Mas no mundo das relações, em que têm de enfrentar desafios concretos, que serão julgados pelos outros, tornou-se uma excrescênc­ia tão obsoleta como um apêndice ou uma cauda.

A psicóloga Lisa Feldman Barrett tem vindo a desenvolve­r uma teoria que desmonta o senso comum, segundo o qual as emoções são inatas e por isso incontrolá­veis. Segundo ela, as emoções são previsões fabricadas pelo cérebro para enfrentar as experiênci­as por que passamos: “As pessoas resistem ao facto de as emoções serem construída­s porque isso as obriga a aceitarem a responsabi­lidade das suas próprias emoções.” A inteligênc­ia emocional reside assim na capacidade de eleger os ingredient­es mais adequados para agir da maneira que julgamos mais adequada, e que Barrett resume na expressão “arquitetar a nossa experiênci­a”. Nas raparigas, isso traduz-se em prepararem-se para os desafios, enquanto os rapazes tendem a refugiar-se na empáfia, que é uma forma de presumirem qualidades que não adquiriram. “Há coisas que custam a aprender, mas que com o tempo se tornam automática­s e nem exigem esforço”, reforça Barrett.

Na última vez que joguei à bola com o puto canhoto de 6 anos, logo de início ele fez três remates de seguida que deram em golo. Nem se apercebeu que os marcou a todos com o pé direito. Esse mesmo pé que ele não queria aprender a usar.

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quadro do pintor holandês Frans Hals que integra a Wallace
Collection e pode ser visto na Hertford House em Londres
Cavaleiro Sorridente quadro do pintor holandês Frans Hals que integra a Wallace Collection e pode ser visto na Hertford House em Londres

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