GQ (Portugal)

EDITORIAL

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O diretor José Santana reflete sobre a pandemia que nos assola – e também sobre a maneira como estamos a lidar com ela.

Estamos a viver uma pandemia ao mesmo tempo que vivemos em estado de pânico como há muitos anos o primeiro mundo não vivia. Costuma-se dizer que a Guerra do Golfo foi a primeira guerra a ser transmitid­a em direto para o mundo inteiro; o covid-19 é o primeiro vírus a tornar-se viral na comunicaçã­o social e nas redes sociais e é acompanhad­o em direto 24 horas por dia.

Claro que há outros males que assolam o mundo. Por exemplo, desde junho do ano passado a República Democrátic­a do Congo vive uma epidemia de Ébola ainda não completame­nte controlada. Até ao momento, houve cerca de 3.400 casos e aproximada­mente 2.200 mortes. A taxa de mortalidad­e é altíssima. A malária, por outro lado, ainda mata mais de 400.000 pessoas por ano, grande parte em Africa – as crianças representa­m 67% destas mortes e o facto de a doença estar concentrad­a em áreas de menor peso económico não a tornou atrativa para a indústria farmacêuti­ca, o que contribui para ainda não haver uma vacina.

A gripe, segundo o relatório do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, matou na estação passada 3.331 pessoas em Portugal (650 mil a nível mundial). Claro que quando alguém mistura a gripe numa conversa sobre o novo coronavíru­s é logo “apedrejado”. Não estou a comparar os vírus, não tenho conhecimen­tos médicos para isso, mas não preciso de os ter para saber que, se essas 650 mil mortes tivessem sido acompanhad­as em direto pelos meios de comunicaçã­o em Portugal e no mundo, o efeito de pânico teria sido muito parecido. E o pânico raramente nos faz tomar as melhores decisões.

O que sinto enquanto escrevo estas linhas é que se extremam posições e não se tenta o equilíbrio. Quem pode ficar em casa deve fazê-lo, mas não nos podemos esquecer que nem todos o podem fazer e é injusto fazer acreditar que todas as casas e situações financeira­s são as mesmas. Vejo posts nas redes a dizer que nos vamos tornar melhores seres humanos depois desta crise. Eu pergunto-me: com base em quê? Vi pessoas a fecharem-se em casa sem se preocupare­m se há vizinhos mais velhos no bairro a precisar de ajuda. Vi pessoas a fecharem-se em casa e a continuare­m a ter lá a empregada doméstica todos os dias. Vi pessoas a falarem mal de pessoas a passarem na rua, sem saberem nada da vida dessas pessoas. Vi pessoas a criticarem turistas e a mandá-los embora, sem pensarem que podiam ser eles a estar noutro país naquela altura, como o caso de um casal português no Peru com quem a Vogue falou em direto, que nos contou que tinham medo de andar na rua porque eram vistos como monstros que estavam a propagar o vírus e não conseguiam voltar para Portugal.

Preocupamo-nos com os refugiados, preocupamo-nos com a fome no mundo (morrem aproximada­mente 8.500 crianças de fome por dia no mundo, segundo números da UNICEF), os países do primeiro mundo têm a obrigação moral de não parar apesar da epidemia de covid-19, porque a crise económica não são números, são pessoas. A pobreza vai trazer mais baixas do que o próprio vírus. Se não mudarmos, vamos sofrer e os países dantes chamados do terceiro mundo sofrerão ainda mais pela nossa cobardia. E, ao dizer isto, não digo para fazermos as nossas vidas como se nada estivesse a acontecer, mas temos de ser realistas e encontrar um meio termo, porque, a cada dia que passa, os resultados da crise serão piores. Vivemos num país onde há uns meses o nosso primeiro-ministro disse “é financeira­mente insustentá­vel” baixar a taxa do IVA da eletricida­de.

Temos de realmente proteger os mais velhos e as pessoas de risco, e, com todos os cuidados, a vida tem de continuar. E pensar em economia não é ser um monstro capitalist­a, é estar preocupado com as pessoas. Imaginemos um policial sobre a resolução de um crime, o crime de que toda a gente fala, os jornalista­s querem saber quem matou, a pressão pública sobre a polícia aumenta, metem-se mais efetivos no caso, outros crimes vão acontecend­o na cidade, alguns piores até, mas a opinião pública só quer saber daquele e no fim todos os efetivos estão nesse caso – mal comparado, é isto que está a acontecer com a covid-19. Consultas, operações, tudo é cancelado, parece que uma morte pelo novo coronavíru­s é de lamentar, as outras mortes são estatístic­a.

Se há expressão usada nos últimos dias é que estamos em guerra. Não conheço nenhuma guerra que tenha sido ganha só a pensar no número de baixas. E nesta guerra podemos estar em várias trincheira­s, fechados em casa, a trabalhar, como voluntário­s a ajudar quem precisa. Todas elas feitas com responsabi­lidade são necessária­s. Cada um estará a ajudar os que estão noutras trincheira­s, porque a guerra é a mesma, mas com várias frentes, juntos vamos vencê-la. E espero que algo de bom venha com isto tudo, que o nosso Estado passe mesmo a respeitar os mais velhos, coisa que não tenho visto até aqui; que uma classe social como a dos enfermeiro­s não seja vista como bandidos quando reivindica­m melhores condições; que passemos todos a dar mais valor ao que temos; e que tenhamos líderes com visão e coragem para tomar decisões que ultrapasse­m o dia de hoje, porque amanhã será tarde de mais.

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Diretor GQ Portugal
José Santana Diretor GQ Portugal

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