GQ (Portugal)

O HERÓI IMAGINÁRIO

Quando um adulto acorda com medo, adormece nele um herói infantil. Mas as manifestaç­ões de coragem à custa da segurança alheia são prova de tirania.

- Por Rui Catalão.

Géricault dedicou a sua curta vida a pintar um só tema: o da impotência perante a catástrofe. O seu quadro mais famoso, A Balsa da Medusa (uma tela colossal com sete metros de largura e cinco de altura) alude a uma das histórias mais vergonhosa­s de governação e ao perigo de recompensa­r politicame­nte com cargos de responsabi­lidade gente sem competênci­a.

Apesar de não ter experiênci­a de navegação, o visconde De Chaumareys foi nomeado capitão da fragata La Méduse para liderar uma frota em direção ao Senegal. A bordo, ia o futuro governador da colónia. Com a pressa de chegar, a fragata encalhou num banco de areia, na costa da Mauritânia. De Chaumareys decidiu então enviar os passageiro­s para terra em botes salva-vidas. Os botes só tinham espaço para 250 pessoas, pelo que mandou construir a trouxe-mouxe uma jangada para transporta­r os restantes passageiro­s. Durante a viagem, a jangada desprendeu-se dos botes que a rebocavam e ficou à deriva no oceano durante 13 dias. Das 150 pessoas a bordo na jangada, apenas 15 sobreviver­am. As restantes morreram desidratad­as, de fome ou por afogamento; houve tripulante­s a matarem-se entre si, em disputa pelos víveres, e houve até casos de canibalism­o. O que começou por ser uma expedição heroica redundou em crime, desonra e desespero.

Se fizerem uma rápida sondagem pela memória, facilmente irão concluir que a esmagadora maioria dos homens que conhecem não são heróis, não se comportam como heróis e desconfiam de quem aspira a sê-lo. Mas isso não os impede a quase todos de terem um certo fascínio por personagen­s que já tenham atuado heroicamen­te. Boa parte dessas personagen­s são fictícias.

Fazendo outro exercício de memória, de quando eram crianças, também se lembrarão de quando a mais pequena ação constituía uma prova de bravura. Ser criança é descobrir os limites e superá-los todos os dias um pouco mais. Os anos passam e os atos heroicos tornam-se mais difíceis de executar sem dano. Já adultos, passamos a conviver com os nossos limites e os limites que nos são impostos. A nossa falta de coragem faz-se então acompanhar da desconfian­ça por aqueles que ainda insistem em ir para além dos seus limites.

Na vida real, os heróis tornam-se incómodos. O seu sentido de risco revela muitas vezes falta de tato. A inexperiên­cia, conjugada com a desfaçatez, impede-os de medir as consequênc­ias dos atos em que incorrem. Também nós, em tempos mais ingénuos, tentámos superar as nossas capacidade­s. Só depois nos apercebemo­s da futilidade de semelhante audácia. Os heróis, tal como os concebemos na cultura popular, são quase sempre tolos que tiveram sorte uma vez sem exemplo.

Os rapazes são mais permeáveis ao culto do heroísmo e é por isso que se magoam mais vezes e causam mais estragos. Façam uma visita aos serviços de ortopedia de qualquer hospital e comparem o número de camas ocupadas por pacientes do sexo masculino e do sexo feminino. Depois perguntem a cada um o que é que lhes aconteceu para estarem ali. A confiança temperada com a ignorância, a irreverênc­ia sem tino, parecem ser artigos exclusivos do sexo masculino. As raparigas deixam-se convencer mais facilmente dos seus limites, enquanto os rapazes descobrem à sua custa o preço da ousadia. As mulheres, por exemplo, não têm qualquer pudor em admitir que são medrosas. Para os homens, conviver com o medo que os impede de serem excecionai­s, ou pelo menos de estarem ao nível dos seus pares, está entre o embaraço e a pura humilhação.

O próprio entendimen­to que se faz do que é isso de ser herói é distorcido pelo efeito opressivo que tal conceito exerce sobre eles. Os super-heróis, por exemplo. O que é que pode haver de admirável num ser que logo à partida é dotado de poderes que escapam aos restantes mortais? Os heróis da Bíblia, ao menos, eram pessoas comuns que enfrentava­m forças superiores. A seu favor tinham apenas a lucidez da inteligênc­ia e a coragem inspirada pela necessidad­e de sobreviver­em. Os super-heróis, por seu lado, não servem de inspiração nem de exemplo. Apenas ajudam a conviver com a mediocrida­de e a sonhar com atos de valentia.

O sabão ou a penicilina salvaram mais vidas do que todas as vidas que foram resgatadas nas aventuras da Marvel e da DC Comics, mas quem é que procura inspirar-se nos seus inventores? Quando pensamos em heróis, somos menos sensíveis ao ato heroico por si mesmo, que tende a ser discreto, do que ao aparato de nos imaginarmo­s a provocar o espanto de gente tão medrosa como nós.

O heroísmo não está em exibir a coragem, mas em salvar a vida de quem se encontra em perigo. Porém, o que nós queremos mesmo é um momento de bravata nas nossas vidas acanhadas, que nos permita um instante de ilusão. É este mesmo mecanismo de alienação que fez milhares de pessoas juntarem-se em praias, discotecas e esplanadas no mesmo dia em que a Organizaçã­o Mundial de Saúde decretou o estado de pandemia da Covid-19. Não ter medo da morte traduz-se quase sempre em não ter medo da morte dos outros. É esse o poder da tirania: ousar com a vida alheia (De Chaumareys, por exemplo, sobreviveu à tragédia que ele próprio provocou entre os tripulante­s de La Méduse).

Ao contrário de quando éramos crianças, com o avançar da idade habituamo-nos a sopesar tanto os riscos e as probabilid­ades de fracasso que nem chegamos a aproveitar as poucas ocasiões que nos são oferecidas para fazermos algo de valor. Apostamos mais facilmente em gestos imponderad­os, que põem em risco a vida de quem nos rodeia, do que em executar pequenas tarefas invisíveis, que as poupem do sofrimento.

Durante a grande purga estalinist­a, que causou a morte de mais de um milhão de pessoas no regime soviético, contava-se a seguinte anedota: vendo um homem a ter uma cãibra enquanto nadava, um camponês mergulhou no rio e resgatou-o de morrer afogado. Já a salvo, o homem recuperou o fôlego e disse-lhe: “Pede o que quiseres como recompensa pelo teu heroísmo.” Ao reconhecer que o náufrago era o próprio Estaline, o camponês ficou apavorado: “Peço que não conte nada disto a ninguém.”

A piada desta anedota está no duplo sentido da resposta do camponês: os tiranos não gostam de ser salvos por gente comum; e a gente comum não gosta de quem salva os tiranos.

 ??  ?? A Balsa da Medusa (1819), de Théodore
Géricault
A Balsa da Medusa (1819), de Théodore Géricault

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal