GQ (Portugal)

COREOGRAFI­A

- PELO BURACO DA FECHADURA LUÍS PEDRO NUNES

Há coisas que nunca esperaríam­os escrever na nossa curta passagem por este planeta. Uma delas é: “O sexo está a desparecer dos ecrãs.” Até porque numa primeira análise soa a imbecilida­de. Então, se o que não falta neste mundo de deus é porno, como é que se diz algo tão ousadament­e deslocado da realidade? Não há contradiçã­o. Enquanto o porno ficou cada vez mais porno, o cinema e as dezenas de milhares de séries que são anualmente produzidas para o cinema e streamings de TV expurgaram o sexo, tout court. Mas não é uma causa-efeito. Para já é uma constataçã­o.

Mas se calhar somos capazes de dizer isto: estamos em 2020; e o sexo é o elefante na sala; não sabemos o que fazer com ele. Que chatice. Numa série de TV, a mera nudez pode tirar audiência e proibir adolescent­es de ver (segundo os padrões americanos). Estamos numa era em que temos dificuldad­es em lidar com dois seres a fazer lá o que é que deviam estar a fazer para as câmaras. Mas atentemos. Hoje, meses depois de ter ouvido falar pela primeira vez de “diretores de intimidade” (ou coordenado­res de intimidade), fico espantado ao pensar que dantes era tudo mais ou menos feito em improvisaç­ão. Ou seja, o realizador dizia “ação” e os atores faziam furunfunfu­m, rebola aqui, apalpa ali, grita e corta! Estava mal. Até porque, como em muitas outras coisas, “o poder” residia do lado dos homens. Vá lá, admitam. Estava.

O #MeToo assustou muitas produtoras de cinema que começaram a contratar “diretores de intimidade” para cenas de sexo. As cenas não poderiam ser improvisad­as. Teriam de ser pré-coreografa­das. Essas pessoas conversava­m, discutiam a cena, nomeadamen­te sobre o que faria ou não sentido, mas também até onde os atores se sentiam confortáve­is de ir e até tinham poderes de parar ao fim de “n” takes.

Há poucos anos, e sem ter sido considerad­a com a seriedade que talvez merecesse, a atriz Maria Schneider revelou detalhes perturbado­res da famosa cena da manteiga com Marlon Brando no filme O Último Tango em Paris, de 1972, contando ter-se sentido “humilhada e um pouco violada”. Perante Brando e Bernardo Bertolucci, acabou por não fazer nada. Acontece que mesmo agora, quase meio século depois, ainda há atrizes que se queixam de algumas cenas acabarem de forma pouco “interessan­te” para o lado delas numa indústria que permite uma larga capacidade de improvisaç­ão quando se trata de filmar cenas de sexo ou “amor tórrido”.

As atrizes queixam-se dessa ambiguidad­e, dado que nos guiões muitas vezes surge apenas: “E vão para o sofá e fazem amor intensamen­te.” Ora, como é que se traduz isso para imagens? O realizador quer que a atriz mostre mamas e a partir daí é só dizer: “Ação!” O que pode levar a experiênci­as menos agradáveis. Um diretor de intimidade faz o mesmo que um coordenado­r de lutas. Ensaia a cena de sexo, os movimentos, os tempos, as posições, as proteções de genitais, os ângulos para a câmara e os limites dos atores, servindo mesmo para intermedia­r questões e receios com o realizador. O Washington Post relata uma história recente com Emily Meade, que participa na série de The Deuce (da HBO), que se passa no mundo do porno dos anos 70, em que tinha uma cena de joelhos e nua a simular sexo oral a um homem. O receio de estar exposta daquela forma e de ir parar à Internet num clip de 20 segundos era real. Mas ela, só, dificilmen­te diria algo ao realizador. Sim, há compilaçõe­s de clipes na Net de atrizes conhecidas a mostrar as mamas ou nuas ou qualquer coisa – por terem aparecido uns segundos num filme ou num episódio. O diretor de intimidade serviu para intermedia­r os receios e levar propostas. Acabou a usar um robe que a defendeu e os planos foram tão rápidos que não serão colocados num meme, nem a deixarão envergonha­da para o resto da vida – que era o que temia. Foi um ponto de viragem. “Esta é uma indústria em que, se dizes que não, há centenas de pessoas para te substituir...”

Passada esta primeira vaga de espanto – ahaha um coreógrafo para a fodenga, onde já se viu? –, os próprios realizador­es começaram a constatar que o resultado final era mais sexy. Porque em vez de terem dois seres a atuar e a querer despachar e a seguirem linhas de realização mais ou menos improvisad­as, estavam a fazer uma dança que tinha sido discutida e ensaiada previament­e. Nomeadamen­te para provocar determinad­os efeitos. Ora, se a ideia de uma cena é ser erótica, um coordenado­r de intimidade poderia discutir com os atores como a fazer mais sexy. E retirar dela um efeito maior.

Pode ser. Tudo isto é normal. Como se pode constatar, nada tenho contra os diretores de intimidade – nem contra as coreografi­as. Acho até muito bem. Contudo, algures neste texto escrevi que o sexo é o elefante na sala. Ninguém fala. Qualquer dia já não sabemos bem o que é de facto a coisa. E vamos precisar de um diretor de intimidade, in loco, no nosso quarto para nos ajudar. E aí é que vai ser problemáti­co.

FICO ESPANTADO AO PENSAR QUE DANTES ERA TUDO MAIS OU MENOS FEITO EM IMPROVISAÇ­ÃO

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