GQ (Portugal)

NAS PALAVRAS CRUZADAS NUNCA APARECEU A PALAVRA MEDO

- ESCOTILHA MATILDE CAMPILHO

O TEMPO EM QUE O MEU PAI LIA O JORNAL PARECE AGORA UM TEMPO MUITO ANTIGO. ERA O TEMPO DO VAGAR

Ainda sou do tempo dos jornais. As primeiras memórias que tenho de infância envolvem não só um disco do Elton John de capa azul, como também o som de umas páginas a preto e branco a serem viradas a cada fim de tarde. Lá em casa, porque o meu pai saía bem cedo para o trabalho, o jornal lia-se antes do jantar. A essa hora já eu tinha tomado banho e já teria escutado pela enésima vez o tal disco que, agora que penso nisso, não sei se pertencia ao meu pai se à minha mãe. A minha infância sempre me pareceu prodigiosa por muitas razões, e uma delas tem a ver com a questão de que os objetos não tinham dono e estavam ali para quem os quisesse usar.

Usei muito os discos dos meus pais em criança, e esse foi só mais um ponto a favor na minha educação. Outro ponto foi o som do papel virado, o mesmo que na minha casa se ouve agora aos sábados de manhã. Quando digo que sou do tempo dos jornais quero dizer que cresci com a importânci­a de um jornal diário e em papel – primeiro era o meu pai, depois eram quase todos os meus companheir­os de comboio a folheá-lo a caminho do trabalho. Nessa altura já eu ia a caminho da universida­de e, tal como os meus companheir­os, folheava o meu. É que embora eu ainda nem esteja perto dos 40, sou do tempo em que o telefone móvel, a existir, estava lá só para fazer e receber chamadas. Quando muito para, em horas aborrecida­s, jogar ao jogo da cobrinha a comer a maçã. E até isso não chegava a ocupar no máximo uns 20 minutos. O resto do tempo era usado para observar a paisagem no comboio, para folhear um jornal, para ouvir as conversas de estranhos, até mesmo para não fazer nada. Era importante o tempo de viagem em que não fazíamos nada.

Desde que os telefones contêm um mundo que vai bem para lá da cobra e da maçã, já é muito raro ver-se alguém de olhos postos na janela, seja no comboio ou no café, sem fazer mesmo nada. Para além disso, mais raro ainda é encontrar quem não saiba da notícia ao minuto. As novidades brotam dos telefones a uma velocidade doida, e já quase ninguém se dá o trabalho de ler o jornal pela manhã. Eu confesso que também já praticamen­te só os compro ao fim de semana. Um sábado bom é aquele que começa com uns quantos jornais espalhados, nos quais vou sublinhand­o as notícias menores. As grandes, já se sabe, entram-nos pelos olhos a semana inteira, aos gritos, no telefone ou na TV. E arrasam logo com a possibilid­ade de análise. Trazem a euforia e o alarme, mas nem por isso uma resolução.

O tempo em que o meu pai lia o jornal parece agora um tempo muito antigo. Era o tempo do vagar. O tempo em que era possível ler cada notícia e respirar depois, e tirar daí alguma conclusão. No fim, com sorte, ainda era possível resolver as palavras cruzadas de cabeça fresca e sem medo. Escrevo esta crónica praticamen­te um mês antes da sua publicação, porque cresci para trabalhar naquilo que mais gosto. O disco do Elton John, as revistas, a notícia: tudo isso está presente no meu trabalho agora. Eu só não sabia que cresceria para viver o tempo da velocidade, onde uma canção como Tiny Dancer seria considerad­a demasiado longa para os padrões normais de concentraç­ão. Muito menos sabia que a cobra do telefone nos havia de comer a mão, e que a maçã afinal éramos nós. No dia em que escrevo esta crónica os jornais gritam o alarme – há um vírus a espalhar-se veloz e a notícia só fala dos números desse avanço. No jornal, na TV e nos telefones, os números saltam sem parar. Como conselho, sugerem que evitemos espaços fechados e que lavemos as mãos. Dizem-nos também que o tal vírus fica latente nos objetos e que, então, mais vale tocar pouco nas coisas.

Hoje não é sábado, mas ainda assim comprei o jornal. Sublinhei uma notícia musical, resolvi as palavras cruzadas e durante uns 20 minutos não olhei para o telefone. Uma vez ou outra levantei os olhos e pude ver como a criança à minha frente brincava com um lego sem lavar as mãos. Não me alheei, nem sequer deixei de estar atenta aos conselhos que com certeza nos levarão a superar mais um forte percalço deste planeta que se move sem pedir licença. Mas durante 20 minutos, estou certa, fui tranquila. Vivi, sem medo de contaminaç­ão, e tive a sorte de habitar o tempo do jornal. Pressenti que as coisas ainda eram de todos e que estávamos à vontade para as afagar. Por 20 minutos deste dia, enquanto sublinhava frases menores, esqueci que o maior vírus ainda era, e é, o vírus da velocidade. E trauteei serena um Tiny Dancer, feliz por não ter perseguido nenhuma cobra, nenhum isco, nenhum susto.

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