GQ (Portugal)

O SOL IMPERIAL

- ESCOTILHA MATILDE CAMPILHO

que sombra se move o nosso medo, parar de revirar o corpo aí, e aceitar os pontos cardeais.

Alexandre morreu imperial, da Grécia ao Egito, mas nunca esqueceu as lições primárias de Bucéfalo. Aprendemos muito com os homens e com as suas armaduras, com as máscaras que cada um usa para enfrentar o inimigo ou para comprar pão. Mas aprendemos muito mais com o sol, com os raios diários que incidem sobre os nossos corpos e sobre os corpos dos animais. Alexandre teve Bucéfalo por companheir­o, e eu, que nunca desejei conquistar nenhum país para além do meu próprio quarto, tenho Jonas comigo. Jonas é cão, não é cavalo. Respira agora tranquilo como respiram a maioria dos animais terrestres, imunes à peste, à política e ao desastre. Um animal selvagem só quer saber do sol e da água, e não me venham falar agora em bichos domésticos. Nenhum animal – nem cavalo, nem cão, nem homem – é feito para ficar entre quatro paredes. Alexandre inaugurou Alexandria com o sol nas costas, Jonas e eu inaugurare­mos com certeza uma cidade invisível. Será limpa de doenças, governada pela biblioteca e iluminada por um farol. Eventualme­nte será uma cidade substituíd­a por outra, mas ninguém nos arrancará – nem a Jonas, nem a mim – a aprendizag­em que retirámos da sua construção. E assim que tudo isto passar, porque passará, voltaremos a ignorar o gesto de atar um sapato ou de ir buscar a bola. Quem diz ignorar, diz habitar. Quando tudo isto passar, acredito, regressare­mos à magia dos mínimos gestos – que serão outros, porque também nós seremos outros. Até lá, resta-nos voltar o nariz para ponto certo, agradecer a água, e fazer por remexer a colher longe da sombra.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal