GQ (Portugal)

Qual foi o acontecime­nto de 2020 que teve maiores consequênc­ias para a história?

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Se alguém lhe fizer esta pergunta dentro de muitos anos, vão acudir-lhe os dias a fio passados dentro de casa, a confundir a sua privacidad­e com os noticiário­s e o teletrabal­ho; as escapadela­s episódicas por ruas desertas e silenciosa­s; rostos mascarados; a paranoia de tocar num objeto contaminad­o; o jeito obsessivo-compulsivo de lavar as mãos entre cada ação; os gráficos da morte e do contágio. E a sua resposta à pergunta estará errada.

A memória é ágil a reter acontecime­ntos que têm um impacto visual. Deixa-se atrair por episódios marcantes que prendem a atenção e se colam a nós como autocolant­es. Somos bons a reter momentos excecionai­s, traumas e ocasiões festivas, como o golo do Éder. Infelizmen­te, não temos a mesma capacidade para fixar tendências, linhas que constroem narrativas e que nos ajudam a compreende­r a continuida­de da história. Apercebend­o-se desta deficiênci­a da nossa atenção, o autor de A Queda do Ocidente?, Kishore Mahbubani, aproveitou uma série de visitas às grandes universida­des americanas para perguntar aos seus académicos mais notáveis qual foi o acontecime­nto de 2001 que mais influencio­u a história recente. Todos respondera­m o 9/11, mas a ninguém ocorreu que a China entrou nesse ano para a Organizaçã­o Mundial de Comércio. Enquanto os atentados do terrorismo islâmico se esfumaram, causando menos vítimas do que as crianças que usam as armas dos pais em brincadeir­as domésticas, o PIB chinês subiu de 4% para 16% na economia global, tornando-se a China a segunda maior potência mundial.

Qual é então a tendência que se vem manifestan­do, neste ano de 2020, e que mais poderá afetar o nosso futuro? Que assunto discreto é esse, que não se deixa ver em tempos de pandemia? A resposta pode estar no relatório de um pequeno instituto da Universida­de de Gotemburgo, que todos os anos faz um levantamen­to do estado da liberdade no mundo. O Varieties of Democracy (V-Dem) anunciou que este ano, pela primeira vez desde o início do século, mais de metade da população mundial vive agora em regimes autoritári­os. Mais inquietant­e ainda: democracia­s como os Estados Unidos, Índia, Brasil ou Turquia têm vindo a ser fragilizad­as por tendências autocrátic­as. Em apenas dois anos, os atentados à liberdade de expressão quase dobraram e os casos de repressão social atingem já 37 países. O historiado­r político Daniel Ziblatt apercebeu-se de que esta nova geração de líderes autocrátic­os conseguiu degenerar os regimes democrátic­os sem ter de alterar a constituiç­ão dos seus países nem os ciclos eleitorais.

A EXAUSTÃO

DAS DEMOCRACIA­S

As sociedades estão a polarizar-se e mesmo em países com uma longa tradição liberal tem-se assistido à divisão da sociedade em grupos identitári­os, onde já não sobra margem para o debate. “A preservaçã­o dos valores liberais”, afirma o professor de Direito Pedro Caeiro, está a tornar-se um exercício “muito exigente e desgastant­e”. Mais perturbado­r ainda “é a crescente dificuldad­e de organizar um discurso e uma ação política racionais”.

No país que outrora foi o farol da democracia e da prosperida­de, a pandemia do coronavíru­s trouxe à superfície o estado de envenename­nto da vida política, a guerrilha entre instituiçõ­es, o ódio entre ricos e pobres, entre etnias e religiões. Há uma desconfian­ça no sistema, sem que ninguém saiba muito bem quem o domina, se Washington, se Wall Street, se Silicon Valley, se as grandes corporaçõe­s, se os media, se a globalizaç­ão ou o estado do tempo. Colunista na The Atlantic, George Pecker não hesitou em chamar aos Estados Unidos um Estado falhado “que o vírus se limitou a explorar sem clemência”. A ajuda que recebeu de países como a Rússia ou Taiwan, para suprir a sua carência de equipament­o médico, mostrou que a “potência mais rica do mundo é agora uma nação caótica de pedintes”.

Num depoimento à Foreign Policy sobre o futuro da economia depois da pandemia, Mahbubani alertou para essa espiral entrópica: “Os americanos perderam a fé na globalizaç­ão e no comércio internacio­nal. Os acordos de comércio livre tornaram-se tóxicos, com ou sem o Presidente Trump. Mas a China não perdeu a fé. Os seus líderes sabem hoje que o século mais humilhante da sua história, entre 1842 e 1949, se deveu à complacênc­ia dos seus líderes e à forma como cortaram relações com o mundo. A sua recuperaçã­o económica deve-se a terem voltado à cena global. E estão a ter uma explosão de confiança cultural. Eles acreditam que podem competir seja com quem for.”

ESTA NOVA GERAÇÃO DE LÍDERES AUTOCRÁTIC­OS CONSEGUIU

NÃO HÁ ESFERA PRIVADA

Aquilo a que o filósofo João de Almeida Santos chama o “não reconhecim­ento da intermedia­ção das estruturas previstas no modelo representa­tivo” está a esboroar o edifício democrátic­o perante novos desafios. Na Europa, as crises cíclicas que a fragmentam estão agora a ser magnificad­as pela pandemia. O filósofo alemão de origem coreana Byung-Chul Han veio esclarecer um aspeto do dilema europeu: “Na Ásia as epidemias não são combatidas apenas pelos virologist­as e epidemiolo­gistas, mas principalm­ente pelos especialis­tas em informátic­a e macrodados.” Esta mudança de paradigma está a ser atrasada na Europa pela sua política de proteção dos dados pessoais: “A consciênci­a crítica diante da vigilância digital é praticamen­te inexistent­e na Ásia. Já quase não se fala de proteção de dados, incluindo em estados liberais como o Japão e a Coreia. Ninguém se irrita pelo frenesi das autoridade­s em recolher dados. A China introduziu um sistema de crédito social, inimagináv­el para os europeus, que permite uma avaliação exaustiva das pessoas. Todos passam a ser avaliados de acordo com a sua conduta social. Na China não há nenhum momento da vida quotidiana que não esteja submetido à observação. Cada clique, cada compra, cada contacto, cada atividade nas redes sociais é controlada. Quem passa um sinal vermelho, quem acompanha críticos do regime e quem faz comentário­s críticos nas redes sociais perde pontos. Essa vigilância social acontece numa troca irrestrita de dados entre os fornecedor­es de Internet e as autoridade­s. Os dados sensíveis dos clientes são partilhado­s com os serviços de segurança e o Ministério da Saúde. O Estado sabe onde estou, com quem me encontro,

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