GQ (Portugal)

ENTREVISTA

Ruben Alves olhou para a família para falar dos portuguese­s emigrados em A Gaiola Dourada. Agora olha para o mundo para falar de identidade com Miss.

- Por Ana Saldanha.

Ruben Alves tem filme novo. Miss é o pretexto para uma conversa com o realizador.

Ofilme arrancou reações nas estreias, ou premières, numa primeira volta a França (não confundir com o Tour de France). Depois a pandemia atrasou o lançamento, mas não terá de esperar muito mais para ver Miss. A estreia está marcada para 29 de outubro e o cineasta pretende lançar o debate sobre a tolerância e a identidade. E quem dá corpo, voz e vida a essa identidade é Alexandre Wetter – um modelo de aspeto andrógino que desfila roupa feminina e masculina e que Ruben Alves descobriu através do Instagram.

Escolheste trabalhar com o Alexandre Wetter por causa do conceito da androginia e fluidez de género. Como é que vês estas questões do género e dos rótulos? Não sei se moderno é a palavra, mas é da nossa época, ou seja, acho que é mesmo atual, é o que estamos a viver. E dei-me conta disso quando fiz um casting... Basicament­e, eu encontrei o Alexandre Wetter e disse “esta pessoa é fascinante, a história dele, a liberdade dele têm de estar no cinema”, mas não sabia se ele conseguia encarnar o papel, porque ele não era ator. Então fiz um casting para ter a certeza de que era o Alexandre. E, quando eu estava a fazer o casting, estávamos à procura de muitas pessoas e havia uma nova geração que estava completame­nte descontraí­da. Rapazes de 16 anos, 18 anos a quem eu dizia “olha, queres entrar num casting para um filme sobre a história de um rapaz que quer ser Miss France?” e era ok, não havia aquela coisa de “um rapaz que quer ser miss?”, para eles era tudo na boa. Eu sou de outra época e há sempre aquele momento de pensamento… e acho que a nova geração nem precisa desse momento de reflexão, é tudo na boa, e acho que é mesmo fantástico... Eu fiz este filme para parar de ouvir “és um rapaz, não podes chorar” ou “as raparigas usam rosa e os rapazes usam azul”. Please. Isso tem de acabar, não é? E é muito interessan­te ver os meus atores – porque também há outro ator homem que é travesti no filme – a dizer que este percurso entre o masculino e o feminino foi megaintere­ssante. E quando estivemos a mostrar o filme em França, onde fizemos várias premières, vimos muitas vezes as pessoas a tentar pôr a personagem numa caixa. Eles queriam mesmo ter um rótulo. E o meu ator respondia sempre “mas porque é que vocês querem pôr-me um rótulo? Eu sou livre”. E acho que a questão do género, da fluidez do género é mesmo essa: assumir quem somos e viver como entendermo­s.

Como é que se explica a um público mais conservado­r que androginia e transexual­idade são temas diferentes? Explico no filme, acho que está lá tudo. Para o grande público, acho que é uma questão muito simples: assumir quem somos e ter a liberdade para ser o que somos. É um filme sobre a tolerância e é obviamente sobre a diferença. A partir do momento em que estamos a falar com verdade, o público entende tudo e, nesta personagem, o ator tem, na vida real, esta liberdade de ser o que ele é. A mensagem universal do filme é o sonho, é alguém que está à procura de si próprio e a assumir quem é e acho que isso vai tocar qualquer público, é transversa­l...

E qual foi a resposta do público das estreias que conseguira­m fazer antes da pandemia? Foi muito emotivo. O filme tem este lado mais leve da história, mas também tem um lado mais denso que é a intensidad­e do percurso da personagem e há uma identifica­ção com a personagem que é bastante forte. Depois das estreias havia sempre um debate e esse debate nunca parava, o diretor do cinema tinha que vir dizer para parar. Porque é uma questão mesmo interessan­te e que toca toda a gente, especialme­nte a toda a gente que se sente à margem ou diferente numa sociedade que quer que todos sejamos iguais.

E o filme, por ter algum um humor, torna mais fácil digerir um tema que pode ser mais denso? Sim, sim. Acho que o Almo dóvar faz isso muito bem, os filmes dele são sempre muito intensos, mas têm lá aquela loucura, o humor, as personagen­s muito fortes. No meu filme tentei, com estas personagen­s com personalid­ades fortes e com humor, ajudar a tornar o tema menos denso. Porque a vida para mim é mesmo assim: estás num jantar, está tudo a rir e em dois minutos recebes um telefonema e começas a chorar. A vida é mesmo assim.

E falas muito desse conceito de levar a vida real para o filme. O que é que este filme tem da tua vida? Da vida, muita coisa. Este filme é o cruzamento de várias personagen­s da minha vida. A família da personagem principal é uma família reconstitu­ída, não é família de sangue, e isso é uma coisa que tenho muito à minha volta, esse conceito de criar uma família que não é de sangue, mas que é de amizade e fraternida­de. Por exemplo, a mãe, entre aspas, é uma personagem que tem os filhos todos à volta, os que não têm rumo, os que são dealers de droga, e estão todos numa casa que é quase a “casa da felicidade", ou seja, todos têm vidas difíceis mas encaram-nas com um sorriso, porque se conseguem ir ajudando. E essas personagen­s são pessoas da minha vida, com quem me cruzo e de quem sou próximo e gosto muito. E a base deste filme é um amigo meu de infância que quis mudar aos 17 anos e eu fui surpreendi­do pela força dele, pelo percurso de vida e de identidade... acho que é das coisas mais difíceis pelas quais podemos passar numa vida. E no meu filme não falo de mudança, de transident­idade, mas falo da questão de sermos quem somos.

“NÃO É POR EU NÃO TER EM MIMES TA PROBLEMÁTI­CA SOBRE O GÉNERO QUE NÃO POSSO FALAR DISTO. PORQUE É UMA COISA QUE EU SINTO”

Sentes que este filme foi mesmo feito para o Alexander? Já que ele e a personagem têm várias coisas em comum e que ele esteve envolvido no processo... O filme transpira o que o Alexandre Wetter é na vida dele. É diferente na medida em que a personagem é um bocadinho mais dark, está num momento mais difícil e vai ter um momento que faz reacender o sonho que ele tinha quando era pequenino. O Alexandre na vida dele é luz. É muito luminoso, é muito positivo. A primeira vez que eu o vi, era para outro projeto, mas fiquei fascinado pela a maneira como eu estava a falar com um rapaz e, de repente, ele põe uma caneta no cabelo e eu vejo o lado feminino. Fiquei fascinado. E depois estávamos a tentar perceber qual seria a coisa mais forte e mais impactante que um rapaz poderia fazer para entrar na feminilida­de dele e que falasse a um grande público e eu olhei para ele e disse Miss France. Mas é ele que traz a verdade toda para o filme. Aliás, a equipa técnica estava fascinada. Na primeira vez, quando ele veio para os ensaios de câmara, os meus técnicos viram-no e disseram “é a personagem? é ele que vai fazer?”, tinham umas dúvidas. Corta para uma hora e meia depois e ele chega num vestido, saltos altos, maquilhado e eles ficaram “wow”. E vi no olhar dos técnicos que isto funcionava.

E disseste que estudaste o universo da Miss França durante um ano… O que é que descobrist­e? Quando entrei neste universo Miss France descobri pessoas que se dedicam totalmente a este concurso que é a vida delas e isso acabou por me tocar. Achei comovente ver estas pessoas que vêm em família: a avó, a filha, a neta e a bisneta, todos com faixas de Miss France; ver as pessoas que trabalham, que se dedicam imenso e, sobretudo, as candidatas. Temos aquele preconceit­o com as misses e, realmente, há umas que nem sabem porque lá estão, mas há miúdas bastante inteligent­es que vão aos concursos e têm um foco, sabem porque é que estão ali. E é interessan­te ver aquilo tudo misturado. E também vi uma abertura de espírito, uma tolerância, uma bondade de que não estava à espera neste concurso.

Só o facto de eles aceitarem o meu guião foi ótimo. Porque uma instituiçã­o tão clássica aceitar um rapaz que quer ser miss… Mas leram e deram o ok.

E achas que isso era possível acontecer no concurso verdadeiro? Eu falei com a diretora porque queria fazer uma coisa que poderia mesmo acontecer. Eu perguntei: “Sylvie, isto podia acontecer?” e ela olha pra mim e diz: “Podia. Porque eu não vou verificar. Eu peço um certificad­o de honra, peço os documentos. Mas se tiverem um documento falsificad­o, quem sou eu para ir ver?” E este ano houve muita conversa e há pessoas a perguntar porque é que não há transexuai­s no concurso e com este filme ainda mais... E eles sabem que isso está no ar.

E falando de tolerância e olhando para o panorama atual em que a cancel culture está muito presente, como é que fizeste a gestão destes tópicos? Hoje em dia é tudo mais complicado. Se és judeu, podes fazer um filme sobre judeus, se és negro, podes fazer um filme sobre negros, se és gay, podes fazer um filme sobre gays... E isto assusta-me um bocadinho, porque todos temos emoções, sentimos, vemos… e não é por eu não ter em mim esta problemáti­ca sobre o género que não posso falar disto. Porque é uma coisa que eu sinto, que está à minha volta, que está em pessoas que me tocam. No caso deste meu filme, tenho um “selo” que é o Alexandre. Porque isto é a vida dele. Esta vida dele não é escolha, porque ele nunca quis escolher. Ele começou muito jovem a trabalhar como modelo, eu descobri-o no Instagram a desfilar em alta-costura feminina. Ele é o meu melhor “passaporte”, porque ele sabe do que estamos a falar. O cinema é tentar refazer a vida real, para mim é isso, é encontrar aquela verdade, aquele momento. E as situações que estão no meu filme são coisas que eu vivi, que estiveram próximas de mim ou que eu fui estudar para recriar ali com um sentimento de verdade. Mas sim, hoje em dia, no Twitter – e por isso é que eu não tenho Twitter – revoltam-se muito. Mas ao mesmo tempo isso é bom. Toda a gente fala, exprime, argumenta. Acho que enquanto houver isso é bom, quando não houver e estiver tudo apagado e sem nada para dizer é que é preocupant­e. Por exemplo, no trailer do meu filme não está lá dito se ele é trans, se não é, e a comunidade trans começou a perguntar se o filme não era transfóbic­o porque se referem a ele como “ele” – mas aquilo é o trailer e devíamos ver o filme para poder falar... Mas depois estivemos com associaçõe­s para ter a certeza de que estaria a ser o mais correto possível. E eu fiz este filme para homenagear estas pessoas. Não foi para ser moderno, não é isso, de todo. Isto é uma coisa que eu tenho vindo a fazer há anos e que trago comigo. Sempre disse que no meu segundo filme queria falar sobre identidade porque é uma coisa que me toca muito. E este filme é feito para estas pessoas, as que estão a lutar contra o preconceit­o, contra uma sociedade violenta que quer pôr-nos em caixas. E ser diferente hoje em dia é hardcore. E eu amo as pessoas diferentes, o relevo das diferenças, assumirmos as nossas vontades e o que somos. E eu tive cuidado, obviamente, mas falei com o coração e sei do que estou a falar porque eu conheço estas pessoas todas do meu filme, são a minha vida. E é uma homenagem a elas.

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Stills do filme Miss, que tem estreia marcada para 29 de outubro.
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