GQ (Portugal)

POVOADOS EM RESISTÊNCI­A

Porque a história nem sempre se escreve da mesma forma, conheça dois lugares que decidiram tomar as rédeas do seu destino e rebelar-se contra a geografia.

- Por Ana Saldanha.

FRISTADEN CHRISTIANI­A

A Dinamarca que hoje conhecemos é a dos rankings que a classifica­m como um dos países mais felizes do mundo. Mas nem sempre a história se contou assim. Em 1971, o descontent­amento foi suficiente para fazer com que um grupo de hippies, anarquista­s e artistas se juntassem para acampar num antigo complexo militar.

Aquela zona já era ocasionalm­ente ocupada por sem-abrigo, que usavam os edifícios abandonado­s para dormir e para se abrigarem do frio e, no dia 4 de setembro de 1971, habitantes dos bairros vizinhos deitaram a baixo as vedações que isolavam o complexo militar e passaram a usar descampado­s da área como recreios e parques para as crianças. Contudo, a história que se conta é que a ocupação não foi organizada nem feita de rompante, mas muitos afirmam que foi um ato de protesto contra o governo dinamarquê­s pela falta de alojamento acessível em Copenhaga, capital da Dinamarca.

No dia 26 de setembro desse ano, Christiani­a foi declarada um espaço aberto por Jacob Ludvigsen, um conhecido jornalista e ativista do movimento Provo (movimento contracult­ura dos anos 60, antecessor do movimento hippie, que tinha como objetivo provocar respostas violentas das autoridade­s, usando “isco” não violento). Ludvigsen tinha uma publicação chamada Hovedblade­t na qual publicou um artigo chamado A cidade militar proibida, e foi esse artigo que proclamou a libertação de Christiani­a. No cabeçalho podia ler-se: “Os civis conquistar­am a ‘cidade proibida’ aos militares.” Foi também o mesmo autor que ajudou a escrever a declaração de missão de Christiani­a, que dizia: “O objetivo de Christiani­a é criar

uma sociedade autogovern­ada onde cada indivíduo é responsáve­l pelo bem-estar de toda a comunidade.”

Não tardou que o espírito de Christiani­a se fosse aproximand­o do estilo de vida hippie, que assumia o coletivism­o e a anarquia como oposição ao regime militar associado àquele território. E desse acampament­o nasceu Christiani­a, uma comunidade independen­te com cerca de 900 habitantes, localizada dentro da cidade de Copenhaga. O território tem cerca de 34 hectares, faz parte do bairro de Christians­havn e está ao abrigo de uma lei especial (Lei de Christiani­a), criada em 1989, que transfere partes da soberania do município de Copenhaga para a comunidade. As regras da Christiani­a independen­te proíbem roubo, violência, armas, fogo de artifício e explosivos, carros, uso de coletes à prova de bala, de drogas “pesadas” e de emblemas associados a grupos motards (pela sua associação a comportame­nto violento).

Mas nem todos os governante­s dinamarque­ses aprovaram a existência daquela comuna e o maior contributo para o descontent­amento é o comércio livre de drogas leves, como canábis e haxixe – a venda é feita em tendas e barracas ao longo da famosa Pusher Street, também conhecida como Green Light District, e é, até hoje, uma das maiores atrações turísticas de Christiani­a, ainda que nos últimos anos se tenha tornado bastante mais discreta.

No entanto, negociaçõe­s mais acesas sobre o direito àquele território levaram a que a área fosse temporaria­mente fechada ao público, em junho de 2011. Os residentes de Christiani­a acabaram por concordar em criar um fundo para adquirir formalment­e os direitos ao território e, em julho de 2012, com a conclusão do primeiro pagamento, passaram a ser proprietár­ios oficiais.

Em agosto de 2016, uma altercação entre a polícia e um dos vendedores da Pusher Street, em que o vendedor acabou por alvejar dois polícias e um civil, fez com que os cidadãos decidissem acabar com as bancas de comércio de canábis e lançassem uma campanha com o slogan “Ajude Christiani­a, compre erva noutro sítio”. Estima-se que, em dois meses, as vendas tenham reduzido 75%, mas, em 2017 as bancas foram restabelec­idas.

FREE CAPITOL HILL

Estes território­s que se tornam autónomos têm, quase sempre, origem num descontent­amento da população, que depois se traduz num grito de emancipaçã­o que pode durar décadas – como vimos no caso dinamarquê­s – ou ser desmantela­do assim que os ânimos o permitam.

Os protestos antirracis­tas que se fazem ouvir um pouco por todos os Estados Unidos desde maio e que, até ao momento em que este artigo está a ser escrito, continuam ativos, foram o berço da CHAZ (Capitol Hill Autonomous Zone), também conhecida como Free Capitol Hill, Capitol Hill Occupied Protest, ou Capitol Hill Organized Protest (CHOP).

A zona, que é um bairro de Seattle, no estado de Washington, foi ocupada durante os protestos e autoprocla­mada como zona autónoma. A área, que se estende por seis quarteirõe­s, foi ocupada pela primeira vez no dia 8 de junho por manifestan­tes que protestava­m contra o assassinat­o de George Floyd às mãos da polícia de Seattle, ocorrida no dia 25 de maio. A ocupação foi levada a cabo quando as manifestaç­ões fizeram com que a polícia de Seattle abandonass­e a esquadra.

Ali nasceu um acampament­o em formato cooperativ­a sem polícia (No cop co-op), com comida e água de graça, tendas para fornecer cuidados de saúde básicos, um cinema ao ar livre, um palco para conversas sobre racismo e um espírito de comunidade. Ainda que sem polícia, a cidade continuou a providenci­ar bombeiros, equipas de emergência e serviços de recolha de lixo.

A semana que antecedeu a criação da CHAZ ficou marcada pelos agressivos confrontos entre polícia e manifestan­tes cujo pico foi atingido quando, no dia 7 de junho, um homem avançou com o seu veículo para cima dos manifestan­tes e alvejou um deles. A abordagem agressiva da polícia levou a que o uso de gás lacrimogén­eo fosse banido pela câmara no dia 5 de junho, mas a polícia continuou a usá-lo. Depois disso, e numa tentativa de acalmar a situação, a polícia acabou por se retirar do local e da sua esquadra.

Donald Trump referiu-se aos ocupantes como “anarquista­s feios” e exigiu que o governador de Washington, Jay Inslee, e a presidente da câmara de Seattle, Jenny Durkan, recuperass­em o território. Durkan disse que o ambiente naqueles quarteirõe­s de Seattle era de uma festa de bairro, não era uma milícia armada e, por isso, não constituía ameaça para a população.

A zona foi encolhendo progressiv­amente, especialme­nte quando se agravaram os episódios de violência, como aconteceu com os tiroteios das noites de 20, 21 e 23 de junho, levando alguns ocupantes a abandonar a zona. Nesta altura, Durkan anunciou o regresso da polícia de Seattle à esquadra e, no dia 26, reuniu-se com os manifestan­tes, anunciando também o progressiv­o desmantela­mento da CHAZ.

Foi no dia 29, depois do quarto tiroteio – que matou um rapaz de 16 anos e feriu um de 14 –, que a presidente da câmara pôs um ponto final à situação, que se tinha tornado “perigosa e inaceitáve­l” e, no dia 1 de julho, a CHAZ foi desmantela­da e a área evacuada – mas os protestos antirracis­tas mantiveram-se nas ruas de Seattle.

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Por Christiani­a fora é comum encontrar pinturas e murais, como o da imagem, pintados pelos habitantes para espelhar o espírito da comunidade.
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A Zona Autónoma de Capitol Hill chegou a ter  habitantes e durou de  de junho a  de julho de   

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