GQ (Portugal)

A L ONGA HISTÓRIA DE ERMELIND A FREITAS

Cem anos. Qualquer história que chegue a centenária há de ter muito que contar. A da Casa Ermelinda Freitas é um manancial de histórias. Leonor Freitas, herdeira, presidente e sua grande impulsiona­dora, contou-nos algumas.

- Por Diego Armés Fotografia de Cheila da Cunha

Há histórias que precisam de ser encontrada­s. Esta é uma delas. Foi no meio do processo de absorção da vasta e rica história da Casa Ermelinda Freitas que surgiu aquilo a que podemos chamar “a história das histórias” entre um percurso que é já centenário – é, aliás, o centenário desta célebre Casa vinícola da Península de Setúbal que nos leva até às histórias que fomos ouvir à terra de Fernando Pó, pequena localidade do concelho de Palmela atravessad­a por uma linha de comboio e uma estrada municipal.

Tudo em redor são vinhas, vinhas a perder de vista. E muitas dessas vinhas pertencem a Ermelinda Freitas, uma Casa que tem várias longas tradições, a mais conhecida das quais é, provavelme­nte, ser gerida por mulheres. “São para cima de 500 hectares”, dirá mais adiante Leonor Freitas – líder em funções desta Casa gerida por mulheres que já tem na filha, Joana, uma herdeira para o futuro e em perfeita sintonia com a linhagem que a precede: lutadora, perseveran­te, sagaz, tudo adjetivos que a qualificam – acerca da área de vinha que detém ali em redor. “Para cima de 500, penso que não chega aos 600.” No meio da conversa, há de recordar, a propósito desta enormidade de hectares, que certa vez, em Bordéus – nós havemos de chegar a Bordéus, embarcámos nesta viagem só para chegar a Bordéus –, tentou não dizer a ninguém que era dona de 60 hectares (na altura eram apenas 60) porque, por lá, pessoas que tinham 6 hectares de vinha eram tidas como grandes proprietár­ias. “Havia quem visitasse as próprias vinhas de helicópter­o... 6 hectares”, conta Vítor Santos, diretor de Marketing da Casa que teve a gentileza de nos receber. Vítor diz isto, ri-se e abana a cabeça como quem diz “que disparate, sabem lá eles o que é vinha a perder de vista”.

AS CASTAS

“O nome da terra vem do navegador português [do séc. XV] Fernão do Pó”, conta Vítor, “que aparenteme­nte tinha o hábito de dar o próprio nome às terras onde chegava”. Não terá sido o primeiro português a chegar a este lugar – e muito menos terá navegado até aqui, apesar da proverbial riqueza aquífera destes solos, trespassad­os por um gigantesco lençol freático –, mas o certo é que o lugar lhe adotou o nome.

É precisamen­te essa extraordin­ária riqueza aquífera, juntamente com os solos arenosos, dispostos numa extensa e ampla planície, temperados pelos ventos quentes vindos de sueste e pelas brisas marítimas – que o mar é logo ali, a duas dezenas de quilómetro­s – que faz da região de Palmela, em geral, e das terras de Fernando Pó, neste caso específico, um terroir tão especial e profícuo. Nestes terrenos, as castas autóctones e que mais abundam são a Castelão (tinto) e a Fernão Pires (branco). Em ambos os casos, castas que se dão muito bem com a areia, com o calor e com a proximidad­e do mar – e que consomem muita água. “Gosto da ideia de ser conhecida como a ‘Senhora Castelão de Palmela’”, confessará Leonor Freitas horas mais tarde, à mesa, enquanto provamos uma seleção de vinhos da sua casa. Mas vinhos de outras castas que não o Castelão nem o Fernão Pires: “A Dra. Leonor”, revela Vítor enquanto contemplam­os a gigantesca vinha diante do edifício principal – longa, direita, praticamen­te plana, com as plantas altíssimas –, “a Dra. Leonor gosta de descobrir as novidades de castas e gosta de as trazer para cá, mesmo castas estrangeir­as”. Hoje, existem nas terras da Casa Ermelinda 30 castas: além das duas autóctones – “que eram as que cá estavam quando eu cá cheguei”, dirá Leonor Freitas –, encontramo­s, por exemplo, Touriga Nacional, Trincadeir­a, Syrah, Aragonês, Alicante Bouschet, Touriga Franca,

Merlot ou Petit Verdot, entre as tintas; e Chardonnay, Arinto, Verdelho, Sauvignon Blanc e Moscatel, entre as brancas. “Recentemen­te, adicionámo­s a Carménère [tinta chilena], a Riesling [branca, da Alsácia] e Gewürztram­iner [também branca, também da Alsácia].”

A LUTA DE LEONOR

O edifício original da herdade é hoje o museu. Aqui podemos encontrar uma parede com fotografia­s contando resumidame­nte a história dos elementos da família através das gerações até Ermelinda Freitas, mãe de Leonor. Num dos compartime­ntos, estão expostos artefactos e instrument­os caracterís­ticos de várias épocas remotas do século XX e que simbolizam um certo modo de vida rural. Há balanças e alambiques, fogões a gás, copos medidores e, com alguma surpresa, uma máquina de escrever – “o pai da Dra. Leonor era um homem de mente aberta, virado para a cultura, para os livros”, explica Vítor Santos, justifican­do a inesperada presença do objeto ali, entre os outros caracterís­ticos de um lugar e de um tempo em que as letras tinham tanto de raridade quanto de luxo. Leonor Freitas confirmará esta ideia, “o meu pai sempre quis que eu estudasse – e eu, que sempre quis ir para fora daqui, fiz tudo para cumprir com as exigências dele e poder estudar até ao fim”.

Numa outra divisão fica a adega original, praticamen­te intocada. Apesar de ser antiga e de ser, na herdade, tida como obsoleta, a verdade é que era uma adega bastante tecnológic­a para o seu tempo e a sua dimensão era também respeitáve­l – não se trata de um pequeno cubículo primitivo, muito longe disso.

Leonor Freitas aproveitar­á, quando falarmos acerca da sua juventude e dos seus estudos, para contar que a oportunida­de que teve de estudar se deveu a uma conjugação de fatores. Para começar, a já abordada abertura de ideias do seu pai. Depois, o facto de ser filha única, que permitiu aos pais – pessoas com uma boa condição socioeconó­mica, claro, mas longe de serem ricos (a riqueza das pessoas há mais de meio século, no mundo rural, era os campos que tinham e o que podiam produzir – no

caso, leite e queijos, culturas de vegetais e fruta, e obviamente o vinho) – que lhe proporcion­aram os estudos avançados que acabou por concluir (estudou primeiro em Setúbal, depois em Lisboa). “É que eu nasci prematura”, detalhará Leonor Freitas, “e a minha incubadora foi a minha mãe.” Foi ali, naquela casa, na remota aldeia de Fernando Pó, que uma mãe nos anos 50 conseguiu dar suporte de vida a uma recém-nascida com 7 meses de gestação. “O meu pai nem a deixava sair da cama. Mas foi a perspicáci­a dele, e o seu poder de observação, juntamente com o esforço e o calor da minha mãe que me salvaram.” O pai usou o exemplo das galinhas para tentar salvar a filha. “Ele disse à minha mãe ‘as galinhas abrigam os pintainhos e dão-lhes o calor do corpo, vamos fazer o mesmo com a bebé’, e assim foi – e resultou, aqui estou eu.”

Deste princípio atribulado resultaram duas coisas: primeiro, uma mulher lutadora, que não desiste desde que nasceu, mesmo tendo nascido dois meses antes do tempo; segundo, os pais não voltaram a meter-se na aventura de ter filhos. A faceta de mulher lutadora estava claramente inscrita no ADN de Leonor Freitas, filha de Ermelinda Freitas, que era filha de Germana Freitas, que era filha de Leonilde Freitas, que foi a primeira de uma dinastia de mulheres à frente dos destinos da Casa que hoje a sua bisneta dirige.

Ermelinda, cujo nome batizou a Casa das Freitas, viu-se sozinha quando perdeu o marido e pai de Leonor, Manuel João de Freitas. Foi o fado das mulheres desta família e repetiu-se até à atual geração: ficar viúva cedo. Leonor contará, sempre à mesa, que foi no dia em que perdeu o pai que decidiu mudar-se para a quinta. “Disse ao meu marido ‘vamos para lá todos, arranjamos tudo para os miúdos terem condições, e vamos para Fernando Pó’. Na altura isto não tinha assim tantas condições, os miúdos estavam na escola, vivíamos num apartament­o em Setúbal.” A decisão foi drástica, mas não teve oposição. “O meu marido apoiou-me em tudo. Tem sido extraordin­ário.”

A VIAGEM A BORDÉUS

A decisão de Leonor Freitas foi muito mais do domínio do inevitável do que do impulsivo. Sem o marido, sozinha, sem algo que a prendesse realmente àquela terra, o mais provável seria que Ermelinda Freitas acabasse por vender as propriedad­es. “Isso é que eu não queria que acontecess­e”, confessa Leonor, a quem o apelo das origens tocou mais forte e mais fundo do que a inicial vontade de deixar aquele sítio. “É por isso que faz bem ir para fora, estudar, conhecer pessoas e lugares, abre-nos a mente e aprendemos a valorizar de outra maneira.”

Leonor chegou, com a família e as bagagens, instalou-se, começou a trabalhar. “Quando cheguei, tínhamos 60 hectares.” Nem tudo era vinha, havia outras produções. “E o vinho era a granel, não engarrafáv­amos.” Uma das primeiras e mais importante­s decisões foi concentrar a produção da quinta apenas no vinho. Mas Leonor de vinhos não percebia. Então, fez o que uma mulher de luta faz: foi aprender. Estudou, leu e perguntou. Frequentou cursos, integrou comissões. Aprendeu com o tempo, com os erros e com as experiênci­as. “Acredito que parte do nosso sucesso se deva a essa postura. É que, quando eu aqui cheguei, os outros grandes produtores” – os rivais serão as casas José Maria da Fonseca e Bacalhôa – “achavam que já sabiam tudo e eu tinha a certeza absoluta de que não sabia nada.” Isso permitiu-lhe aprender, explorar e inovar.

“A certa altura, lá na comissão vinícola, eles” – Leonor era a única mulher do meio entre os produtores de Palmela – “falavam da Feira de Bordéus, a Feira de Bordéus para aqui, a Feira de Bordéus para ali, e depois viravam-se sempre e diziam-me ‘mas aquilo não é para ti, é só para vinhos engarrafad­os’, e falavam, falavam.” A feira era a Vinexpo. Naturalmen­te, este tipo de situações causa efeitos perversos em pessoas determinad­as. “Disse para o meu marido ‘vamos nem que seja de carro’. E fomos. Fomos num Renault Clio que ainda hoje tenho. Veja bem que nem me ocorreu fazer a viagem de avião. Foi uma coisa que eu tinha de fazer.” Era esta a história que precisava de ser encontrada. “Os hotéis estavam todos cheios, não havia alojamento, mas não quisemos saber: enfiámos a tenda de campismo na bagageira e lá fomos nós. Conduzimos à vez até França, atravessám­os Espanha, tudo de seguida.” Como tinha ouvido falar da “feira”, Leonor não tomou todas as providênci­as. “Pensei que ia para uma feira, sei lá, com bancas, levei roupa descontraí­da. Só quando entrámos percebi que se tratava de algo muito formal, muito solene. Tratavam os vinhos como joias. E encontrei lá aquele que é hoje o nosso enólogo, o Jaime [Quendera], andava lá maravilhad­o com aquilo tudo.”

Nessa ocasião, esta história centenária tomou um novo rumo. “Foi então que decidi: vamos fazer vinho engarrafad­o.” A primeira edição de Terras do Pó em garrafa chegou ao mercado em 1997. O resto é história, uma história de sucesso.

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Vinhas a perder de vista com castas nos solos arenosos de Fernando Pó

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