GQ (Portugal)

O DEDO AIND A NO VERÃO

- ESCOTILHA MATILDE CAMPILHO

Foi em 1975, durante o verão, que Nicholas Nixon fez o primeiro retrato da sua mulher e das três irmãs dela. A fotografia ficou boa – quatro raparigas, vestidas de camisa clara, todas aparentand­o ter mais ou menos a mesma idade. A idade da juventude. No ano seguinte, quando ainda eram jovens, Nicholas disparou outra vez. Dali saiu um novo retrato, com as mesmas mulheres, posicionad­as pela mesma ordem, tudo revelado no mesmo preto e branco. Durante mais de 40 anos repetiram a proeza: uma fotografia de quatro mulheres, irmãs entre si, fixas na lente do fotógrafo. Sempre o mesmo retrato e sempre um retrato diferente. As paisagens mudam. A postura de cada uma delas, também. A forma como se aproximam entre si, também: nalguns anos há a mão de uma sobre o ombro da outra, noutros anos uma delas parece ficar um pouco mais atrás, noutro ainda há quem feche os olhos. Quanto à indumentár­ia, há roupa para o frio e roupa para o calor, coletes de penas, camisolas de lã, camisas de quadrados e camisas tigresse, T-shirts de renda, muitas riscas a preto e branco, vestidos soltos, calções curtos e calças largas. Nalguns anos, parece, algumas roupas são quase repetidas. Quase, porque não cobrem o mesmo corpo. A camisola branca que uma delas usa em 1987 aparenta ser a mesma camisola que outra veste em 1992. Talvez isso, como tantos outros detalhes nos retratos, seja uma ilusão de ótica. Quanto mais o olho do observador avança no tempo das fotografia­s, mais as irmãs se misturam e confundem. Pela legenda de cada um dos retratos não descobrimo­s grande coisa: está lá o ano e o lugar onde foram tirados, e mais nada. Nem sequer o nome de cada uma das irmãs nos é facultado. E na verdade, não faz falta. Quanto mais observamos aqueles rostos, mais vamos construind­o uma ligação privada a cada um deles. A mesma mulher, em anos diferentes, pode estar mais cansada ou mais enérgica. Mais luminosa ou mais no escuro. Mais alerta, mais distraída. Mais disposta ou menos. E claro: mais velha ou mais nova. Pela lógica natural do mundo, seria de esperar que cada uma das irmãs fosse ficando levemente mais envelhecid­a na fotografia. Não é o caso. O tempo é um mistério, e podemos dar de caras com a mesma mulher, em anos diferentes, mais velha num ano e totalmente rejuvenesc­ida no seguinte. Contrariam­ente ao que nos contam, talvez não seja sempre o tempo encadeado a marcar a diferença nos corpos, mas sim a luz ou a aragem que os afeta a cada momento ímpar. O que sem dúvida está presente em cada retrato é a mudança. À mudança é que uma mulher não pode escapar, nem um homem, nem um bicho, nem sequer uma flor. De todas as nuances capazes de agarrar o olhar do observador nas fotografia­s que Nicholas fez das irmãs Brown, talvez seja essa a que mais seduz. A mudança, esse movimento imparável no mundo. Em fotografia ela é mais ou menos fácil de fixar. Lembro-me de viajar pela Europa aos 20 e poucos anos e, ao invés de comprar um postal em cada cidade, entrar numa cabine de photomaton e fotografar-me a mim mesma. Quando aquela folha em mate saía da máquina, ainda quente, escrevia-lhe a data e o lugar nas costas.

Olhando para os photomaton­s agora, sei perfeitame­nte qual tirei em Praga e qual fiz em Veneza, qual deles saiu em Bratislava ou em Liubliana. Tudo isto sem lhes ler a inscrição no verso. As paisagens mudam e, consoante a forma como nos afetam, mudamos com elas.

Também na pintura se usam artifícios para avançar ou acelerar no tempo. Caravaggio não estava presente quando Tomé encarou a ferida de Jesus, mas na hora em que se sentou para pintar o dedo do discípulo no corpo daquele que regressou, com certeza habitou o momento da dúvida. De todas as vezes que alguém entra no museu em Potsdam e observa a pintura de São Tomé, o tempo e a mudança ficam frente a frente. O tempo perde, a mudança vence e o observador deixa-se só inundar pela beleza.

O ano 2020 já vai a mais de meio. Fizemos com certeza muitos retratos desde janeiro até aqui. Não frequentám­os tantos museus como antes frequentáv­amos, mas deixámo-nos muitas vezes levar pelo confronto entre a dúvida e a ferida. Trauteámos algumas canções habituais. As canções, tal como acontece com a fotografia e a pintura, renovam-se de cada vez que nos são apresentad­as. Aquela do Bowie, Changes, de cada vez que toca, é mesmo sempre outra. Arrisco dizer que o ouvido que a recebe, também. Talvez não seja o tempo que modifica os nossos corpos, mas sim a mudança. Para o bem e para o mal, 2020 já fez um malabarism­o nos nossos rostos, nas nossas camisas, nos nossos gestos, nos nossos olhos e nos nossos ouvidos. Quando o ano começou, parece, estávamos todos juntos num retrato fraterno a preto e branco. Ainda estamos. É verão agora. E de janeiro até aqui, já passaram tantos verões.

À MUDANÇA É QUE UMA MULHER NÃO PODE ESCAPAR, NEM UM HOMEM, NEM UM BICHO, NEM SEQUER UMA FLOR

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