GQ (Portugal)

EM NOME DOA AÇÚCAR

Porque será que a sobremesa evoca emoções que não aparecem nos pratos principais? Já Bow Wow Wow cantavam I Want Candy em 1982 – e por cá, same.

- Por Ana Saldanha.

MMesmo que não seja um guloso por natureza, certamente lhe chega alguma imagem ao pensamento quando falamos de doces. E mesmo que aquela vontade de comer um docinho no fim da refeição seja algo que associamos às crianças – aquelas que se portaram bem e comeram as ervilhas até ao fim –, está na altura de assumir que há na sobremesa uma felicidade e um prazer que não conseguimo­s bem explicar.

Há quem descreva este momento de fim de refeição como um mimo, um luxo, algo que usamos para nos compensar, aquela lógica de “eu hoje mereço um doce”. (E quem nunca se escondeu atrás desta justificaç­ão para, numa semana mais difícil, comer aquela tablete de chocolate?) E falamos de algo que não acontece à hora da refeição porque essa serve um propósito, tem utilidade, é para matar a fome e não precisamos de desculpas para nos alimentarm­os. Se a refeição é uma noite de sono para recarregar baterias, a sobremesa é um aconchego, um cochilo a meio da tarde. E que mal tem ceder aos prazeres da vida? Especialme­nte se eles vierem numa taça e tiverem sabor a chocolate.

“Acho que o salgado é para matar a fome e o doce é para o prazer, é aquele espacinho que nós deixamos por puro prazer, por pura gulodice”, comenta Carlos Fernandes, chef pasteleiro do restaurant­e Vista. A sobremesa, como praticamen­te todos os campos da gastronomi­a, tem vindo a crescer, a evoluir e a reclamar o seu próprio espaço no universo de fine dining.

Nos tempos que correm a palavra-chave é equilíbrio: “Tem de haver uma vertente de... não de saciar, mas de ser guloso, porque é muito diferente comer um menu de degustação e dizer ‘é uma sobremesa interessan­te’ ou dizer ‘é uma sobremesa boa’. Tem de haver esse fator de bom, de guloso, mas sem ser em excesso, daí a questão do equilíbrio entre o doce, o salgado, o ácido, a textura”, explica Diogo Lopes sous-chef de pastelaria no Ritz Four Seasons Hotel Lisboa.

E“Eu acho que é muito importante haver uma combinação de texturas. Pessoalmen­te não gosto de ter mais que dois a três sabores principais numa sobremesa e acho que um prato não necessita de mais do que isso para ser valorizado e mostrar aquilo que é. Depois é jogar com texturas, e isso é essencial no caso de uma sobremesa de fine dining. Se formos para sobremesas tradiciona­is, um simples leite creme é um simples leite creme: é cremoso, é untuoso e depois tem aquela crocância do açúcar carameliza­do por cima. Mas se formos para uma sobremesa de fine dining, é importante pegarmos em vários elementos de textura e brincarmos com eles”, conta o frontman das sobremesas do Vista.

Eo fine dining também veio tirar a pastelaria do segundo plano, destacando a necessidad­e do trabalho em equipa e de criar um menu contínuo. “Não podem ser dois blocos separados, tem de haver uma linha condutora. Não podemos chegar às sobremesas e elas estarem aquém, ou ter um menu mais ou menos e as sobremesas serem o ponto alto. Tem de ser um crescendo em termos de experiênci­a – e na verdade resume-se sempre a isso, à experiênci­a. E o que eu acho, e que se vê hoje em dia, é que, em termos de cozinheiro­s e chefes de cozinha, já há uma ideia diferente do que é a pastelaria. Antigament­e víamos esta divisão em dois blocos: o pasteleiro trata da sobremesa, está bom, mete-se. Hoje em dia já existe uma maior preocupaçã­o em criar um menu fluído e que faça sentido”, explica Diogo Lopes.

“Dantes era uma questão muito direcionad­a para o doce e para o açúcar, mas hoje em dia já não. O mundo da cozinha e da pastelaria já se fundem um bocado em termos de ingredient­es que se usam, de técnicas, de elementos de empratamen­to e de porções também. Hoje já existe uma maior sinergia entre os dois mundos. Mas acho que a grande diferença é mesmo a parte da criativida­de: em cozinha há toda a questão do q.b. e do ‘a gosto’ e cada chef tem um gosto diferente, daí os menus refletirem quem eles são enquanto cozinheiro­s. Na pastelaria há toda esta dicotomia entre o rigor e a criativida­de, mas para ter criativida­de tens de dominar o rigor. Nós dizemos que a pastelaria é quase como se fosse uma ciência e é verdade. Tudo tem um porquê, tudo tem as proporções certas no tempo certo. Por exemplo: acrescenta­r uma manteiga no início é diferente de acrescenta­r no fim, vai ter um resultado diferente. Há este rigor e conhecimen­to que nós já temos, mas, a partir do momento em que se domina o porquê das coisas, as opções são ilimitadas porque é uma questão de brincar e conjugar coisas duma maneira muito mais criativa e muito mais livre”, acrescenta o sous-chef do Ritz. Portanto, os mundos tocam-se, mas mantém as suas caracterís­ticas muito próprias.

E, falando de caracterís­ticas, falemos também da resistênci­a de largar os clássicos e da dificuldad­e de servir sobremesas de autor a um povo acostumado ao doce que é muito doce e que tem a gema de ovo no papel principal. Carlos tem uma visão ligeiramen­te mais conservado­ra, preferindo não brincar muito com os clássicos: “Há espaço para brincar, mas, no que toca ao tradiciona­l, há brincadeir­as que têm limites. Existe ainda uma parte conservado­ra com uma ligação muito forte ao que é tradiciona­l. Mas, na minha opinião, eu acredito que há espaço para tudo e para todos. Da mesma forma que eu gosto de comer algo que é tradiciona­l, também gosto de experiment­ar coisas novas. E acho que deve haver essa liberdade para que cada um escolha aquilo que prefere.”

Diogo Lopes acrescenta ainda que o processo de reeducação do gosto generaliza­do ainda está no início, mas que já vai existindo quem se queira aventurar. “Eu acho que nessa democratiz­ação da sobremesa a que nós estamos habituados existe a tradiciona­l, que é feita com os melhores ingredient­es, mas a maior parte das pessoas está habituada a uma pastelaria com um produto de menor qualidade que estabelece­u o padrão para aquilo que é o gosto. Os cremes de balde, os pães de ló e os bolos que são feitos com mixes... isso definiu o gosto das pessoas. Embora eu ache que as pessoas hoje em dia já estão mais recetivas a isso, porque nós queremos essas novas experiênci­as. Em termos de hotel, às vezes temos alguns clientes que pedem algo tradiciona­l português e o que nós explicamos é que lhes podemos dar algo inspirado em, sem apresentar aquilo que é o mais tradiciona­l e clássico porque isso já existe muita gente a fazer e há pessoas que gostam – eu sou um deles, sou megafã de açúcar. Mas todo este trabalho passa por uma adaptação desses clássicos, das quantidade­s exorbitant­es de ovos e açúcar que usamos, tornando-os um bocadinho mais equilibrad­os. Os clássicos não devem ter medo do futuro e o futuro deve respeitar os clássicos. Vai haver sempre espaço para os dois.”

“TEM DE HA VER ES SE FATOR DE BOM, DE GUL OSO, MAS SEM SER EM EXCESSO, D AÍ A QUES TÃO DO E QUILÍBRIO ENTRE O DOCE, O SALGADO, O Á CIDO, A TEXTUR A” DIOGO LOPES

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Na foto, falsa trufa de gelado de fava-tonka, caramelo salgado, crumble de alho-negro e lâminas de trufa-branca

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