HISTÓRIA
Evolução, progresso, retrocesso, rutura, corte, salto, avanço, fim, recomeço, novidade, vanguarda: com tudo isto se faz a mudança. Com tudo isso e com pessoas.
Na verdade, são histórias - histórias de momentos, de descobertas e de figuras que mudaram ou levaram à mudança.
Todo o mundo é composto de mudança”, escreveu Camões, “tomando sempre novas qualidades”, detalhou o grande poeta. Se podemos, com legitimidade, questionar a segunda frase, já a primeira afirmação não tem como ser contornada: é um facto, o mundo vive em permanente mudança.
Como em tudo no mundo, a própria forma como as coisas mudam vai mudando, ou muda de estado para estado, de época para época, de pessoa para pessoa, de contexto para contexto. Há mudanças que acontecem de repente, umas pela força, outras graças a um evento, a um fenómeno, a uma epifania; há outras que surgem porque surgiu uma nova ideia, por exemplo, e ainda outras que vão acontecendo, num processo demorado que vai mudando os pensamentos, os cânones, os paradigmas. Mudar tem muito que se lhe diga. (E desengane-se quem pensa que as mudanças acontecem todas para a frente – o mundo não vai “tomando sempre novas qualidades”, retroceder também é mudar.)
Olhamos rapidamente para Portugal e para o que se convencionou chamar Mundo Ocidental e tentamos identificar, em diversas áreas e épocas, momentos, eventos, obras e personalidades que tenham mudado o mundo – nem que seja por terem plantado nele a semente da mudança, se quisermos ser líricos quanto ao assunto; nem que o tenham feito de um modo discreto, praticamente subtil. Da ciência à cultura, da indústria à revolução, passando pelo desporto, este é o nosso pequeno vislumbre do mundo a mudar.
É VERDADE, MEXE-SE MESMO
No princípio do século XVII, era mais complicado demonstrar, com credibilidade, à Inquisição a teoria heliocêntrica do que hoje é difícil convencer um terraplanista de que a Terra é redonda. Numa época em que o modelo geocêntrico aristotélico do universo era tido como verdade inabalável,
Galileu Galilei ousou pegar nas observações de Nicolau Copérnico e observar ele próprio o modo como se comportavam os astros, não obstante o conservadorismo católico que, assentando numa interpretação bíblica do cosmos, não cedia em relação à possibilidade de a Terra não ser o centro do universo, logo, da criação divina. Galileu, por seu lado, olhou para os céus com atenção e concluiu que, enfim, talvez a realidade astronómica não decorresse exatamente assim como a Igreja dizia. Incomodados com o beliscar deste cânone da existência, foram muitas as vozes – e oriundas de várias áreas – a manifestar-se contra Galileu, esse herege: cientistas, filósofos e, obviamente, figuras religiosas insurgiram-se contra a ideia estapafúrdia de Galileu de que a Terra orbitava em torno do Sol.
Em 1616, após mais de seis anos de defesa pública da teoria heliocêntrica, Galileu foi intimado pelos poderes de Roma a renunciar a toda essa tese. O astrónomo acedeu e ficou sossegado durante algum tempo. Porém, em 1632, Galileu publicou um livro, Diálogo Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, no qual três personagens debatem sobre a mecânica e o universo. O livro foi escrito sob autorização do Papa Urbano VIII, que pediu explicitamente ao cientista que explanasse argumentos a favor e contra a teoria heliocêntrica, de modo a não ferir suscetibilidades. Galileu assim fez, e a personagem que defende o geocentrismo bíblico chama-se Simplício e é muitas vezes exposta ao ridículo. A Inquisição não gostou e decidiu levar Galileu a julgamento. Esperava-se que o astrónomo defendesse em tribunal todas as teses que advogara, não só no livro, mas ao longo da vida, mas Galileu terá preferido renegar tudo e conservar o pescoço intacto – resultou, safou-se da condenação. Reza a lenda que, terminada a sessão, no entanto, Galileu terá desenhado distraidamente um círculo com o dedo enquanto proferia a célebre frase E pur si muove! (“contudo, ela move-se”), referindo-se à Terra. E a verdade é que se move mesmo.
MÚSICA NO CORAÇÃO
Guido de Arezzo, monge italiano que foi regente do coro da Catedral de Arezzo, na Toscana, viveu entre cerca de 992 e 1050 da era cristã. O monge Guido não inventou propriamente algo de relevo, nem produziu uma revolução no que quer que fosse, mas uma vez teve uma ideia: dar nomes às notas de música, e são precisamente esses nomes que ainda hoje usamos, 1000 anos depois. Guido de Arezzo pegou na Escala Diatónica – não vamos entrar em demasiadas tecnicalidades: são as escalas maiores e menores que usamos na música popular ocidental – e num poema da autoria de Paulo, o Diácono (Toscana, séc. VIII) chamado Hymnus in Ioannem, que é um hino a São João Baptista. Depois, atribuiu a cada nota da tal Escala Diatónica a primeira sílaba de cada um dos versos, definindo aquilo que hoje conhecemos como Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, La, Si (no original, Ut, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, San).
O poema de Paulo, o Diácono: UT [dó] queant laxis
REsonare fibris
MIra gestorum
FAmuli tuorum,
SOLve polluti
LAbii reatum,
Sancte Iohannes
MULHER AO VOLANTE
Bertha Benz era a mulher de Karl Benz, e esta é a definição mais machista de Bertha que alguma vez se pode fazer, porque, apesar da importância do seu casamento com o fundador da Mercedes-Benz, Bertha foi uma mulher singular. Singular e revolucionária, já agora, e num tempo em que, por exemplo, as mulheres valiam dotes de casamento. No caso de Bertha, o seu dote teve um destino que viria a mudar o mundo: investiu toda a riqueza na empresa de construção de aço do futuro marido, isto dois anos antes do casamento. A empresa faliu. Bertha, porém, não desistiu. O marido estava empenhado em desenvolver um modelo automóvel com a sua própria marca.
Nessa altura, depois de se ter casado e de acordo com a lei alemã da época, Bertha deixara oficialmente de poder ser investidora, mas esse detalhe continuou a não a impedir de mudar o mundo. É que foi Bertha, contra todas as previsões e sem o conhecimento do marido, quem pegou no modelo de automóvel que Karl desenvolvera e realizou com esse veículo rudimentar aquela que ficou para a história como a “primeira viagem automóvel de longa distância”, não só demonstrando que a invenção de Benz tinha rodas para andar, como ainda corrigindo as deficiências que encontrou no carro – o sistema de travagem, por exemplo, foi totalmente revisto depois desta viagem. De uma assentada, mudou a indústria automóvel e mostrou que o mundo novo não é só para meninos.
PARA TODA A GENTE VER
O Estádio Olímpico de Berlim é um edifício imponente: feito de pedra, amplo, com bancadas profundas cortadas por uma abertura vertical onde a chama olímpica se acende, do lado oposto às colunas monumentais da entrada principal. Portanto, o palco e o cenário não poderiam ser mais adequados ao que ali se passou em 1936. Sim, foi neste cenário que o Jesse Owens, um norte-americano negro, arrecadou, debaixo do bigode de Adolf Hitler, quatro medalhas de ouro: nos 100 e nos 200 metros, na estafeta dos 4x100 metros e ainda no salto em comprimento. Não era bem este o plano inicial do führer do Terceiro Reich, que contava muito mais com uma demonstração cabal e incontestável da superioridade daquilo a que chamava “raça ariana”.
A história de Owens é sobeja e justificadamente conhecida. Já o facto de este ter sido o primeiro evento desportivo a contar com transmissão televisiva talvez não seja assim tão conhecido. Mas foi mesmo. Ou seja, os Jogos Olímpicos de Berlim ajudaram a mudar muita coisa – embora, infelizmente, não as coisas suficientes para evitar a tragédia que se seguiu, entre 1939 e 1945. A história do desporto e das transmissões televisivas, pelo menos, nunca mais foram as mesmas.
O CABO SEM MEDO
Muitos são os detalhes e os nomes que, da Revolução de 25 de Abril de 1974, se incrustaram na sabedoria e no imaginário popular, mas nem todos os acontecimentos e figuras que fizeram a história desse dia tiveram a mesma visibilidade. É do conhecimento geral que E Depois do Adeus, canção com que Paulo Carvalho ganhou o festival da canção desse ano, e Grândola, Vila Morena, na versão de Zeca Afonso, foram usadas na rádio como senhas para os militares insurretos poderem avançar sobre os alvos-chave dos militares pró-regime; sabe-se que Salgueiro Maia foi um dos Capitães de Abril com o papel mais determinante na história dessa madrugada e no desfecho desse dia. O que muita gente não sabe é o nome do homem que mudaria o desfecho desta história ao recusar-se a obedecer a ordens superiores. O nome é José Alves Costa, um cabo-apontador que era, numa explicação leiga, o responsável por disparar um dos carros de combate, vulgo “tanque de guerra”, da coluna militar que defendia o Regime e tentava impedir o avanço das forças do MFA – Movimento das Forças Armadas, que pretendia depô-lo. Com o tanque de Salgueiro Maia na mira, Alves Costa recebe ordem direta do brigadeiro Junqueira dos Reis – o alferes responsável pelo tanque, que deixara ordem para não disparar, tinha já sido detido – para abrir fogo sobre a coluna vinda de Santarém para ocupar o Terreiro do Paço. O cabo recusa a primeira ordem, o brigadeiro aponta-lhe uma pistola e repete a ordem. O cabo José Alves Costa, no entanto, e sem ter uma ideia precisa de tudo quanto se está a passar, confia no seu alferes e volta a recusar-se a disparar. O brigadeiro acabaria por não insistir; Salgueiro Maia triunfaria; o Antigo Regime cairia.
LAVEMOS AS MÃOS
É possível que não nos demos conta da extraordinária importância que tem, apesar do recente e insistente apelo ao gesto de lavar as mãos, mas o sabonete mudou o mundo. Na impossibilidade de precisar o momento em que o sabão – o sabonete é uma versão do sabão revista e melhorada no sentido de se adequar à higiene pessoal e íntima –, aceitemos que é um bem que acompanha o ser humano há mais de 4 mil anos e que nem sempre foi abundante ou, sequer, frequente. No entanto, e não obstante as mudanças nos métodos e frequência de aplicação, a sua função foi sempre a mesma: lavar melhor. O sabão atua como emulsão sobre a pele e liberta pequenas partículas que, deste modo, são facilmente removidas com a passagem da água. Dito assim, parece simples, mas a verdade é que, entre outros feitos, deu uma incontornável mãozinha para que a humanidade estendesse a esperança média de vida.
Há indícios que apontam para que fenícios e babilónios usassem sabão, embora se tratasse de sabão líquido. Em relação aos mitos acerca da origem do sabão, o mais apetecível é mesmo o mais gorduroso: segundo estas versões coloridas dos factos, na antiguidade, após as oferendas de animais em sacrifício aos deuses, escorria dos altares a gordura dos pobres bichos expiatórios. Essa gordura, misturada com cinzas de madeira acabava por se alojar nas roupas dos presentes. Na altura de lavar a roupa, as mulheres – falamos da antiguidade, na época as tarefas domésticas eram alocadas com base no género – reparavam que a roupa com aquela substância ainda por identificar se lavavam muito mais facilmente. A roupa não era lavada com a regularidade contemporânea, pelo que a descoberta objetiva dos efeitos do sabão involuntário talvez tenha demorado algum tempo.
Segundo as fontes consultadas, foram os povos árabes que desenvolveram, por volta do século VII, a fórmula do sabão sólido. Depois da Idade Média, em Génova, Veneza e Marselha começaram a ser produzidos
sabonetes com aromas. Eram produtos de luxo, raros e indiciavam a existência de riqueza e de sofisticação – não é demais recordar que, tal como a lavagem de roupa na antiguidade, também o banho não era um ritual propriamente frequente nesta época. No século XIX, chegaria o fabrico industrial do sabonete – em boa hora, porque os banhos também começaram a ser mais frequentes. Hoje, e excetuando algumas comunidades e nichos, o sabão é um bem essencial sem o qual o mundo ocidental não conseguiria viver (ou, pelo menos, viver tanto tempo).
O PODER DE UM VOTO
O maior elogio que pode fazer-se a Carolina Beatriz Ângelo é dizer-se que resumir a sua a vida a ter sido a primeira mulher a votar em Portugal é abusivamente redutor. Feminista, médica, cirurgiã, bateu-se pela igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres, afirmou-se como republicana – foi, em conjunto com Adelaide Cabete, quem coseu as primeiras bandeiras da República, verdes e vermelhas –, integrou ligas e associações, foi uma ativista plena. A história guardou da sua intensa, porém curta, vida – morreu com apenas 33 anos – o momento em que contornou a lei que barrava às mulheres o acesso ao sufrágio. Em 1911, num tempo em que, na Europa, só na Finlândia as mulheres podiam votar (já na época a longínqua Nova Zelândia se mostrava progressista relativamente aos direitos das mulheres, que podiam exercer o voto desde 1893), Carolina Beatriz Ângelo detetou um brecha na lei eleitoral da República Portuguesa, que dizia que tinham direito ao voto “cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família”. Carolina tinha mais de 21 anos e o curso de Medicina não deixava margem para dúvidas de que saberia ler. Quanto a ser chefe de família: o marido, Januário Barreto, morrera um ano antes, deixando a viúva responsável pela pequena filha de ambos, portanto... Carolina dirigiu um pedido formal ao responsável pelo recenseamento eleitoral da sua área de residência, em Lisboa, pretendendo ser incluída nas listas dos cadernos eleitorais. O pedido foi rejeitado, Carolina não se deixou ficar: recorreu para os tribunais e o juiz João Baptista de Castro – por coincidência, pai Ana de Castro Osório, escritora, feminista e sufragista – proferiu uma sentença que ficaria para a história, na qual declarava que “onde a lei não distingue, não pode o julgador distinguir”, depois de considerar “simplesmente absurdo” e “iníquo” que se vedasse o acesso ao voto às mulheres só pelo facto de serem mulheres. E foi assim que, a 28 de maio de 1911, Carolina Beatriz Ângelo se tornou a primeira mulher portuguesa a exercer o direito de voto – um direito que seria de novo negado a todas as outras mulheres portugueses durante muitos anos depois deste atrevimento de feminista: o sufrágio feminino restrito só seria permitido em 1931, com extensões em 33, 46 e 68; o sufrágio universal, porém, só seria definitivamente atingido em 1974.