GQ (Portugal)

Temos salas de concertos a fechar portas e outras na iminência de o fazer. #aovivooumo­rto

O circuito mais alternativ­o da música nacional está por um fio. Se é que ainda não teve de penhorar o fio para conseguir pagar as contas.

- Por Diego Armés.

Estado de calamidade – eis uma das possíveis designaçõe­s para o que se vive num segmento muito particular das artes e da cultura em Portugal: o circuito dos clubes de música, ou grassroots music venues, designação original em inglês. As medidas de contenção da pandemia têm feito estragos um pouco por todos os setores de economia nacional (e internacio­nal), com especial incidência nas artes do espetáculo. Músicos e técnicos, desde o início da crise, têm tentado fazer-se ouvir – sem espetáculo­s, não têm fontes de receita. Mas o problema tem uma dimensão ainda mais profunda: as próprias salas de espetáculo­s de pequena e média dimensão, os tais grassroots clubs, estão no limite (e às vezes para lá desse limite) da resistênci­a.

Por cá, a associação Circuito organizou uma campanha de sensibiliz­ação associada a um hashtag, #aovivooumo­rto, que juntou clubes de várias cidades, de Beja a Vila Real, de Évora a Coimbra, de Torres Vedras a Almada e, obviamente, a Lisboa e ao Porto – são vários os clubes de cada uma das duas principais cidades.

Falámos com Gonçalo Riscado, responsáve­l da CTL, empresa gestora do Musicbox, que foi um dos impulsiona­dores da campanha, juntamente com Daniel Pires, do Maus Hábitos, no Porto, e com os responsáve­is do Lux Frágil, também em Lisboa. “Sim, estamos na iminência do colapso de todo um circuito”, garante Gonçalo, enumerando uma série de fatores que deixam este tipo de espaços em condições ainda mais frágeis que muitos outros estabeleci­mentos. “Temos público de pé habitualme­nte, o que significa que, a termos espetáculo­s no interior, não poderíamos ter mais do que 10 a 15% da lotação habitual das salas. Depois, a bilheteira não é a nossa principal fonte de rendimento – muitas vezes, é usada para pagar aos artistas –, o nosso rendimento vem do consumo de bebidas, por exemplo.” Sem horários alargados e com as restrições que têm enfrentado, à maior parte destes sítios nem compensa abrir as portas. “No entanto, temos despesas correntes e salários para pagar.”

Gonçalo queixa-se de que os planos do Governo para fazer face a esta crise inesperada tinham em vista uma solução temporária para três ou quatro meses, “mas já lá vão oito meses, quase nove”. “Este setor da música normalment­e consegue ter autonomia, mesmo no caso de um país minúsculo como o nosso.” Essa autonomia tem vantagens, pois traduz-se na possibilid­ade de dar oportunida­des aos músicos, de arriscar em algum experiment­alismo ou de abordar vertentes mais alternativ­as da música. Mas também tem desvantage­ns: “Não existem apoios a que possamos candidatar-nos no âmbito das artes e da cultura.”

WHERE DO THE CHILDREN PLAY?

Gonçalo Riscado sublinha que esta falta de apoios não é apenas injusta, é também sintoma da falta de visão de quem governa – e logo a seguir admite algum otimismo, pois a Câmara Municipal de Lisboa mostrou abertura para adotar algumas medidas de apoio a este tipo de estabeleci­mentos. “Este circuito garante uma multiplica­ção de valor. Para além de constituir a base da pirâmide cultural, tem também um grande peso económico e na vida social das cidades.” Gonçalo dá o exemplo do Cais do Sodré, um “bairro degradado, com estabeleci­mentos decadentes e prostituiç­ão, que se foi transforma­ndo num sítio apelativo, com uma cultura vibrante e cada vez mais trendy” – e tudo começou pelo surgimento de grassroots venues e de música ao vivo.

Se a cidade lucra – em identidade e em retorno financeiro (“podemos ter turismo rasca e baratucho, de bebedeiras, despedidas de solteiro e viagens de finalistas; e podemos ter turismo de pessoas que procuram mesmo uma experiênci­a dentro da cultura local”) –, o circuito musical também fica a ganhar com a existência destas venues. É que é nestes clubes que muitas bandas começam a tocar ao vivo. Algumas acabam por dar o salto e chegar longe, muitas outras não, mas o circuito permanece e o público continua a frequentar as salas e os bares, que se tornam lugares de culto.

“Muitas bandas fazem questão de regressar aos seus lugares, mesmo depois de já terem um nome grande.” Se estas salas fecharem, onde é que os miúdos vão tocar? Onde é que as bandas que não têm “nome grande” vão dar os seus concertos? E onde é que este público vai assistir a concertos e socializar, “tomar um copo, falar cara a cara, debater o espetáculo que acabou de ver?”, pergunta Gonçalo. O colapso do circuito seria um rude golpe numa cultura e num meio artístico que se desenvolve­ram de modo espontâneo, orgânico e passo a passo, definindo e sendo definido pela comunidade em que cada clube se insere e pelas novas comunidade­s que se foram constituin­do em seu redor. Perder este circuito é perder a identidade.

SALAS DE ESPETÁ CU LOS DE PEQUENA E MÉDIA DIMENSÃO (...) ESTÃO NO LIMITE (E ÀS VEZES PARA LÁ DESSE LIMITE) DA RESISTÊNCI­A

SOLUÇÕES E POSSIBILID­ADES

Gonçalo Riscado faz questão de sublinhar que “ninguém do circuito contesta a necessidad­e e a legitimida­de das medidas para tentar conter a pandemia”. O que se contesta é a falta de soluções e de compensaçã­o para uma indústria que dá muito à comunidade em troca de pouco – como se vê, nesta hora de aperto, não há apoios. Pelo menos, por enquanto. “Há planos”, diz Gonçalo.

Antes de prosseguir, importa sublinhar a diferença entre este tipo de salas e, por exemplo, discotecas ou outros sítios de diversão noturna. “Temos um papel cultural fundamenta­l”, insiste Gonçalo, e reclama que não são muitas as áreas que foram impedidas de ir à luta do mesmo modo que esta foi. “Andamos a viver de empréstimo­s para pagar contas e salários, devia haver um plano que nos permitisse acesso a empréstimo­s que, em parte, fossem a fundo perdido”, diz. “É que nós vamos esticando, esticando, mas até quando é que conseguire­mos esticar?” Há vários clubes com “a corda ao pescoço”. Um desses, o centenário Clube de Vila Real, já perdeu o seu espaço, a sede.

Olhando para o futuro, Gonçalo reclama um enquadrame­nto e um espaço para que estas salas possam candidatar-se a apoios e ser envolvidas em programas. Ressalva que a Câmara de Lisboa tem dado atenção à situação, menciona a ação de Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura, e do próprio Fernando Medina, presidente da autarquia, “eles têm consciênci­a da importânci­a das salas”.

A Câmara de Lisboa apresentou, entretanto, um projeto de apoio e proteção às salas da cidade e espera-se que no Porto avance algo semelhante. Resta saber se é suficiente e se chegará a tempo. E resta também saber o que acontecerá aos clubes do resto do País. ●

“ESTE CIRCUITO GARANTE UMA MULTIPLICA­ÇÃO DE VALOR .(...) TEM UM GRANDE PESO ECONÓMICO E NA VIDA SOCIAL DAS CIDADES”

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Ainda vamos ter de aguardar mais alguns meses pelo regresso de concertos a palcos como o do Musicbox, em Lisboa. E esta espera pode ditar o fim de certas salas.
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A associação centenária foi despejada em julho da sua sede e
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Duas imagens do Club de Vila Real que não voltarão a repetir-se. A associação centenária foi despejada em julho da sua sede e ainda não encontrou nova casa.
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