GQ (Portugal)

CEM ANOS E UMA EXPOSIÇÃO

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“Artista é uma palavra que eu detesto, eu escrevi em alguma parte que quando me designam como artista é como se me dessem uma bofetada. Não gostava nada de ser artista, eu sou um homem que faz desenhos, que pinta.” [ Excerto da entrevista à GQ Portugal #162]

Isto não é um obituário. Artur do Cruzeiro Seixas (Amadora, 1920), morreu no dia 8 de novembro, aos 99 anos e 340 dias. Cidadão de espírito livre, recusou sempre o epíteto de artista. Completari­a 100 anos inteirinho­s no dia 3 de dezembro.

Cruzeiro Seixas, pintor e poeta surrealist­a, mas não artista, ficou chateado. Passamos a explicar. A Perve Galeria e a Casa da Liberdade – Mário Cesariny organizara­m uma exposição que juntou as comemoraçõ­es dos 20 anos da galeria em Alfama e as do centenário do mestre Cruzeiro Seixas. Carlos Cabral Nunes, diretor e fundador da Perve e da Casa da Liberdade – Mário Cesariny, cultiva uma relação de grande proximidad­e com o pintor e poeta, pois já se conhecem há mais de 20 anos.

No entanto, Cruzeiro Seixas não pôde estar presente na inauguraçã­o dessa exposição, a 19 de setembro. E logo numa inauguraçã­o que contou com as insignes presenças do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e da ministra da Cultura, Graça Fonseca. E não pôde estar presente porque o próprio Cabral Nunes o proibiu: dadas as atuais circunstân­cias, a saída do mestre dos seus aposentos – o pintor encontrava-se, há vários anos, alojado na Casa do Artista, em Lisboa – implicaria que, no regresso, permaneces­se em isolamento durante 14 dias, como medida preventiva da propagação da covid-19 num lugar tão sensível como é aquele lar.

Cruzeiro ficou muito desagradad­o, magoado mesmo, segundo Cabral Nunes. Porém, a verdade é que veio a verificar-se que, infelizmen­te, o galerista tinha toda a razão. Algumas semanas após a inauguraçã­o da exposição na Perve, a ministra Graça Fonseca agraciou Cruzeiro Seixas com a Medalha de Mérito Cultural, na Biblioteca Nacional de Portugal. Cruzeiro marcou presença nessa cerimónia. De regresso à Casa do Artista, e como previsto e determinad­o, foi obrigado às tais duas semanas de quarentena. O isolamento forçado acabou por resultar numa grande debilitaçã­o do estado de saúde do pintor e poeta, que acabou por não conseguir recuperar – não nos esqueçamos que a inatividad­e numa pessoa de 100 anos pode ter consequênc­ias irreversív­eis.

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