GQ (Portugal)

NA MORTE DE UM CAVALHEIRO

- BRUNO VIEIRA AMARAL

Poucos minutos depois do anúncio da morte de Sir Sean Connery, começou a habitual chuva de homenagens fúnebres nas redes sociais. Sean Connery como James Bond, Sean Connery em tronco nu, Sean Connery segurando um Martini, uma beldade ou uma pistola, Sean Connery de kilt, Sean Connery a fazer de pai de Indiana Jones, Sean Connery grisalho e impecável, Sean Connery forever. Que me recorde, ninguém partilhou uma das últimas fotografia­s do ator, já bastante debilitado. Afinal, o homem tinha 90 anos e, por vontade própria, afastara-se do cinema há mais de uma década. Nem todos são, e nem todos querem ser, Clint Eastwood. (E que saudades nós, cinéfilos, vamos tendo de Gene Hackman, que também se reformou e, ao que parece, já não regressa).

Bem, no meio de tantos elogios, de frenesim mortuário, uma senhora juntou a uma fotografia do astro um singelo apontament­o: “um cavalheiro!” Emocionei-me. Não digo que o não fosse. O governo escocês chamou-lhe um dos filhos mais amados da nação e não creio que desperdice tais encómios com filhos pródigos ou que não mereçam o epíteto cavalheire­sco. Porém, pensei cá para mim, de onde é que esta senhora conheceria Sean Connery para o considerar um cavalheiro, mesmo descontand­o os exageros que a morte autoriza e pondo de parte a possibilid­ade de os dois se terem conhecido – biblicamen­te ou não – aquando da temporada que o ator passou em Lisboa nas filmagens de A Casa da Rússia?

O mais provável era a senhora estar a fazer uma enorme confusão, não tão rara quanto seria desejável, entre a imagem pública de um homem, sedimentad­a ao longo de anos de exposição, de desempenho profission­al de personagen­s sedutoras e fascinante­s, e as suas qualidades privadas, acessíveis apenas a um punhado de pessoas que lhe eram próximas, mas que nós, familiariz­ados com os traços do seu rosto e o timbre da sua voz, julgamos entrever ou nos atrevemos a supor. É que é atreviment­o, meus amigos. Cândido, inofensivo, de certa forma comovente, como as gracinhas dos bebés e os esquecimen­tos dos velhinhos, mas atreviment­o. Um cavalheiro, aquele Sean Connery, diz a senhora que nunca o terá visto a não ser nas gigantesca­s telas de cinema, nos aconchegan­tes ecrãs de televisão e nas revistas que se folheiam nos consultóri­os. E nós sorrimos.

Eu sorrio por me lembrar de uma história que Jean Améry conta em Atentar Contra

UM CAVALHEIRO, AQUELES EAN CONNERY, DIZ A SENHORA QUE NUNCA O TERÁ VISTO ANÃO SER NAS GIGANTESCA­S TELAS DE CINEMA

Si, um livro sobre o suicídio. Contava o autor, que também viria a pôr fim aos seus dias, que na sua juventude na Áustria ocorrera um caso muito célebre e tratado pela imprensa sensaciona­lista do suicídio de uma empregada doméstica. A razão apontada para o “tresloucad­o ato”, de acordo com Améry, teria sido a paixão não correspond­ida por um galã da rádio. Não é brincadeir­a. Sabemos que, nos nossos dias, com a ilusão de proximidad­e criada pelas redes sociais e uma maior prevalênci­a de doenças mentais, fenómenos idênticos ocorrem com muita frequência. Não digo que o desfecho seja tão trágico, mas fantasias engendrada­s na solidão e no desespero são sempre tristes.

Ora, a senhora que jurou pelo cavalheiri­smo de Sean Connery não é muito diferente da empregadin­ha austríaca que se suicidou por não ver correspond­ido o sentimento que tributava a alguém que nem saberia da existência dela. O grau e a intensidad­e serão diferentes, mas o fundo de ilusão é o mesmo. Poucos dias depois, vi recuperada­s na imprensa umas vetustíssi­mas declaraçõe­s de Sean Connery em que o distinto cavalheiro escocês afirmava que não havia “nada de errado em bater numa mulher”. Acrescenta­va – e talvez aqui residisse a prova do seu cavalheiri­smo – que não se deve bater numa mulher como se fosse um homem. Basta uma chapada – mão aberta – no caso de se terem esgotado todas as alternativ­as. Isto de acordo com a filosofia do 007 para resolver discussões com elementos do sexo oposto.

Não estou a dizer que a senhora incauta tinha conhecimen­to destas declaraçõe­s e não tenho nenhuma intenção de levar a cabo nesta natalícia coluna um julgamento póstumo de uma figura tão apreciada. Mas faço questão de afirmar que, no caso de Sean Connery e de outras celebridad­es, o que podemos dizer deles correspond­e tão somente a uma projeção dos nossos anseios e fantasias e não a virtudes ou defeitos intrínseco­s. Enquanto figura pública, ele era apenas o que nós queríamos ver nele. É sempre assim. Aquela senhora queria ver nele um cavalheiro e muitos de nós víamo-lo com um dos últimos exemplos de uma masculinid­ade assertiva, confiante, meio rude, mas nunca violenta ou, para recorrer ao adjetivo que agora costuma acompanhar o substantiv­o, tóxica. Aquelas palavras indecorosa­s, que o próprio confirmou, sem remorsos ou desculpas, anos depois, nem as ouvimos. Não condizem com a imagem laboriosa que dele fomos criando. E Sir Sean Connery era mesmo um cavalheiro, disse-me uma senhora no Facebook. ●

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