GQ (Portugal)

PALAVRA E MUTAÇÃO

- MATILDE CAMPILHO

Um dia, ao ler sobre esta época num manual escolar, talvez um rapazinho de 15 anos se depare com a palavra ruído várias vezes por página. Ou quem sabe se a palavra recorrente não será antes rumor, e isso quererá dizer que toda a exaltação agora talvez seja só o prenúncio de algum acontecime­nto fundamenta­l: um desastre, uma resolução, uma coisa imediata e lá na frente à nossa espera, ou talvez até uma revolução lenta já em marcha. Pode ser que a palavra várias vezes encontrada nos manuais do futuro seja força, pode ser resistênci­a, tomara que não seja derrota. Pode até ser que a palavra repetida seja menos um conceito e mais um objeto. Quantas vezes não estudámos a palavra roda para definir uma época, ou telégrafo, ou mesmo pedra. Seja como for, uma coisa é o que se estuda, outra coisa é aquilo a que se assiste, e já desde o tempo das parábolas bíblicas que sabemos ser muito difícil distinguir trigo de joio antes da colheita.

Que palavra servirá para resumir esta era ninguém arrisca. Até porque para isso seria preciso saber com mais ou menos exatidão quando foi que começou a era e quando terminará. Não estamos aí. Vamos ainda só a atravessar, descalços sobre a plantação, entre a erva boa e a daninha. Mas façamos um exercício, nem que seja só para passar o tempo, e sejamos o rapazinho de 15 anos dentro de uns quantos séculos. Eis a palavra na sua frente nos manuais. Não se sabe ainda dentro de que contexto surgirá, e menos ainda a que conceito emocional o rapaz associará logo o vocábulo. Embora as palavras demorem muitos anos a mutar, o significad­o que a elas se liga é mais rápido na transforma­ção. No livro do rapaz, por exemplo, pode estar a palavra telefone e sabe-se lá até onde esse conceito vai ainda esticar-se.

Em 1980, o telefone tinha dois propósitos: a praticidad­e e a lentidão. A praticidad­e porque nos servíamos dele para combinar um encontro ou para marcar a consulta, no limite para pedir uma pizza.

Marcava-se o número, esperava-se pela voz do lado de lá e rapidament­e estava resolvido um assunto. Mas se essa voz por acaso fosse familiar, era possível que nos servíssemo­s do aparelho para outra função: em dias de sorte podíamos passar duas horas ao telefone a ouvir contar as coisas, a fazer perguntas simples, quem sabe até em silêncio. Por vezes, enquanto arrastávam­os o tempo, íamos rabiscando formas estranhas nalguma folha que estivesse à mão. Havia quem desenhasse um elefante enquanto ouvia contar sobre uma ida ao mercado. Havia os que esboçavam um avião enquanto se aventurava­m numa revelação de intimidade. Havia quem deixasse a mão correr mais solta e no fim de um telefonema era ver a folha toda cheia de pirâmides, paralelepí­pedos, centopeias, baús abertos e baús fechados, chapéus de aba, nomes particular­es, confissões em forma de círculo. Dentro de um telefonema, corresse o tempo mais rápido ou mais lento, a verdade é que ele parava sempre um bocado. Nessa paragem as interferên­cias eram mínimas e uma delas, que tanto podia ser incómoda como divertida, era chamada de “linhas cruzadas”: de repente, sem aviso, entrava alguém na linha. Podia aterrar ali sozinho, só por ter levantado o auscultado­r noutra ponta do País, ou podia trazer já um interlocut­or. Por causa das “linhas cruzadas”, dizem, há quem se tenha apaixonado, quem se tenha insultado, e simplesmen­te quem se tenha ignorado. Visto assim, por esse lado, a palavra quase parece familiar.

Nos anos 80 do século passado, mesmo com intromissõ­es, era só pousar o auscultado­r na nave mãe do aparelho que tudo voltava ao normal, sem grandes danos. Em 2020 há muito que o aparelho deixou de se dividir em duas partes, e já ninguém tem a certeza de poder desligar-se dele. Os glifos que imprimíamo­s em páginas de revistas, em faturas velhas, até mesmo nos cantos das enciclopéd­ias enquanto usávamos o telefone pertencem agora ao museu da memória, ficando como prova do tempo em que falávamos e ouvíamos devagar. Com a mão já só desenhamos o ruído, quase sempre com o polegar, e tudo é feito diretament­e no aparelho. Tanto a pizza como a informação, e até mesmo a intimidade, podem chegar-nos a partir de um toque no ecrã. Passamos o dedo no vidro centenas de vezes por dia e arrisca-se dizer que nenhuma delas com a mesma atenção com que, distraídos, desenhávam­os baús ou aviões.

No futuro, na sala de aula, talvez o rapaz de 15 anos aprenda a palavra telefone. Tem um livro à frente, está descalço. E enquanto escuta o professor, vai desenhando devagar outras três palavras novas: força/ resistênci­a/ rumor.

JÁ DESDE O TEM PODAS PARÁBOLAS BÍBLICAS QUE SABEMOS SER MUITO DIFÍCIL DISTINGUIR TRIGO DE JOIO ANTES DA COLHEITA

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