GQ (Portugal)

KAY ADAMS ENTRE AS MULHERES

- DIEGO ARMÉS

Équando Kay Adams se converte, não apenas ao catolicism­o, mas também ao ritual de ir à missa aos domingos, seguindo o caminho calcado uma e outra vez, semana após semana, pela senhora Corleone para pedir a Deus a salvação do marido, que nos apercebemo­s da magnitude do papel da mulher nesta história. Mulher com maiúscula, as mulheres, todas as mulheres.

Em O Padrinho, de Mario Puzo, não há grandes mulheres por trás de grandes homens. É um mundo macho este que Puzo retrata e nos mostra. Por trás de um grande homem haverá outro homem de dimensões generosas, embora menores, e, por trás desse, existirão uns quantos já não tão grandes que, por sua vez, terão por trás de si homens um pouco mais pequenos, e assim sucessivam­ente, até desaparece­rem numa cadeia que, exposta assim, pode parecer demasiado simples, mas que, conjugada com rivalidade, ambição desmedida, conflito de interesses, impunidade comprada, calculismo, necessidad­e de vingança, frieza e outros pecados terrenos, resulta numa escala impression­ante de homens, vistos quase sempre do maior para o mais pequeno.

As mulheres são diferentes. De novo: em O Padrinho, as mulheres não estão por trás dos homens. Em vez disso, habitam uma dimensão paralela, exterior, onde permanecem vedadas da prática. À primeira vista, pode parecer que ficam de parte. Porém, olhando com mais atenção e focando os detalhes, percebe-se que é nessa redoma que as mulheres de Mario Puzo – salvo seja – existem para segurar a tocha da ética, para nos alumiar o caminho que separa o Bem do Mal. São a consciênci­a, o coro trágico numa encenação tantas vezes amoral. É, por isso, perfeitame­nte natural que sejam elas, Carmela Corleone e Kay Adams (mais tarde, Kay Adams-Corleone, depois de se casar com Michael), a pedir perdão pelos pecados dos seus homens. Só elas os podem salvar.

Mas Mario Puzo, brilhante e perverso na sua conceção de um sistema capaz de nos fazer crer num mundo mais justo pela subtração da justiça institucio­nal, vai mais longe. A mulher em O Padrinho não é somente a voz da razão ou o veículo de expiação do pecado do seu homem. Aqui, a figura feminina é também uma espécie de vitamina D – nem sempre percebemos ao certo o que faz, mas sabemos que é um fiável sinalizado­r do que acontece em seu redor. No caso concreto, as mulheres sinalizam a decência, ou a falta dela, dos homens com quem se relacionam. Não é de somenos. Num mundo onde os parâmetros da moralidade são substancia­lmente distintos dos dos cidadãos comuns, a decência

É NESSA REDOMA QUE AS MULHERES DE MARIO PUZO –SALVO SEJA– EXISTEM PARA SEGURAR A TOCHA DA ÉTICA

e a honradez serão o último bastião da civilidade e da tal noção de Bem e de Mal.

Os exemplos são muitos ao longo do livro, e é assinaláve­l a subtileza com que Puzo faz com que o respeito pela mulher seja uma caracterís­tica distintiva dos homens de bem. Nunca é claro, nunca é explícito, nunca existe, da parte do narrador, uma avaliação moral clara acerca do assunto. São as próprias personagen­s, com os seus princípios morais – princípios, recorde-se, herdados de uma tradição siciliana e mediterrân­ica, profundame­nte católica, profundame­nte fechada, profundame­nte patriarcal e conservado­ra –, quem faz o julgamento e contribui para esta dinâmica.

O caso emblemátic­o de Santino “Sonny” Corleone, filho mais velho e herdeiro do império de Vitto (o “Don”, o “Padrinho”), que é assassinad­o quando vai dar uma – mais uma – lição ao seu cunhado, que batia em Connie, sua irmã, é só um exemplo. O cunhado é o reles, o invertebra­do, o detestável. Já Sony era um homem de pecados, sim, mas possuía alguma integridad­e e não aceitava que um homem espancasse uma mulher, e muito menos que espancasse a sua irmã.

O próprio Don Corleone, que não se pronunciav­a sobre as tareias que a filha levava do odioso Carlo por acreditar que “entre marido e mulher... enfim”, nunca durante a história ousa levantar sequer a voz à sua Carmela. E o cangalheir­o que há de compor o cadáver e o rosto de Sonny – “não quero que a mãe o veja neste estado”, diz-lhe Don Corleone – fá-lo pagando ao Padrinho um favor por este ter feito justiça (uma justiça que os tribunais nunca fizeram) sobre aqueles que abusaram da sua filha.

Os casos sucedem-se ao longo do livro e a tendência não sofre variação: o homem decente não agride uma mulher. Mais: o homem honrado tem um respeito profundo por todas as mulheres e, em particular, pela sua própria companheir­a. Um homem pode mandar matar outro homem, pode pagar para que o atirem ao Hudson com uns sapatos de cimento, sem que tal mereça reparo ou crítica dos seus pares. Mas esse homem não é homem, não é nada, se bater na sua mulher. Provavelme­nte, fá-lo porque nem poder tem, porque não passa de um degenerado, de um perdedor, de um perdido – e um perdido para a eternidade, pois não terá uma mulher que peça por ele aos domingos na igreja. E, se não for a mulher, quem mais poderá interceder por esse homem junto de Deus?

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