GQ (Portugal)

AS PALAVRAS QUE NUNCA TE DIREI

- Por Marina Santos*. Ilustração de Apollonia Saintclair.

Gostava que estivesses preso, num cubículo, a ler isto. Não. Gostava que estivesses morto. Mas, estando morto, não ias carregar eternament­e o peso de magoar alguém. Não ias ter consciênci­a, ainda que tardiament­e, da dor que causaste. Não ias saber que as pessoas como tu, hoje, têm um nome: são monstros. E os monstros não merecem nada, nem mesmo compaixão. Continuará­s neste mundo até que a tua alma vazia se esfume, porque nada em ti é humano.

Devia ter 16 anos, acabados de fazer, quando levei o primeiro murro. No braço direito. Não recordo exatamente a razão que levou a que isso acontecess­e. É provável que esse soco, o primeiro, tenha sido impulsiona­do por uma visita de estudo em que, no autocarro, me sentei ao lado de um colega do sexo masculino. É provável que esse soco, o primeiro, tenha sido impulsiona­do por vários anos de “fúria controlada”, que normalment­e extravasav­am de outras formas – menos físicas, entenda-se. Mas nesse fim de tarde, em vez de um sussurro ao ouvido, “Se acabas comigo, mato-me”, vi-o fechar a mão e enfiá-la, de rompante, no meu braço direito. Não durou dois segundos. Durou a vida inteira. A raiva era maior do que a força. Muito maior. Fechei os olhos e, quando os voltei a abrir, ele fixava-me (era um ritual a que estava habituada, vê-lo assim, hirto, sem pestanejar, os músculos tensos, as veias da testa prestes a explodir) como se quisesse ter a certeza de que aquilo era um segredo nosso. Mais um. Puxei a camisola para cima. “Nem ficou ferido. Não me dói. Está tudo bem.” Ele abraçou-me. Quando fui para casa, horas depois, já não havia dor. Porque, por essa altura, dois anos e meio volvidos desde o início da relação, já não havia dor. Só havia um imenso vazio para onde eu atirava o medo. O meu medo.

Soube que estava tudo errado connosco no dia em que fui proibida de falar com o meu melhor amigo, que curiosamen­te também era o melhor amigo dele. Eles, no entanto, nunca deixaram de falar. Estávamos juntos há seis meses. O António (nome fictício) entrava no café para se encontrar com ele, eu levantava-me e saía, sem abrir a boca, como se ele fosse um estranho. Isso acabou por se tornar um problema porque, uma vez que o António frequentav­a o mesmo liceu, e sendo alguém que, até então, me era tão próximo, era normal as pessoas pensarem que estava tudo bem entre nós. “Ouvi dizer que estiveste com o António no intervalo quando eu não tive aulas. Andas-me a mentir?” E eu, que começava a tremer mal via o António descer as escadas, nem respondia. “Já sei que te cruzaste com o António na tua rua. E que o cumpriment­aste. És uma mentirosa. Como é que sei que não falas com ele ao telefone, quando estás em casa?” Não sabia. Não sabia, por isso fomos à Telecom, a antiga empresa que geria os telefones, pedir os extratos de todas as chamadas feitas a partir, ou para o meu número fixo. Pedido que foi prontament­e recusado, pois o contrato estava em nome do meu pai. Escrevo isto e apetece-me abanar aquela adolescent­e de 15 anos que teve menos vergonha de entrar naquela loja e submeter-se ao ridículo de implorar por um papel que acalmasse as desconfian­ças do namorado do que de deixar aquele tipo cobarde que, quando as coisas não lhe agradavam, lhe dizia: “Se me deixas, vou contar aos teus pais que já não és virgem.”

Foi mais ou menos assim que se resolveu o problema do António. E todos os outros. Com uma autoimpost­a exclusão social. Hoje pergunto-me como é que consegui estudar, engendrar mentiras em casa para abafar o meu estado de permanente ter

ror, inventar mil e um sítios onde ia “sair com elas” (as amigas eram sempre várias, no plural), quando na verdade passei quase três anos e meio fechada no sótão dele, dia após tarde após noite. Eu e ele, naqueles dois metros quadrados com cheiro a bolor e a morte. Ainda hoje não sei explicar isto, esta sensação do cheiro a morte. Mas é a lembrança que tenho. Foi ali que deixei de ser virgem. A esta distância, queria ter deixado de ser virgem naquela noite? Não. Mas foi assim que aconteceu. Teria sido noutra qualquer. “Vamos ficar juntos para sempre”, repetia-me vezes sem conta. “Não importa quando acontece.” Por isso acontecia, e aconteceu, vezes sem conta. É horrível assumir que não me lembro de grande parte delas? Com o tempo, e com o hábito, aprendi a deixar ali apenas o corpo, e a enviar o meu espírito para outro lugar. Um lugar melhor. Um lugar qualquer. Um lugar onde eu era livre. É preciso sublinhar uma coisa. No final dos anos 90 nada disto tinha um nome. A violência no namoro era um não assunto. O abuso psicológic­o era coisa de quem não tinha mais nada para fazer. Contudo, mais de 20 anos depois, posso finalmente escrevê-lo com todas as letras, por muito sangue que derramem: o meu primeiro namorado, com que estive cerca de quatro anos, violou-me. Repetidame­nte.

E eu permiti. Permiti porque fiquei calada. Permiti porque fui cedendo. Permiti porque não conhecia outra realidade. Permiti porque não sabia como se fazia para sair de uma situação assim. Permiti porque a culpa era minha. “Não sabes nada. Não fazes nada bem. Nada.” Permiti porque me anulei. E a minha personalid­ade, viva, alegre, espontânea, positiva foi-se tornando, com o passar dos anos, uma sombra de si própria. Para o mundo eu era uma rapariga normal, boa aluna, bem-disposta, quando fechava a porta do quarto não sabia o que fazer comigo, com a minha vida. “Um dia as coisas melhoram, e ele muda”, pensava. Só que as coisas pioraram. Muito. A entrada na universida­de obrigou-nos a mudar de cidade, e o facto de termos horários diferentes, e de frequentar­mos universida­des diferentes, acionou um gatilho que até então estava mais ou menos adormecido: a total falta de controlo sobre os meus movimentos. Lembro-me de, um dia, sair de casa e sentir uma presença estranha atrás de mim. “Onde é que tens estado? Porque é que estás atrasada?”, gritou-me, indiferent­e às pessoas que nos ouviam. Tentei seguir caminho, a paragem de autocarro ficava a dois minutos a pé, só que ele insistiu em acompanhar-me, num monólogo carregado de ódio e rancor, onde acabou por deixar escapar que estava ali, na esquina do meu prédio, desde as seis da manhã. Como insisti em ir para as aulas, entrou no autocarro comigo, mas, duas estações depois, foi convidado a sair. Lembro-me de um passageiro se virar para ele e lhe dizer: “Se não deixa a menina em paz, chamo a polícia.” Ele, doente de ciúmes e despeito, atirou o meu telefone para o chão. O motorista mandou-o embora.

A minha memória apagou grande parte das coisas que acontecera­m após essa manhã. Foi tudo muito rápido. Foi tudo muito lento. Foram semanas. Foram horas. Foram anos. O que a minha memória não apagou foi a inocência, e a audácia, com que lhe tentei dizer que não funcionáva­mos, que não éramos felizes juntos. Que o ia deixar, no fundo. E isso foi suficiente para que o “Se acabas comigo, mato-me” se transforma­sse noutro ato de valentia: bater. E este “bater”, note-se, inclui tanto o mais prosaico dos seus sinónimos, “esbofetear”, como os mais honrados, “espancar”, “pontapear”, “esganar”. Fui mandada contra a parede um número incontável de vezes. Tantas quantas ele me disse, joelhos em cima da minha barriga, dedos cravados no meu pescoço, “Atreve-te a deixar-me. Atreve-te.” Depois largava-me, dava-me um estalo ou dois, e dizia qualquer coisa que me deixava “mansa”. E eu deitava-me no escuro, sem saber o que fazer. Quando a minha colega de quarto descobriu só me disse uma coisa, e fê-lo de um modo muito pragmático: “Sai disto já. Agora. Ele não volta aqui. Nunca mais. Eu não deixo.” Não sei se foi a forma como ela o disse, ou se foi pelo facto de saber que alguém estava comigo, do meu lado, finalmente, mas uns dias depois fiz o que nunca pensei fazer. Deixei-o. Quando regressei a casa dos meus pais para passar o fim de semana, recebi uma chamada dele. “Estou cá em baixo. Desce.” Seria poético escrever que fiz uma pausa, enchi o peito de ar e controlei a respiração, mas não foi nada disso. Pela primeira vez em quatro anos, a voz saiu-me firme, sem hesitação. “Não vou descer. Não vou descer hoje, não vou descer nunca mais. Acabou.” Sabia bem o que ele ia responder a isso. “Sabes bem o que acontece se não vieres ter comigo.” Nunca soube. Os monstros, pelo menos alguns monstros, vivem da força que lhes damos, da força que os deixamos ter. Quando essa força se esgota, não são nada mais do que fantasmas. Nada mais lhes resta do que o seu vazio interior.

Várias vezes me imaginei sentada numa sala de tribunal, como se vê nos filmes, para contar a minha história, ter a minha “vingança”. Nesses momentos de delírio, que se prolongara­m por mais de dez anos após o final daquela relação, enchia-me de coragem e enfrentava um juiz que iria consertar tudo o que estava de errado e que me ia “devolver” os quase quatro anos que vivi aterroriza­da, isolada, alienada. Ele ia fazê-lo pagar as sessões de terapia, as consultas de psiquiatri­a, os medicament­os, os dias e noites de sofrimento, de mutilação, em que tentei resgatar a autoestima e em que reaprendi a olhar para mim como um ser dotado de livre arbítrio. Mas depois voltava à realidade e pensava para comigo: “Para quê? O que é que vai mudar? O que é que vai mudar, para ti, agora, passado tanto tempo, sentares-te numa sala de tribunal, cruzares-te com ele? Nada.” É por isso que, mais de 20 anos depois, mantenho o meu silêncio em relação ao quanto me fizeste sofrer. Isso seria dar-te demasiada importânci­a. Terás reparado que em lugar algum é mencionado o teu nome. O motivo é simples: tu já não existes.

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Capa em polipele, Ricardo Preto. Saia em poliéster, Decenio.

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