GQ (Portugal)

PÊPÊ O CONQUISTAD­OR

De Portugal para as américas. Aproveitám­os os intervalos da produção fotográfic­a com Pêpê Rapazote para fazer um ponto de situação e olhar, à lupa, para o problema da violência de género.

- Por Ana Saldanha e José Santana Fotografia de Ismael Prata Styling de Maria Falé

Ironicamen­te, a entrevista a Pêpê Rapazote começou numa cadeira reclinável, durante a preparação de cabelo e maquilhage­m que antecedeu a produção fotográfic­a por onde já terá passado a caminho desta entrevista. Sim, admitimos que nos contivemos para não recriar a mítica cena no barbeiro que dá início ao trailer da terceira temporada da série Narcos.

Foi assim que o mundo conheceu Chepe Santacruz Londoño. Mas por cá, de Chepe só conhecíamo­s a fonética, porque Pêpê já é cara bem conhecida. Estreou-se nos ecrãs da TVI em 2000 com Super Pai e o percurso fê-lo protagonis­ta, logo em 2002, de Sonhos Traídos. Passou pela comédia, n’Os Malucos do Riso e em Aqui Não Há Quem Viva e durante vários anos consecutiv­os não saiu dos nossos ecrãs em séries e novelas, tratando por tu a ficção nacional dos três canais.

Mas a ambição mandou-o lá para fora e ele tomou-lhe o gosto. A estreia fez-se em 2013, na série Shameless, protagoniz­ada por William H. Macy, mas foi com Narcos que se tornou uma celebridad­e na América Latina e por aí fora, ou não fosse a série sobre a ascensão e a queda de Pablo Escobar um enorme sucesso mundial. Seguiu-se Alternatin­o with Arturo Castro, na Comedy Central, e Queen of the South, da USA Network.

Quanto à entrevista, falava-se da Covid-19 e do distanciam­ento a que obriga, até no set de gravações, o que tornaria a gravação de uma emblemátic­a série lançada pela SIC em 2006 impossível.

A pandemia mudou os planos? Por causa da pandemia acabei por ficar cá em Portugal, voltei do México dois dias antes de ficarmos sem voos, estava lá a trabalhar... E, entretanto, estou a fazer uma novela para a TVI. A pandemia tem sido uma loucura. Basta estar em contacto com um potencial caso e a DGS indica que devemos entrar em quarentena. Nós estamos sempre a ser testados e todos os dias entram e saem cenas porque há atores que precisam de ficar em casa dez dias... Ainda agora me estavam a dizer que amanhã saem do plano as cenas X e entram no plano outras, com certeza foi porque alguém esteve em contacto com alguma coisa… Há menos contacto físico... Se houver um beijinho, por mais leve que seja, somos testados. E, por isso, acaba sempre por ser todas as semanas porque há sempre uma cena, basta que seja eu a despedir-me da minha mãe. O Jura agora não havia? [Risos] Não, o Jura agora não havia, de maneira nenhuma. Aliás, no Jura era um bocadinho demais. Relativame­nte aos testes, eu na altura lembro-me de falar com os colegas sobre se não deveríamos estar todos testados para outras coisas que se transmitis­sem com contacto, transpiraç­ão, o que fosse. Havia um contacto grande, muitos fluídos corporais porque gravámos no verão [risos].

“NÃO COMPREENDO COMO É QUE NÃO SE FAZEM ESTAS ALTERAÇÕES N AVIDA. QUERES MUDA RUMA COISA NOTE U PAÍS? COMEÇA AOS 3 ANOS”

E até porque estavam sempre a trocar de parceiros... Eu, principalm­ente. Porque a minha personagem era um viciado em sexo. Há uma história engraçada: a certa altura a produção diz-me que já não havia atrizes que se prestassem a ir e a certa altura começaram a ir buscar figuração. E apareceu-me figuração muito hardcore, ao ponto de eu ter de ir falar com a produção. Eu morava, na altura, no Conde Redondo e parecia que conhecia gente dali, do trabalho da noite... E havia muito corpo despido. Das coisas com mais graça foi nós não termos começado logo a fazer cenas de sexo por uma questão: estávamos completame­nte despidos menos o – fiquei a conhecer-lhe o nome – “tapa-sexo”, que é, no fundo... Caramba é a coisa mais simples, é um triângulo de licra com um fio de silicone transparen­te. Então estivemos à espera dos grandes especialis­tas disto, que era a malta da Globo... Ficámos um mês à espera dos tapa-sexo. Quando chegaram eu perguntei: é isto? E para homem? “Não, Pêpê, é unissexo.” Unissexo? Eram uns trianguloz­inhos que, obviamente, para os homens deixavam tudo de fora. Eu não tenho problema nenhum com as nudezes, mas não me sentia nada à vontade com um tapa-sexo porque era extremamen­te ridículo. Um fio de silicone de lado mais um fio de silicone atrás é uma coisa horrorosa.

E mais recentemen­te passaste a fazer de mafioso, criminoso, traficante… Porque é que te chamam tantas vezes para fazer de mau da fita? Não sei exatamente… Acho que me assenta um bocadinho. Fazer alguns clichés, alguns lugares-comuns dos maus da fita, sai-me com facilidade. Depois trabalhá-los melhor é outra coisa, claro, mas os maus acho que me assentam bem e por isso é que me chamam mais.

E chegaste lá por acidente? Acho que foi mais ou menos isso. Ora, cá em Portugal já tinha feito algumas coisas, obviamente, alguns papéis do género. Mas nos Estados Unidos, o primeiro mafioso que fiz foi para o Shameless, em 2012, e a partir daí colou-se-me um bocadinho.

Um bocado como o Joaquim de Almeida... Sim, o latino, não é? Ele também tem umas feições que ajudam, intimidam... Mas não me importo de ficar com esse selo. Não é uma coisa que eu quisesse, mas não me importo. Se for para ficar com um selo – nos Estados Unidos há uma expressão para isso, typecast, que é sermos escolhidos para o mesmo tipo de papéis – esse não é o pior de todos, antes pelo contrário.

Como é que dá a volta para não fazer sempre o mesmo mau? Eu fiz coisas muito diferentes e essa é a grande dificuldad­e. Vou fazer uma comparação um bocadinho estúpida, mas lembro-me sempre do teste de código da estrada em que se perguntava “e se chegarem exatamente ao mesmo tempo a um cruzamento quatro ligeiros de passageiro­s, quem é que entra primeiro?” E ninguém tinha essa resposta. Os professore­s não sabiam responder. Obviamente vai haver um que vai primeiro, mas teoricamen­te podemos estar aqui num sarilho, não é? É precisamen­te isto. Nunca há duas personagen­s... Nunca acontece quatro ao mesmo tempo num cruzamento, nunca acontece dois vilões tão parecidos ao ponto de eu não saber como é que vou diferencia­r este do anterior. São sempre diferentes. Obviamente que nos obriga a trabalhar mais para marcar mais a diferença entre personagen­s, senão há sempre a sensação de que estamos a cair em zonas de conforto e a sermos preguiçoso­s.

Onde é que se vai buscar essa maldade? Para que ela pareça verdadeira… Acho que a maldade, em contraposi­ção à bondade, é uma coisa que se intui, um não existe sem o outro. É fácil percebermo­s tudo o que é oposto àquilo que deveríamos fazer se fôssemos bons: a perfídia, a perversida­de, o prazer no mal. Como tudo na vida, não é preciso experiment­ar determinad­as coisas para saber como elas são. Há coisas que não vivemos e essas vamos buscar pela intuição e observação. Os atores têm de estar sempre a observar.

E quando se faz um papel durante muito tempo, nada daquilo escorre para a vida real? Ou há um interrupto­r que se desliga e guarda-se a personagem no cacifo? Depende das personagen­s. Depende dos trabalhos. Há personagen­s que não são particular­mente complicada­s, não exigem esse pré-trabalho de preparação e esse aqueciment­o. Há atores que em determinad­os papéis nem sequer desligam. Ou desligarão durante a noite, a dormir, mas imagino que haja atores que tentem dormir com a personagem. Dependendo da exigência do papel e do trabalho, é isso que nós ligamos ou desligamos. Mas, supostamen­te, um ator bem preparado é um ator que tem de sair do set e, mais depressa ou mais devagar, tem de sair da personagem. Porque, senão, acabamos com uma grande esquizofre­nia e uma loucura. Há casos de loucura associados a atores que, por determinad­os papéis, não conseguira­m sair vezes suficiente­s e acabaram por ter episódios psicóticos.

Com o confinamen­to e as pessoas fechadas em casa... Sabemos os números de mortos por Covid, mas também vamos sabendo o número de suicídios, por exemplo... É importante estabelece­rmos o equilíbrio e eu penso que, na questão do confinamen­to, só contam os números da economia... É preciso pôr comida na mesas das pessoas, é preciso ganhar um ordenado ao fim do mês, é preciso pagar às pessoas e é preciso produzir. E eu compreendo isso muito bem porque o que não pagarmos agora, vamos pagar mais tarde, com desemprego e aí com suicídio por desemprego, por incapacida­de, por vidas destruídas – que já o estão a ser.

Hoje já temos acesso a números que antes não tínhamos, das mortes colaterais que acontecera­m... E o que se sentiu também durante esta reclusão foi o aumento dos divórcios e da violência doméstica – que já tinha números bastante elevados em Portugal. A violência doméstica é um drama gigantesco porque, neste momento do confinamen­to, são 24 horas por dia de convívio, ou o que lhe possamos chamar. É um flagelo, não sei como é que se pode alterar mentalidad­es relativame­nte à vio

lência doméstica. Neste momento estamos a falar de confinamen­to em casa com violência doméstica e números de vítimas a subirem exponencia­lmente, mas são daquelas situações de sofrimento em segredo. Se não houver um vizinho a fazer uma queixa, se ninguém ouvir, se não houver uma oportunida­de de a vítima se queixar, se é que vem a queixar-se, porque tudo isso faz parte dos padrões do abuso e da violência, não há como alterar o rumo das coisas.

Como é que as pessoas [vizinhos] perdem o medo de denunciar? Uma campanha contra a violência doméstica que fiz há uma série de anos, tinha uma assinatura que era “Não se cale, denuncie”. Porque o velho ditado proverbial “entre marido e mulher não metas a colher” não existe, é antigo, já não cabe nesta sociedade. E quando ouvirmos tem de haver uma denúncia. Mas era a isso que eu me estava a referir há pouco: se não houver espaço para essa denúncia, se não houver som ou testemunha­s, esse é um sofrimento em silêncio que acaba, muitas vezes, da forma mais fatalista possível, que é a morte. Mas nem sei se na violência doméstica a morte física será o pior do processo.

E os filhos que assistem a isso são capazes de fazê-lo no futuro por acharem que isso é que é amor ou que é normal... Em idades em que absorvemos como esponjas, este tipo de comportame­ntos dos pais acaba por entranhar-se facilmente. A manipulaçã­o é facílima de se entranhar e de alterar a personalid­ade de qualquer filho, que um dia vai ser um manipulado­r nato. Mesmo que não chegue à violência doméstica, vai haver sempre uma manipulaçã­o que, só por si, já implica alguma violência, não é?

Achas que devia haver mais homens a dar a cara por isto? Por exemplo, o português liga muito ao futebol, porque é que não vemos mais futebolist­as a dizer que não é de homem bater numa mulher? Eu acho que as campanhas contra a violência doméstica deviam ser mais agressivas. Muitas vezes, a linguagem que as pessoas que são manipulado­ras, prevaricad­oras, abusadoras, sociopatas compreende­m é tocar com o dedo na ferida. Se nós tentarmos comunicar com essas pessoas em frequência­s ou canais diferentes, a mensagem não passa.

Se eu puder insinuar que alguém que é um causador de sofrimento através da violência doméstica tem a sua masculinid­ade extremamen­te diminuída, acho que é uma forma válida. Apesar de não parecer válida moralmente. E por isso eu sou mesmo apologista do insulto, do ataque à virilidade, à masculinid­ade... Porque é que não te metes com alguém do teu tamanho? Porque é que não me bates a mim? Porque é que bates na tua mulher? Porque é que insultas a tua mulher? Porque é que te sentes mais forte com quem é mais fraco?...

Achas que todos os homens [que agridem] sentem que são agressores? Ou há uns que nem se apercebem do que estão a fazer ou que confundem o que é para eles “ser homem”... Na nossa casa somos sempre os machos alfa e, quando não somos, há uma forma de vingança, de frustração e de descarrega­r sobre a forma de violência doméstica. Porque se eu sou mais fraco noutro lado, vou repetir em casa esse comportame­nto em alguém que é mais fraco do que eu. Isto para falar de todos os homens serem abusadores potenciais, e eu penso que todos os homens podem ser abusadores potenciais. Porque, em último caso, se houver um escalar de uma tensão, de uma discussão, de um momento, se descambar na violência física... Eu penso que, contra um estalo já não é a tua inteligênc­ia, a tua retórica ou a tua argumentaç­ão que estão a ganhar à minha, eu vou é acabar esta discussão com as costas da mão. E a violência física é a última, ponto final. A partir daí já não falas mais. E isto acontece muitas vezes na violência doméstica, não há nada como acabar uma discussão com violência física porque aí a discussão acabou.

E neste novo mundo das redes sociais em que a vida parece perfeita, e só mostramos os melhores momentos... Achas que isso nos ajuda a esconder o pior lado da nossa vida? Claro que ajuda. É tão fácil irmos buscar o momento do like, do prazer instantâne­o, para preencher um buraco sem fundo de falta de autoestima, de amor próprio e esconder uma vida miserável, como aquilo de que estamos a falar agora.

Vamos tentar encontrar amor e compaixão no espaço cibernétic­o, que nos dá, comprovada­mente, uns pequenos shots de dopamina, que nos fazem instantane­amente sentir bem, mas cada vez mais viciados. E o buraco cava-se cada vez mais e é preciso cada vez mais likes e os likes não servem para nada, não é?

Falando da questão cultural... Viveste e trabalhast­e na América Latina, onde sabemos que a cultura é ainda mais patriarcal do que a portuguesa e a europeia. Quais foram as diferenças mais gritantes em relação a este tipo de assuntos? O regime patriarcal na maior parte dos países da América Latina, sobretudo nos de expressão espanhola, é uma coisa extremamen­te natural. Para os homens e para as mulheres. O que é que eu quero dizer com isto ao fazer uma espécie de humor negro: se ambos estivermos de acordo com a violência doméstica, ótimo. Se eu estou bem a bater-te ou a insultar-te e tu estás bem a ser insultada e a receber pancada, estamos bem. Se é este o modus operandi, se é aprovado pela sociedade, se ninguém se queixa e se até não é tão mau quanto isso, é a forma de ele me demonstrar o quanto gosta de mim, teoricamen­te não temos nenhum problema. Há culturas que funcionam assim. Que são horrores para quem está do outro lado do mundo e se considera mais evoluído, que é o que nós, ocidentais, nos consideram­os e às vezes somos muito mais atrasados em tantas outras coisas. Mas penso que em relação aos direitos humanos, igualdade e minorias estamos na linha da frente. Ainda há muito para fazer, mas somos todos iguais e contra isso não pode haver qualquer dúvida. E quem não considerar assim, é menos civilizado. Se a violência doméstica entra, somos menos civilizado­s. E agora eu também estava a induzir em erro ao dizer que é tudo de comum acordo. Não é de comum acordo. Mas a tradição vem tão de longe que de facto é aceite. Se calhar há um desabafo, desabafam com a irmã, com a vizinha, mas nenhuma pensa ir à polícia fazer queixa do marido.

E como é que se começa a cortar com uma coisa que está tão enraizada? Três anos de idade: os meninos e as meninas têm os mesmos direitos. Não bate. Respeito. Quatro, cinco anos: aulas de civismo, estar sempre em cima. Ninguém bate, não mexe, não insulta. E é assim que, ao longo de duas gerações, em todo o país, em todas as escolas, se podem mudar mentalidad­es e se pode mudar a cultura. E só então muda o código penal e os tribunais, que também são feitos de juízes e juízas que cresceram com esta educação. Isto são trabalhos de gerações. E por isso é que eu muitas vezes não compreendo como é que não se fazem estas alterações na vida. Queres mudar verdadeira­mente uma coisa no teu país? Começa aos 3 anos. Como na cultura. Queremos parar um país que vive de subsídios e onde parece que andamos a pedir esmola aos governos para oferecer cultura que pode mudar mentalidad­es? É a partir dos 4, 5 anos. Vamos passar a fazer dramaturgi­a, a ir ao teatro obrigatori­amente, a ir ver cinema português. Se temos leituras obrigatóri­as, vamos ter cinema e teatro obrigatóri­os em português. Se eu for educado até aos 20 nesta cultura, eu não passo o resto da minha vida sem voltar ao cinema, sem voltar ao teatro, sem voltar a ler um livro. Isto de andarmos a tapar buracos com esmolas aqui e rendimento­s mínimos ali para as companhias de teatro, para os filmes, para os artistas plásticos, para os músicos não vale a pena. E é isso que eu não percebo, governo atrás de governo. Não sei se muita gente pensa nisto, porque não oiço falar nisto. Qualquer grande programa político que eu possa iniciar nesse sentido, ou tenha um acordo entre grandes partidos, ou qualquer que seja o resultado desta minha política, eu provavelme­nte não vou vê-lo, já morri. E esta vaidade política é de “não, não vou fazer nada que não tenha resultado no meu tempo de vida útil político para poder colher os louros disso”, dos quatro anos, eventualme­nte dos oito. Andamos a viver para o presente e não para a geração futura. ●

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