A VIOLÊNCIA NA PANDEMIA
Os efeitos da pandemia foram sentidos por todos. Mas também há situações em que ficar fechado em casa não é seguro. Como é que o efeito do confinamento se reflete em número de casos de violência doméstica?
“O VELHO DITADO ‘ENTRE MARIDO E MULHER NÃO METAS A COLHER, JÁ NÃO CABE NESTA SOCIEDADE”
Não passaram despercebidas as campanhas de sensibilização para o possível aumento de casos de violência doméstica que se previa para os meses de confinamento obrigatório, mas esse aumento não se verificou nos registos disponibilizados pela PSP e pela GNR. Isso significa que as pessoas se contiveram nos pedidos de ajuda devido à situação de isolamento em que estavam e ao receio de a piorar ou a diminuição dos números bate certo com a realidade? Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área de violência doméstica na APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), explica que ainda é cedo para conseguir estabelecer conclusões e afirmar se os números aumentaram ou diminuíram no que toca a denúncias e casos de violência doméstica. “O que consigo concluir ao olhar para este ano é a existência de três momentos diferentes. Temos o início do ano, até meados de março, em que as coisas correram dentro da normalidade. O número de pedidos de apoio estava a subir e não nos podemos esquecer que viemos de 2019 em que a palavra do ano foi ‘violência doméstica’, tendo sido marcado por um aumento de homicídios em contexto de violência na intimidade. Depois, a partir do momento em que se colocam os dois primeiros estados de emergência há claramente uma diminuição nos novos pedidos de apoio, o que se reflete também nas denúncias feitas junto das forças de segurança que diminuíram bastante, em comparação com o mesmo período de 2019. A partir de maio, quando se volta ao trabalho presencial, começámos a ver um fluxo de novos pedidos de apoio a surgirem. Vimos que, de uma forma geral, o número de pedidos de ajuda aumentou, tanto junto de nós (APAV) como junto da polícia.”
AS GRANDES VÍTIMAS DE QUALQUER EPIDEMIA SÃO AS MULHERES E AS CRIANÇAS
Por que razão terão os números diminuído contra todas as previsões? Daniel Cotrim refere algumas hipóteses. “As pessoas estavam obrigadas ao confinamento, havendo uma maior dificuldade por parte das vítimas em pedir ajuda. Verificámos também um novo tipo de situação, com a pandemia a trazer várias dificuldades económicas e sociais e, portanto, um efeito semelhante àquele que aconteceu na altura da crise económica. A pandemia ataca fortemente as mulheres e as que estavam em situação de risco elevado tinham muito medo de sair de casa e procurar abrigo. As mães não costumam sair de casa no período escolar, porque não querem retirar os filhos da escola. Outra hipótese para o aumento de casos em maio e junho deste ano é o facto de esse período ter correspondido ao fim do ano letivo. Isto acontece, porque as mulheres se sentem um pouco mais seguras para saírem de casa com os seus filhos.” O psicólogo da APAV refere que a pandemia passou a ser a prioridade, o que facilitou a vida aos agressores. “As vítimas de violência doméstica tinham mais dificuldade em pedir ajuda porque estavam controladas pelo agressor 24 horas sobre 24 horas. Para a pessoa agressora, o período de confinamento foi como uma lua de mel, porque a vítima estava com o agressor o tempo todo, tinha-a sempre sob controlo. E, infelizmente, acreditamos que o número de pessoas que não tiveram oportunidade de pedir ajuda foi elevado, mesmo tendo-nos (APAV) preparado para reforçar o apoio à distância.”
A diminuição no número de casos e denúncias verificado no início da pandemia torna-se fácil de compreender quando Daniel Cotrim confirma que em meados de setembro se volta a verificar uma diminuição dos pedidos de apoio, em comparação com os meses de setembro e outubro de 2019. “Verificou-se uma diminuição nos pedidos de ajuda porque entrámos novamente num período de incerteza. Neste momento temos uma estabilização dos números e, possivelmente, uma tendência a voltarem a diminuir, isto porque as vítimas se veem novamente fechadas em casa com o agressor.” “Foi um período atípico e que tem de ser analisado com ‘olhos de ver’. Neste momento ainda estamos a viver esta situação. Tivemos três ou quatro meses para respirar, em que as pessoas pediram ajuda, e deu para reorganizar o que aí vinha. Sentimo-nos agora mais preparados para lidar com este novo confinamento. Hoje, começamos a verificar um novo aumento, porque é a acumulação de casos já existentes com os que se denunciaram em maio e junho no levantamento das restrições.”