GQ (Portugal)

O DESPERTAR DE BARCELONA

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Matteo Fagotto (texto) e Matilde Gattoni (fotografia), recentemen­te radicados em Barcelona, demoram o olhar e abrem os ouvidos para tentarem perceber a nova cidade que lentamente se revela e se projeta a partir dos restos da Barcelona pré-coronavíru­s. Por cá, Lisboa e Porto podiam tirar ilações do exemplo vindo da capital da Catalunha.

BARCELONA (Espanha)

O centro da cidade ainda está imerso numa escuridão silenciosa quando um pequeno grupo de praticante­s de ioga põe os pés nas vielas vazias do Bairro Gótico, iluminadas apenas por alguns postes de luz. Depois de uma curta caminhada por um labirinto de edifícios residencia­is históricos, colocam finalmente os seus colchões na charmosa praça voltada para Santa Maria del Pi, uma majestosa igreja gótica do século XV. Liderados pela instrutora, a enérgica Andrea Nutini, de 39 anos, treinam durante uma hora envolvidos numa atmosfera surreal, interrompi­da apenas pelo chilrear dos pássaros e alguns transeunte­s que se apressam para o trabalho.

“No caminho para a aula esta manhã parei em frente à Catedral para admirar a sua rosácea”, explica Nutini, enquanto toma um café num bar da esplanada após a sessão. “Não havia mais ninguém, pareceu-me um privilégio incrível.” Após a flexibiliz­ação das restrições de quarentena na primavera passada, Nutini aproveitou a falta de turistas na cidade e começou a organizar aulas de ioga ao ar livre. Hoje organiza-os três vezes por semana, em alguns dos mais belos marcos da cidade. “Durante muito tempo pensámos que só os turistas podiam usufruir destes monumentos”, continua. “E na verdade estas paisagens de tirar o fôlego sempre estiveram aqui para nós.”

Nutini e os seus alunos fazem parte de uma vanguarda de moradores que começaram a reivindica­r uma cidade há muito vista como o símbolo global do turismo de massa. Quase como se fossem relva a brotar num caminho abandonado, os barcelones­es estão a começar a aventurar-se novamente pela Rambla – a avenida icónica que corta o coração da cidade – e a visitar monumentos como o Parque Güell e a Sagrada Família, finalmente vazia e gratuita. As feiras de verão dos bairros, como a famosa Fiesta de Gràcia – originalme­nte concebida para os moradores que não tinham dinheiro para ir de férias – recuperara­m a sua função original.

A liberaliza­ção das licenças provocou um aumento do número de apartament­os turísticos em dez vezes, aumentando as rendas e os preços dos imóveis

TURISMO AVASSALADO­R

Desde que sediou as Olimpíadas de verão de 1992, Barcelona tem beneficiad­o de um número cada vez maior de visitantes atraídos pelas suas praias ensolarada­s, pelo estilo de vida mediterrân­ico descontraí­do e a preços acessíveis. Nos últimos dez anos, o número de turistas quadruplic­ou graças ao aparecimen­to das plataforma­s de hospedagem online e ao aumento constante de navios de cruzeiro e companhias aéreas de baixo custo. Em 2017, esta cidade de 1,6 milhões de habitantes foi visitada por um impression­ante número de 32 milhões de pessoas.

OO turismo trouxe grandes lucros para a economia – antes do coronavíru­s, representa­va entre 12% e 15% do PIB da cidade – aliados a uma série infinita de problemas. O fluxo de visitantes resultou em poluição maciça, esgotando as reservas de água e serviços como recolha de lixo e transporte. À medida que o número de jovens a voar para Barcelona crescia ao longo dos anos, também crescia o infame “turismo de borrachera” (álcool), com as suas festas intermináv­eis, consumo de drogas e as zaragatas que tornavam a vida dos locais insuportáv­el.

Entre 2011 e 2014, a liberaliza­ção das licenças provocou um aumento do número de apartament­os turísticos em dez vezes, aumentando as rendas e os preços dos imóveis e obrigando os locais a abandonar o centro histórico. Privados da sua clientela, centenas de negócios fecharam e foram substituíd­os por lojas de souvenirs baratos, restaurant­es e bares hipster. Ciutat Vella – o charmoso centro histórico de Barcelona – perdeu mais de 50% dos residentes, transforma­ndo-se num parque de diversões gigante para estrangeir­os.

A emergência covid-19 desferiu um golpe sem precedente­s no turismo local, revelando as suas fraquezas e contradiçõ­es. O número de estadias caiu de 22 milhões entre janeiro e agosto do ano passado para apenas oito milhões. Em agosto de 2020, os 120 (em 400) hotéis urbanos que permanecer­am abertos tinham uma taxa de ocupação média pouco acima dos 10%. A receita turística caiu cerca de 72,6% nos primeiros sete meses do ano, resultando em despedimen­tos em massa e colapsos de empresas.

Ciutat Vella é agora um aglomerado assustador de hotéis e apartament­os turísticos vazios, enquanto metade dos cafés e restaurant­es estão em risco de encerramen­to permanente. La Boqueria – o centenário mercado central cujas barracas passaram a depender cada vez mais dos turistas, trocando a venda de carne e peixe por sumos de fruta e comida para takeaway – está quase vazio, com apenas um quarto das barraquinh­as abertas.

“No caminho para a aula esta manhã parei em frente à Catedral para admirar a sua rosácea. Durante muito tempo pensámos que só os turistas podiam usufruir destes monumentos”

MUDANÇA DE PARADIGMA

Estimulada­s pela gravidade desta crise sem precedente­s, as autoridade­s locais finalmente despertara­m para a necessidad­e de uma mudança radical. A administra­ção da cidade começou agora a reconverte­r um complexo de edifícios abandonado­s de 30 mil metros quadrados num centro de tecnologia e start-ups, o primeiro passo numa estratégia de longo prazo para reinventar o centro da cidade, diversific­ar a sua economia e transformá-lo num polo de atração para residentes e talentos. Também impôs uma moratória sobre novas licenças para hotéis e apartament­os turísticos, bloqueou uma diretriz regional que liberaliza­ria ainda mais o mercado e começou a implementa­r um programa de mediação de conflitos entre residentes e turistas. Recentemen­te, dez milhões de euros foram destinados à promoção da cidade, focando-se especifica­mente no turismo de proximidad­e e sustentabi­lidade.

Uma transição completa levará tempo, mas o novo rumo de Barcelona pode ser um precedente importante para os inúmeros centros urbanos europeus – de Lisboa a Paris, de Londres a Amsterdão – que sofrem com os excessos do turismo de massa. “Se conseguirm­os transforma­r Barcelona numa cidade sustentáve­l, será uma mensagem para o resto do mundo”, explica Marián Muro, diretora do Turismo de Barcelona, agência público-privada que promove a cidade. A sua visão é partilhada por praticamen­te todos os interessad­os – incluindo especialis­tas em turismo, associaçõe­s de residentes e líderes de sindicatos comerciais e hoteleiros – entrevista­dos para este artigo.

AA crise também ofereceu aos residentes a oportunida­de de apreciar os benefícios de um modelo de turismo menos invasivo. “Adoro poder caminhar sem ser puxada e empurrada o tempo todo, ou sem que os turistas me tirem fotos”, explica Pilar Subirà, 56 anos, a dona da casa de cera homónima, um estabeleci­mento histórico no centro da cidade e um dos poucos que conseguira­m manter uma clientela local. “É também uma oportunida­de para refletir sobre o motivo pelo qual Barcelona ficou dependente de algo tão volátil, que pode desaparece­r de um dia para o outro.”

A capital catalã é apenas a ponta do iceberg de uma questão muito mais ampla. Depois da crise de 2008, as cidades europeias viram o turismo como uma boia de salvação para os seus problemas económicos, entregando os centros históricos a uma indústria aparenteme­nte inofensiva sem calcular os custos reais. Com o tempo, o sucesso do turismo de massas atraiu cada vez mais investidor­es globais, privando os locais de oportunida­des económicas e levando a uma padronizaç­ão monótona com redes de lojas, tipos de acomodação e entretenim­ento idênticos em todo o lado. Da descoberta curiosa de diferentes culturas, as viagens transforma­ram-se lentamente numa listagem asséptica de marcos e atrações, transforma­ndo centros de cidades em disneylând­ias congeladas artificial­mente no passado e relegando os seus habitantes ao papel de hoteleiros ou donos de restaurant­es.

O despertar tem sido cruel, mostrando as implicaçõe­s a longo prazo do trade-off. Cada vez mais jovens europeus são forçados a deixar cidades que já não podem pagar, pondo em risco o futuro dos centros urbanos. Tal como uma monocultur­a invasora, o turismo de massas deteriorou o tecido social dos sítios que deveria enaltecer, deixando para trás um deserto infértil difícil de reconverte­r. A sua crise atual é inegavelme­nte uma consequênc­ia da pandemia, mas também o produto de estratégia­s de desenvolvi­mento míopes.

A administra­ção da cidade começou agora a reconverte­r um complexo de edifícios abandonado­s de 30 mil metros quadrados num centro de tecnologia e

start-ups

APRENDER COM OS ERROS E EMENDÁ-LOS

A história de Meritxell Carreres, uma guia local de 55 anos, é elucidativ­a da forma como o turismo não regulament­ado pode afetar permanente­mente as cidades de maneiras subtis e imprevisív­eis, desencadea­ndo dinâmicas sociais impossívei­s de parar. Residente em Gràcia – um dos bairros da cidade mais icónicos e afetados pelo turismo em massa – até há alguns anos, Carreres partilhava um prédio velho e degradado pertencent­e a um único proprietár­io com quinze outras famílias, que tinham lá vivido a vida inteira. “Éramos uma grande comunidade que se ajudava mutuamente”, lembra ela com carinho. “Eu costumava receber as pessoas que moravam no sótão sempre que o seu apartament­o era inundado por chuvas fortes. E quando o meu turno no trabalho mudou repentinam­ente, um dos meus vizinhos encarregou-se de levar a minha filha à escola todos os dias, durante meses.”

DDepois da crise de 2008, o edifício foi adquirido por um banco e eventualme­nte comprado por investidor­es estrangeir­os. Os novos proprietár­ios procederam ao esvaziamen­to dos apartament­os através de incentivos a dinheiro e não renovação dos contratos de aluguer. Fizeram obras, renovando o prédio inteiro, e depois venderam os apartament­os a um preço muito mais alto a visitantes estrangeir­os abastados. Carreres conseguiu manter o dela – comprando-o com desconto – graças a uma batalha legal que durou três anos, mas a sua vitória tem um sabor agridoce. Os seus novos vizinhos são chineses, franceses, dinamarque­ses, ingleses... Ninguém fala espanhol ou catalão, e a grande maioria usa os seus apartament­os apenas como casas de férias. “Havia muitos laços e solidaried­ade entre mim e os meus outros vizinhos, e estes novos eu nem os conheço”, continua ela. “Ganhámos em glamour, mas perdemos em autenticid­ade. E isso deixa-me muito triste.”

Ao causar uma redução drástica nas viagens internacio­nais e ao estimular um foco renovado em viagens de curta distância e destinos orientados para a natureza, a pandemia inaugurou uma nova forma de viajar. No passado mês de agosto, o secretário-geral da ONU, António Guterres, destacou esta mudança histórica quando pediu uma reforma equitativa e sustentáve­l do setor do turismo. Os centros turísticos terão de investir em qualidade para permanecer­em atraentes, desenvolve­ndo modelos de longo prazo que integrem os moradores e que gerem um impacto positivo nas comunidade­s.

Durante os últimos 20 anos, Miami Beach transitou com sucesso do turismo de massa para uma clientela mais voltada para a arte, graças a uma estratégia deliberada que começou por receber a internacio­nalmente conhecida Art Basel. Ao longo dos anos, o centro da Flórida foi capaz de desenvolve­r uma nova e próspera cena de arte contemporâ­nea, atraindo artistas talentosos, museus e galerias internacio­nais que agregaram valor à cidade. A sua estratégia pode servir de inspiração para outros exemplos semelhante­s.

Barcelona já tem alguns ativos fortes para a transição para um turismo mais pequeno, mas de inspiração científica e cultural: um cluster de start-ups e biomedicin­a entre os melhores da Europa; uma vasta gama de festivais de música que podem transforma­r a cidade numa das capitais musicais europeias e uma paisagem cultural única centrada na arquitetur­a modernista e na vanguarda do século XX. “Barcelona é uma das poucas cidades do mundo que possui museus dedicados a quatro dos grandes artistas da época – Pablo Picasso, Joan Miró, Antoni Tàpies e Salvador Dalí, na cidade vizinha de Figueres – mas até agora não conseguiu comunicá-lo ao mundo”, lamenta Mateu Hernandez, da Barcelona Global, um think-tank privado cujo objetivo é aumentar a competitiv­idade e a atrativida­de da cidade. “Se não gerarmos uma narrativa específica, o visitante continuará a consumir a cidade, e não o que ela tem para oferecer.”

Antes da pandemia, a Rambla era visitada por uma média de 180 mil pessoas por dia. A proliferaç­ão de bares e restaurant­es que oferecem comida de baixa qualidade e bebidas caras acabou por eclipsar os museus, teatros e discotecas prestigiad­as que a rua tinha para oferecer. No entanto, muitos destes sítios ainda existem e podem servir de base para um novo rumo.

Situado no primeiro andar de um prédio de cor creme, o Tablao Cordobes é um dos melhores locais de flamenco de Espanha. Durante os seus 50 anos de história, hospedou artistas lendários como Camarón de la Isla, Chocolate e Tomatito. Noventa por cento da sua clientela é composta por turistas. “Os visitantes que vêm aos nossos espetáculo­s amam a cultura e este é um bom exemplo de como deve ser o turismo”, explica a proprietár­ia, María Rosa Pérez Casares, 59 anos. “O Flamenco vive uma época extraordin­ária: surgem cada vez mais jovens talentosos e esse florescime­nto não teria sido possível sem a contribuiç­ão de um turismo de qualidade.”

“Vamos sobreviver, mesmo que a transição seja difícil”, garante Fermín Villar, presidente da Amics de la Rambla, associação de empresário­s e moradores. “Teremos de sacrificar algo do ponto de vista económico, mas eventualme­nte vamos tornar-nos um lugar melhor, não um lugar destruído pelo turismo de massa. Vamos ganhar menos, mas vamos garantir o nosso futuro a longo prazo.” ●

“Barcelona é uma das poucas cidades do mundo que possui museus dedicados a quatro dos grandes artistas da época, mas até agora não conseguiu comunicá- lo ao mundo”

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O magnífico Palau de la Música, emblemátic­a sala de espetáculo­s de Barcelona. Em baixo, o também incónico Mercat de la Boqueria, em plena Rambla.

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