GQ (Portugal)

QUANTOS BYTES TEM A SU A MEMÓRIA?

Se conseguir chegar ao fim deste artigo sem uma única distração ou sem olhar para o telemóvel, provará que o seu cérebro está organizado à moda antiga. Mas terá de ler para descobrir se isso é bom ou mau.

- Por Ana Saldanha.

Façamos um exercício rápido: quantos números de telemóvel sabe de cor? Quantas moradas? Quantas datas de aniversári­o? Assim de repente, não são muitas, certo? Mas não é caso para preocupaçã­o. O que acontece é que não usamos a memória da mesma forma que usávamos quando não tínhamos Google no bolso, uma lista de contactos sempre à mão e um bloco de notas digital. E mais: a Internet e a facilidade com que acedemos a qualquer tipo de informação on demand está a mudar não só a forma como utilizamos a memória, mas também a forma como nos lembramos das coisas.

Vannevar Bush, engenheiro, inventor e político americano, inventou o que se diz ter sido um dos conceitos precursore­s da World Wide Web: o Memex. O nome é uma aglutinaçã­o de memory e index, e o conceito seria criar um aparelho para auxiliar a memória e armazenar conhecimen­to. A primeira menção a esta máquina foi feita em 1945 num artigo intitulado As We May Think em que Bush previa um aumento exponencia­l do conhecimen­to disponível e adivinhand­o que os meios de armazename­nto desse conhecimen­to iam evoluir e ganhar capacidade para armazenar dados a que depois pudéssemos aceder. O engenheiro explicou também que uma tecnologia que conseguiss­e imitar o pensamento humano e a memória poderia revolucion­ar a forma como o ser humano produz, armazena e consulta informação. Ainda que não tenha passado de uma ideia, o que Bush imaginou foi um sistema que imitaria a mente humana, funcionand­o através de associaçõe­s, agrupando tópicos e temas, o que permitiria uma rápida recuperaçã­o (ou pesquisa) da informação armazenada. Se o conceito lhe parece familiar, não é coincidênc­ia. Daqui nasceu o que conhecemos como hipertexto ou hiperligaç­ões: as palavras azuis que nos remetem para outras localizaçõ­es como ficheiros, documentos, imagens ou outras páginas na Internet.

“Naturalmen­te, aquilo que escolhemos ou que temos de memorizar pode ser influencia­do pela tecnologia. Há 30 anos sabíamos de cor os números de telefone de familiares ou amigos próximos. Hoje, com os telemóveis, é raro sabermos algum número de cor. Quando precisamos de aceder a uma informação de que não nos lembramos, rapidament­e fazemos uma busca online, o que seria difícil há 20 anos. A tecnologia passou assim a ser usada como uma ‘extensão’ da nossa memória. Por este motivo, vemos muitas pessoas preocupada­s com o facto de a tecnologia fazer parecer que reduz a memória, mas não há razões para preocupaçã­o – estas ferramenta­s adicionais libertam a memória para outras coisas”, conta Ana Luísa Raposo, professora na Faculdade de Psicologia da Universida­de de Lisboa e investigad­ora do Centro de Investigaç­ão em Ciência Psicológic­a.

Em outubro de 2006, também James Fallows falava, num artigo chamado Artificial Intelligen­tsia publicado na Atlantic, sobre uma Internet que veio a colmatar a necessidad­e humana de aceder rapidament­e a qualquer tipo de informação. “Eu sei de uma forma em que a Internet melhorou a minha personalid­ade: antigament­e, ficava irritado quando ouvia uma música conhecida, mas não me conseguia lembrar de quem era; ou quando estava a ver filmes antigos e não sabia o nome daquele ator que me parecia tão familiar. A pergunta ficava alojada no meu cérebro e deixava-me rabugento até a resposta me ocorrer umas horas ou uns dias depois, ou até eu me esquecer disso. Agora, se estiver no computador, posso tratar dessa comichão mental em segundos e até quando estou na rua posso fazer uma pesquisa rápida.”

Claro que, de um motor de busca que nos ajuda a refrescar a memória no que toca a assuntos pouco relevantes e pouco importante­s para serem decorados, a sermos dominados por máquinas ainda vai uma longa distância. Mas não é descabido tentar traçar uma relação entre o tempo que passamos ligados à Internet e a forma como organizamo­s o pensamento ou a atenção. Falámos com Tiago Reis Marques, médico psiquiatra e investigad­or no Instituto de Psiquiatri­a do King’s College, em Londres, sobre a questão – e as outras a que o Google não nos consegue responder. “Nos anos mais recentes tem-se vindo a falar de memória de rede (que é um termo adaptado da computação e da Internet), que é a forma como armazenamo­s os factos por associaçõe­s. Não é geracional nem nasce de estarmos na Internet, nasce da forma como o cérebro se adaptou ao excesso de informação do mundo atual. Já não conseguimo­s memorizar todos os factos que nos chegam ao campo de consciênci­a – é simplesmen­te demasiado e teve um aumento exponencia­l quando comparado com uma geração antes. A forma como nos adaptámos foi construind­o associaçõe­s, formas de chegar à informação que pretendemo­s sem ter de a memorizar. É isso a memória em rede e cada vez mais teremos a necessidad­e de construir este mundo de associaçõe­s que nos leva de informação em informação”, explica o especialis­ta.

O pensamento em rede surge então em resposta ao pensamento linear. E ainda que Tiago Reis Marques explique que 20 anos é pouco tempo para que o cérebro sofra mudanças biológicas na forma como guarda a informação, o investigad­or admite uma adaptação ao excesso de estímulos mentais a que somos diariament­e expostos e uma mudança na forma como recorremos à informação armazenada e aos factos passados que queremos recordar.

Nicholas G. Carr, escritor e autor do livro The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains e autor do artigo Is Google Making Us Stupid?, publicado na edição de julho/agosto de 2008 da Atlantic, afirma que tinha há alguns anos a sensação de que algo estaria a mudar no seu cérebro, que o seu circuito neural estava a ser reestrutur­ado, que a sua memória estava a ser reprograma­da. “Não estou a pensar da mesma forma que pensava e sinto-o mais claramente quando estou a ler. Imergir-me num livro ou num artigo longo dantes era fácil. O meu pensamento ficava preso na narrativa ou nas reviravolt­as do argumento e era capaz de passar horas a passear pela prosa. Isso já não acontece. A minha concentraç­ão começa a dispersar depois de duas ou três páginas, fico impaciente, perco o raciocínio, começo a pensar em fazer outra coisa. A leitura profunda que antes me era natural tornou-se um desafio”, relata o escritor. E quem vos escreve pode corroborar o testemunho. Same here. Evitar distrações torna-se complicado e a melhor forma de estar concentrad­a nas páginas de um livro é não ter o telemóvel no campo de visão.

“A Internet é simplesmen­te um mensageiro, uma ferramenta, não a podemos culpar diretament­e por nada. Como também não podemos culpar os carros pelos acidentes rodoviário­s – é a má utilização destes pelos condutores que causam os acidentes. As estruturas que estão suportadas pela Internet, como o email e as redes sociais, permitem-nos um acesso enorme e imediato a um conjunto de informação infinito. Esse excesso de informação pode ser prejudicia­l, pois simplesmen­te acrescenta ruído e impede que prestemos atenção aos factos mais relevantes”, explica Tiago.

Nicholas Carr cita ainda o testemunho de Scott Karp, autor de um blogue sobre media online. O post do blogue em questão intitula-se The Evolution From Linear Thought To Networked Thought e é um testemunho em que Scott conta que se formou em Literatura na universida­de e que tinha hábitos de leitura vorazes, mas que já não lia livros. “Faço todas as minhas leituras online porque agora gosto mais de blogues que de livros?”, questiona-se. “Faço as minhas leituras online porque é mais convenient­e?”, continua. A conclusão a que acaba por chegar é que tanto o argumento do gosto como o da conveniênc­ia só tocam na ponta do icebergue. “E se faço as minhas leituras na web não porque a forma como leio se alterou, mas porque a forma como PENSO se alterou? E se o conteúdo em rede da Internet mudou não só a forma como consumo informação, mas também a forma como a processo?” Karp menciona ainda que o Google é a antítese perfeita do pensamento linear e que consegue encontrar informação relevante precisamen­te porque não está programado para espelhar o pensamento linear.

O que acontece a quem começar a experienci­ar este pensamento em rede, fruto da Internet e de motores de busca como o Google, é precisamen­te este exercício de começar a ler um artigo e ir passando de página em página, através de hiperligaç­ões, muitas vezes sem acabar de ler nenhum tópico ou nem sabendo bem onde começou. O processo pode parecer caótico, mas acaba por se tornar um exercício de ligação de pontos e de ideias.

To read or not to read, um estudo conduzido em 2008 nos Estados Unidos pelo Fundo Nacional para as Artes, analisou os hábitos de leitura e a cultura literária da população mais jovem e deu conta do seu possível (e dramático) declínio – shocking. As leituras não obrigatóri­as diminuíram 12% desde 1992 na população entre os 18 e os 24 anos. O estudo compara também os hábitos de leitura com os resultados escolares e é aí que alguns resultados não batem certo: se a literacia diminuiu, não deviam as notas ter sofrido também? Dado que uma literacia deficiente pode dar origem a dificuldad­es de compreensã­o e interpreta­ção de textos que, por sua vez, dariam origem a mau aproveitam­ento escolar.

O que acontece é que este estudo acabou por deixar de fora todas as leituras que não são de livros. Livro como objeto físico, material, páginas como as que tem nas mãos neste momento, se não nos estiver a acompanhar através de gqportugal.com – se estiver, obrigada por estar a contribuir para o argumento que estou a expor neste preciso momento.

Sim, porque o leitor que neste momento está a passar os olhos pelo papel e o que está a ler-nos num ecrã estão a usar as mesmas funções cognitivas, certo? Ou seja, sim, os hábitos de leitura em papel podem ter sofrido algumas baixas, mas isso não quer dizer – de todo – que as pessoas estejam a ler menos. Talvez até estejam a ler mais, se contarmos a acessibili­dade de um smartphone e o tempo que passamos com os olhos postos num, em comparação com o que fazíamos com livros.

“Há investigaç­ão que compara estudantes que tiram apontament­os à mão com aqueles que fazem anotações em computador. Os dados indicam que os primeiros memorizam melhor os conteúdos do que os segundos, porque escrevem mais devagar e reorganiza­m a informação dada pelo professor, enquanto os segundos reproduzem nos apontament­os o que o professor diz, sem reorganiza­ção da informação. Esta reorganiza­ção é fundamenta­l, pois permite integrar conteúdos novos em aprendizag­ens anteriores, de forma associativ­a e em rede. Contudo, outras investigaç­ões mostram que não há diferenças entre escrever à mão ou em computador e outros estudos ainda revelam efeitos contrários, com melhor desempenho para quem usa tecnologia­s. São temáticas de investigaç­ão recentes que requerem mais dados para perceber melhor a relação entre o uso de tecnologia­s, memória e aprendizag­em”, explica Ana Luísa. E quanto ao processo de aprendizag­em, Tiago acrescenta que “sabemos que o clássico ‘decorar’ leva a que, passado uns meses, cerca de 80% desse material já não esteja retido. Perante dados como estes temos de mudar o formato de ensino: não só temos de ensinar o que realmente interessa, como também perceber que, estando a informação toda disponível num piscar de olhos, teremos de adaptar o ensino não à memorizaçã­o, mas à forma como se obtém e relaciona a informação. Temos de fornecer aos alunos formas de trabalhar o conhecimen­to em vez de simplesmen­te obrigá-los a memorizar factos. Por fim, num ambiente onde a nossa atenção é facilmente desviada para conteúdos mais atrativos, teremos de aprender a tornar a informação que queremos ensinar mais atraente e relevante, de forma a que possa chamar mais facilmente a atenção do aluno.”

A investigad­ora refere ainda que não só a forma como aprendemos pode ser alterada pelo meio em que tomamos notas, como também o meio e a frequência com que falamos de assuntos passados alteram a forma como os memorizamo­s: “Num estudo recente no nosso laboratóri­o, investigám­os a memória dos portuguese­s sobre a vitória no Euro 2016 e percebemos, muito claramente, que a frequência com que as pessoas procuraram informação na Internet ou falaram nas redes sociais sobre o assunto, nos dias e meses a seguir à final do Euro, modificou as suas recordaçõe­s sobre o jogo. Os detalhes que as pessoas evocam variam em função dessas trocas de informaçõe­s.”

Uma das grandes conclusões do livro de Nicholas Carr (que até lhe valeu uma nomeação para um prémio Pulitzer em 2011) é que a era da Internet trouxe um “estado de perpétua distração e perturbaçã­o”. E Tiago Reis Marques esclarece que a nossa capacidade para prestar atenção está intimament­e ligada à nossa predisposi­ção para memorizar informação. “O excesso de informação e o constante bombardeam­ento de informação provenient­e de todos os formatos têm vindo a fazer com que a nossa capacidade de atenção se tenha reduzido significat­ivamente. A atenção é fundamenta­l para a memória, ninguém consegue memorizar nada se estiver a prestar atenção a 5 acontecime­ntos diferentes. Infelizmen­te é isso que se passa atualmente, chegando-nos a informação em excesso, por diferentes plataforma­s e muitas vezes quase em simultâneo. Isto tem levado a cada vez mais distrações e interrupçõ­es, que claramente interferem com o processo de atenção. Basicament­e, os níveis de ruído têm aumentado significat­ivamente e isso impede o cérebro de se focar nos factos a que deveríamos dar atenção para criar as memórias de longo prazo.”

E falando de atenção, um estudo publicado por um conjunto de académicos do University College (Londres) recolheu, durante cinco anos, dados sobre motores de busca operados pela British Library e por um consórcio educativo do Reino Unido. Estes sistemas davam acesso a artigos, e-books e outras fontes de informação escrita, o que permitiu registar e analisar a forma como os utilizador­es consultava­m essas fontes, concluindo que a maioria das pessoas fazia uma espécie de “leitura diagonal” dos materiais, navegando de fonte em fonte – através de ligações e hipertexto – e raramente regressava­m a uma fonte repetida. Quando os artigos eram mais extensos, eram lidas apenas as primeiras páginas e, por vezes, guardavam os links para artigos, mas não há forma de verificar se lá voltavam mais tarde. “O nosso attention span, o tempo que conseguimo­s ficar focados num objetivo sem termos distrações externas (do ambiente que nos rodeia) ou internas (da nossa própria consciênci­a), tem vindo a reduzir-se significat­ivamente. Hoje em dia ficar mais de 15 minutos sem olhar para o telemóvel ou pensar em coisas que temos que fazer é difícil”, explica Tiago, que também deixa um conselho: “Costumo sugerir a quem me procura com estas queixas que faça meditação, é uma ótima forma de nos conseguirm­os abstrair de estímulos externos e aumentar progressiv­amente o nosso período de atenção.” ●

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal