O TEU AMIGO SATANÁS
Quando as maiores abominações são cometidas em nome do Bem, de Deus e do Amor, é altura de perguntar aos seguidores do diabo em que é que eles acreditam.
Nos seus últimos 13 anos de vida, Mark Twain andou às voltas com um romance que nunca conseguiu acabar, e a que postumamente foi dado o nome The Misterious Stranger. Foi um período caótico da sua vida, repleto de dívidas, investimentos ruinosos, bancarrota, a morte de duas filhas e da mulher. Nos 34 anos que durou o casamento, Olivia Twain não foi apenas a mulher e a mãe de três filhas do “pai da literatura americana”, como lhe chamou Faulkner. Ela era também a editora dos seus textos. Mestre da polémica, do escândalo e do escárnio, Mark Twain foi um cavalo selvagem; Olivia foi a sua domadora e foi também o seu jóquei. Sem ela, Mark Twain passou a correr em todas as direções, sem conseguir acabar nenhuma corrida.
The Misterious Stranger é um livro com muitas pontas soltas, sem que se entenda a direção que Mark Twain lhe pretendia dar. É provável que ele próprio não fizesse ideia. Sem a ajuda de Olivia para lhe clarificar as intuições, o pouco que se alcança, entre as muitas versões que deixou, é que andava às voltas de uma personagem, de seu nome Satã, e que era sobrinho do próprio Satanás que aparece na Bíblia.
Entre os manuscritos há uma passagem desconcertante em que a personagem de Satã se despede do leitor com a seguinte mensagem: “Deus não existe, assim como o universo, a raça humana, a vida na Terra, o céu ou o inferno também não existem. É tudo um sonho – um sonho grotesco e idiota. Nada existe a não seres tu. E mesmo tu não passas de um pensamento – um pensamento vagabundo, inútil e sem abrigo, a vaguear ao abandono pela eternidade vazia.”
Para quem ficou conhecido como escritor humorístico, estas linhas mais parecem arrancadas ao desespero. Curiosamente, elas inspiraram também o satanismo, razão pela qual Mark Twain é um dos padroeiros, tanto da Igreja de Satanás, fundada por Anton LaVey, como do Templo Satânico, uma organização mais recente fundada por Lucien Greaves.
Se o leitor tivesse de responder a um questionário com a pergunta “em quem é que os satanistas acreditam?” é provável que não precisasse de um único segundo para responder “acreditam em Satanás” – mas estaria errado. A resposta correta é contraintuitiva. Os satanistas não acreditam na existência de Deus nem tão pouco na do Diabo, pela simples razão de que são ateus. Para eles, o universo é indiferente à nossa existência. Quanto a Deus e ao Diabo, não passam de invenções do espírito humano: representam formas de nos relacionarmos com as nossas emoções, desejos e receios. Os satanistas, no entanto, reconhecem a importância que a mitologia, a criação artística e os rituais coletivos têm no dia a dia das pessoas. É por isso que se divertem tanto a prestar culto a uma entidade a quem não reconhecem nem imanência, nem transcendência. O culto de Satanás é só uma forma de se identificarem com o espírito rebelde que acompanhou a sua invenção.
Satanás, ou Lúcifer, é o tal anjo, de todos o mais perfeito, favorito de Deus, que habitava no céu. Tomado pelo orgulho, questionou a vontade de Deus. Duvidou que o amor divino pelas suas criaturas fosse tão verdadeiro assim. Gozão como era, dedicou-se a provocar Deus e a provar o quanto Ele podia tornar-se vingativo e torturante. A postura rebelde de Satanás inspirou aos Satanistas o pensamento racional e o ceticismo que acompanha o método científico: tudo é questionável, sujeito a escrutínio e à prova do teste.
Se há coisa que os satanistas adoram, para além do imaginário gótico e de música pesada, é de provocarem os cristãos e todos os crentes na superioridade do seu Deus, sempre tão certos de representarem o bem e a verdade universal. Orgulhosos dos seus impulsos libertários, não se importam de ficarem com a má fama. Eles gostam de ser do contra. De ser o que são. E de lembrarem aos outros que numa sociedade laica até os excluídos têm os seus direitos e liberdades.
Mark Twain abominava o fanatismo e a fúria persecutória dos crentes pelos seus inimigos. Os satanistas modernos, por outro lado, divertem-se a ridicularizar os dogmas alheios. O seu código de ética é: faz o que te dá prazer, com quem quiseres e como quiseres, desde que não os envolvas à força. Tu és a causa de tudo o que fazes, pelo que não vale a pena inventares seres sobrenaturais para justificar as tuas ações.
Quando nos pomos a pensar nas abominações praticadas em nome do bem, do amor e de Deus, dá-nos uma súbita vontade de dar uma chance aos satanistas. Eles gostam de assustar com a sua aparência, mas aquilo em que mais abusam é no folclore. Talvez por vergonha de esbanjarem a sua fofice. Com tanta gente a levar-se a sério, haja alguém que ainda se lembra de brincar. Num mundo em que abundam os dedos acusativos e as recriminações de culpa, eles limitam-se a dizer: até prova em contrário, somos inocentes.
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