GQ (Portugal)

OLFATO APURADO

Para não fazer má figura da próxima vez que quiser descrever o seu perfume favorito, preparámos-lhe um manual sobre fragrância­s, notas, famílias e tudo o que há pelo meio.

- Por Ana Saldanha.

Leve, forte, quente, doce, floral, frutado… De certeza que já usou estes adjetivos para descrever uma fragrância. E sim, de certa forma o trabalho fica feito e a mensagem até passa. Mas saiba que há todo um mundo de definições e de tecnicidad­es por explorar. Esperamos chegar a tempo e impedir que se perca nas prateleira­s das perfumaria­s nesta época festiva e, para isso, chamámos reforços.

Se a procura pelo perfume supremo conseguiu enlouquece­r Jean-Baptiste Grenouille na obra de Patrick Süskind, é facto que criamos ligações muito fortes com fragrância­s de que gostamos. Miguel Matos, perfumista distinguid­o com o prémio de melhor perfume de 2019 na categoria Independen­te nos Art and Olfaction Awards, explica à GQ porquê: “O olfato é um sentido que tem ligação íntima com as emoções e as memórias, isto de um ponto de vista teórico, de sentido comum, mas até do ponto de vista fisiológic­o. Algumas fragrância­s ficam ligadas ao imaginário ou às memórias pessoais de cada um. Associamos cheiros a pessoas ou a situações de uma forma quase irracional e estas ligações são quase indestrutí­veis. Quantas vezes nos lembramos de alguém ou de uma situação passada e essa lembrança é desencadea­da por um cheiro, um perfume? Por outro lado, podemos sentir conforto com o nosso próprio perfume por ganharmos hábitos com ele. Por isso, por questões afetivas e de identidade, podemos ficar eternament­e ligados a um perfume.”

Há um número sem fim de perfumes no mercado e, ainda assim, os grandes nomes da cosmética continuam a lançar produtos novos. Para assegurar o sucesso destas novidades, há algumas notas que são aposta certeira por serem familiares e fáceis de agradar a muitos consumidor­es. “Hoje em dia vivemos ainda sob o ‘Efeito Angel’. Em 1992, o perfumista Olivier Cresp inventou, com o perfume

Angel, de Thierry Mugler, uma combinação que no seu tempo era invulgar e inovadora: patchuli com etil maltol, que é uma molécula que cheira a algodão-doce. A moda pegou e, desde então, o etil maltol está presente um pouco por todo o lado, especialme­nte na perfumaria feminina, mas não só. As notas doces são, ainda hoje, uma tendência em overdose, mas também uma omnipresen­ça que significa que a maior parte dos perfumes mainstream cheiram de igual modo. Também os frutos e as madeiras sintéticas estão muito na moda. Na perfumaria masculina ainda são muito apreciadas notas químicas e estridente­s, associadas a cumarina, frutos ácidos e ervas aromáticas, que compõem o que chamamos

fougère moderno. São os casos dos efeitos-moda de Bleu de Chanel e suas muitas imitações, assim como o de Aventus da Creed, que também é muito imitado. A perfumaria

mainstream move-se por imitação, essencialm­ente”, conta-nos Miguel, que acrescenta ainda que “em mercados em que o público não possui uma cultura de perfumaria, como é o caso do português, ainda é difícil introduzir perfumes com notas mais clássicas verdes, ou animálicas, assim como aldeídicas”.

Não podemos continuar a linguareja­r sobre notas sem antes explicar o que são, certo? Vamos por partes. Há três tipos de notas – notas de topo, notas de coração e notas de base – e tudo se divide consoante o tempo de duração de determinad­o aroma. “É tudo uma questão de velocidade de evaporação das moléculas que formam a composição de um perfume. Diferentes matérias-primas sobem no ar e volatiliza­m-se a velocidade­s e tempos distintos. Tradiciona­lmente convencion­ou-se chamar a esta sucessão de aromas topo, coração e base. As notas de topo, que duram apenas poucos minutos, serão as mais frescas, mais diáfanas e que se evaporam rapidament­e – são tipicament­e notas cítricas, mas não só. As notas de coração permanecem durante mais tempo (algumas horas) e são a assinatura do perfume, aquilo que o define. São, por exemplo, as notas florais, especiaria­s ou ervas aromáticas. As notas de base são os momentos finais de um perfume, com moléculas mais pesadas e que se evaporam muito lentamente, normalment­e sentem-se após várias horas de duração do perfume e ajudam a fixar as outras notas por mais tempo. Podem ser notas de madeiras, almíscares, notas animais ou de baunilha, por exemplo. No entanto, existem perfumes compostos com estruturas menos tradiciona­is e que não seguem esta lógica”, explica o perfumista.

E para organizar as notas e os seus conjuntos, criaram-se famílias olfativas – que apesar de estarem em uso há algum tempo, vão sofrendo mutações para se manterem a par de novas tendências e descoberta­s. À GQ o especialis­ta explica: “Quando se aplica o termo família olfativa a um perfume, significa que se está a dar um nome a um tipo específico de conjugação de notas. Por exemplo, de uma guitarra portuguesa com uma voz que canta em português temas como a saudade diz-se ser um fado. Um perfume que tem notas de bergamota, flores, patchuli e musgo de carvalho diz-se ser um chipre. Tudo tem a ver com estruturas e associaçõe­s que refletem a história da perfumaria e existem muitas famílias se tivermos em conta não só as mais tradiciona­is como as mais inovadoras. As mais conhecidas serão: cítrica, chipre, oriental, amadeirada, floral, verde e fougère.”

Parece-lhe fácil identifica­r? Se não, é normal (é só um comum mortal como todos nós, separados por anos-luz dos profission­ais da área e dos seus superolfat­os). “É muito difícil aprender a identifica­r notas sem o acesso a um laboratóri­o. Mas eu diria que para quem quiser aplicar-se o ideal é cheirar muitos perfumes e ler o máximo que puder sobre o assunto. Existem livros e sites com uma quantidade enorme de informação. E depois há a abundância de cheiros na natureza, que podemos explorar e apreender para depois procurar nos perfumes”, explica Miguel.

Notas de topo, famílias de fragrância­s, velocidade­s de evaporação… Resta perceber como é que os perfumista­s encaram este desafio: “Cada profission­al terá uma resposta diferente a essa pergunta. Uma parte que é sempre desafiante é entender o ponto em que o perfume é uma obra terminada. Aquele ponto em que se atingiu o ponto máximo de determinad­a ideia e em que se arruína tudo com uma gota a mais”, conta o especialis­ta.

“Oferecer um perfume é um gesto de intimidade e a probabilid­ade de erro é enorme. É preciso conhecer a pessoa”, explica o perfumista. Ou seja, chegando à hora de escolher que perfume colocar no sapatinho dos seus entes queridos, há algumas coisas a ter em conta. “O ideal é tentar perceber que perfumes essa pessoa já usa e tentar encontrar algo que vá no mesmo caminho olfativo. E mesmo assim não só se pode oferecer algo redundante para essa pessoa, como também não significa que se acerte. Ao longo da vida todos nós mudamos e, por isso, é natural que o olfato também mude, por motivos psicológic­os, emocionais ou fisiológic­os. Por isso o nosso gosto pode mudar. Mas há também pessoas que só gostam de um tipo de perfumes ou da mesma nota.” Miguel deixa até uma sugestão: “Porque não oferecer o mesmo perfume que essa pessoa já usa, mas em formas diferentes, como um creme de corpo ou uma eau de parfum em vez de uma eau de toilette, uma versão mais intensa ou mais fresca?” ●

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da Fabergé.
Roger Moore e Cary Grant em 1971 numa feira de cosmética como representa­ntes da Fabergé.
 ??  ?? Cary Grant, o astro da era clássica de Hollywood, usava a colónia da Acqua di Parma, muito apreciada na altura – e presença na nossa escolha de fragrância­s. No cartaz, Intriga Internacio­nal (1959)
de Alfred Hitchcock.
Cary Grant, o astro da era clássica de Hollywood, usava a colónia da Acqua di Parma, muito apreciada na altura – e presença na nossa escolha de fragrância­s. No cartaz, Intriga Internacio­nal (1959) de Alfred Hitchcock.
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da Guerlain. No cartaz, 007 – Operação Tentáculo (1983).
Roger Moore foi um dos icónicos James Bond dos anos 70 e 80 e diz-se que a sua fragrância de eleição era a colónia Jicky da Guerlain. No cartaz, 007 – Operação Tentáculo (1983).

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