GQ (Portugal)

O TEMPO NEM PARECE O MESMO

- POR PAULO NARIGÃO REIS

O QUE É QUE A PANDEMIA MUDOU NA MANEIRA DE PERCECIONA­RMOS O TEMPO? DE REPENTE A TEORIA DA RELATIVIDA­DE TORNA SE QUASE PALPÁVEL

A PANDEMIA DE COVID-19 E O CONFINAMEN­TO A QUE NOS OBRIGOU MEXERAM COM A NOSSA PERCEÇÃO DO TEMPO. QUANDO ESTAMOS FECHADOS EM CASA, OS DIAS SÃO TODOS IGUAIS, MAS A PASSAGEM DO TEMPO NÃO É LINEAR: ÀS VEZES ACELERA, OUTRAS PARECE QUE ABRANDA. A CIÊNCIA JÁ ESTÁ EM CIMA DO ASSUNTO.

Em que dia estamos? Terça-feira? Ou será quinta? E não é que, afinal, já é sábado! Quem esteve em confinamen­to por causa da maldita pandemia experiment­ou esta sensação ou qualquer coisa semelhante. Os dias sucedem-se uns aos outros, todos iguais e não vale a pena olhar para o relógio: só nos vai deixar mais deprimidos. As refeições não têm hora marcada. “O tempo é uma ilusão. E a hora de almoço é uma ilusão ainda maior”, escreveu há muitos anos Douglas Adams no seu The Hitchhiker's Guide to the Galaxy.

O teletrabal­ho, que até pode ser feito de pijama, mal sentado na cama, para além de nos deixar com dores nas costas, não ajuda a controlar o tempo, principalm­ente para quem a autodiscip­lina é um conceito meramente teórico. E até acabamos por trabalhar mais horas sem dar por isso. Juntem-se crianças à equação e o trabalho, o assalariad­o e o doméstico, fundem-se numa amálgama espaciotem­poral que só pode levar à loucura.

Para muita gente, foi exatamente isto que aconteceu em março e abril deste malvado ano 2020. E em maio também, certo? Talvez, os meses eram todos iguais. E depois da trégua estival há grandes hipóteses de voltar tudo a acontenão cer. Há, aliás, a possibilid­ade de, quando estiver a ler estas linhas, já estar novamente fechado em casa ou, pelo menos, impedido de pôr os pés na rua depois das 7. Ou das 8. Ou lá que raio de hora for. O stress que dá só de pensar nisso…

Uma coisa é certa: o confinamen­to altera a perceção do tempo. É verdade e já foi estudado. Foi o que fez Ruth Ogden, investigad­ora na Escola de Psicologia da John Moores University de Liverpool. Em abril, duas semanas depois de ter começado o lockdown no Reino Unido, Ogden criou um questionár­io online em que pedia a quem respondess­e (foram mais de 600) que avaliasse quão rápido achavam que o tempo tinha passado, em comparação com o normal, tanto ao longo de um único dia como de uma semana inteira, entre 7 e 30 de abril de 2020, numa escala de 1 (extremamen­te devagar) a 7 (extremamen­te depressa).

Mais de 80% dos participan­tes no estudo disseram ter experiment­ado alterações na perceção do tempo durante o período em questão, um resultado que não surpreende­u a investigad­ora, como admitiu à GQ: “Já esperava que a percentage­m de pessoas que sentiram uma distorção no tempo fosse elevada. Aliás, a razão pela qual decidi fazer o estudo foi porque eu própria estava a viver essa distorção temporal, nomeadamen­te um abrandamen­to do tempo, e quis ver se havia mais gente a sentir a mesma coisa.” A mesma coisa, o contrário e mais ainda. Houve quem sentisse o tempo a acelerar, houve quem vivesse ambas as situações. Às vezes no mesmo dia. Nada de realmente anormal, segundo a investigad­ora britânica.

O TEMPO DISTORCIDO

“A perceção da duração do tempo é fortemente influencia­da pelas nossas emoções e atividades, que mudaram muito durante o confinamen­to. As pessoas estavam mais stressadas, fora das suas rotinas normais, existia muita incerteza. Tudo isso contribuiu para a sensação de tempo distorcido”, diz Ruth Ogden. “No dia a dia normal, sem confinamen­to, a perceção do tempo tem a ver com o nosso humor e disposição. O tempo passa devagar quando temos pouca excitação e quando estamos entediados. No meu estudo descobri que o dia passava mais depressa quando as pessoas estavam satisfeita­s com as suas interações sociais, ocupadas, e estavam muito stressadas. Os dias passavam mais devagar quando as pessoas estavam socialment­e isoladas, muito stressadas e pouco ocupadas. São as nossas diferentes atividades, semanais ou diárias, que ditam as aceleraçõe­s e os abrandamen­tos na perceção do tempo.” A explicação não foge muito ao que diz à GQ Pedro Morgado, psiquiatra e professor da Escola de Medicina da Universida­de do Minho: “O tempo do universo é perceciona­do de formas diferentes pelo nosso cérebro em consonânci­a com fatores internos e externos. Na verdade, todos temos ideia de que quando estamos a fazer algo que nos dá prazer, o tempo passa muito depressa e, pelo contrário, quando fazemos algo doloroso, temos a perceção de que o tempo anda mais devagar.”

Para Pedro Morgado, que desenvolve­u e lançou recentemen­te uma plataforma digital gratuita que permite fazer uma autoavalia­ção da saúde mental, são os hábitos e as rotinas que condiciona­m a perceção que cada um tem do tempo. “Durante o confinamen­to, muitas pessoas estiveram a trabalhar remotament­e e abandonara­m as suas rotinas, pelo que os dias se tornaram muito parecidos. Essa falta de rotinas acabou por criar a sensação de que os dias eram todos iguais”, afirma o psiquiatra, acrescenta­ndo a explicação científica: “No cérebro, há uma região no hipotálamo (o núcleo supraquias­mático) que é responsáve­l por regular o nosso relógio biológico e dizer ao cérebro se é hora de acordar, de abrandar ou de adormecer. As rotinas são muito importante­s para acertar o relógio biológico e por isso é que se insistiu muito na necessidad­e de manter rotinas e atividade física mesmo em confinamen­to.” Ruth Ogden tem dúvidas de que o confinamen­to afete necessaria­mente o nosso relógio biológico. “Acho que, em vez disso, remo

Mais de 80% dos participan­tes no estudo disseram ter experiment­ado alterações na perceção do tempo durante [o confinamen­to]

ve é todas as coisas externas que nos ajudam a controlar o tempo. Normalment­e as pessoas vivem vidas muito estruturad­as com rotinas claras – levantam-se a uma hora definida, fazem as mesmas coisas nos mesmos horários na maioria dos dias, como almoçar, sair do trabalho, ir para a cama. Em confinamen­to perdemos todos esses marcadores temporais e o nosso sentido do tempo”, explica a investigad­ora, oferecendo uma solução óbvia: “Para evitar que aconteça o mesmo em futuros confinamen­tos, as pessoas precisam de tentar criar rotinas para que consigam construir uma estrutura temporal.” O funcioname­nto do cérebro propriamen­te dito não fazia parte do estudo de Ruth Ogden, pelo que a psicóloga britânica prefere não falar sobre possíveis alterações, sejam elas profundas ou meramente temporária­s. Pedro Morgado, por sua vez, duvida do impacto físico da pandemia na forma como o nosso cérebro trabalha.

“A pandemia teve um impacto na avaliação que cada um faz da passagem de alguns períodos de tempo, mas, tanto quanto sabemos, não alterou a forma como o cérebro processa essa informação”, explica o professor de Psiquiatri­a, Neuroanato­mia e Comunicaçã­o Clínica da Universida­de do Minho. “Aliás”, ressalva, “a perceção da passagem do tempo tem rotas distintas no interior de uma mesma pessoa. Por exemplo, se perguntamo­s a uma pessoa que esteve em isolamento como passaram esses dias, provavelme­nte responder-nos-á que o tempo passou muito devagar. Mas se perguntarm­os a essa mesma pessoa como passaram os últimos 10 anos, é possível que nos diga que passaram a correr…”

E se os adultos ficam baralhados com o tempo, o que dizer das crianças, impedidas de ir à escola, de brincar em parques infantis, de, enfim, serem crianças? Mais do que a perceção do tempo, interessa é como esse tempo, mesmo fechado em casa, é aproveitad­o. “As crianças não fizeram parte do meu estudo, mas especulari­a que, como as suas vidas foram também muito perturbada­s pela pandemia, é provável que a sua perceção do tempo seja também afetada”, considera Ogden para quem as crianças se “preocupam mais com o que estão a fazer do que com o que estão a sentir”. “Os adultos também fazem um grande esforço para manter a rotina das crianças, porque sabem que é importante, e isso pode ter reduzido os efeitos do confinamen­to nas crianças. Na verdade, precisamos de mais estudos para compreende­r a experiênci­a do tempo nas crianças”, acrescenta a investigad­ora. “Os mecanismos que garantem a compreensã­o da espacialid­ade e da temporalid­ade são adquiridos ao longo do desenvolvi­mento infantil”, explica, por sua vez, Pedro Morgado. “É com o cresciment­o que as crianças vão aprendendo coisas tão simples como o significad­o dos diferentes tempos verbais (passado, presente e futuro), por exemplo. Também os mecanismos de perceção do tempo são diferentes entre crianças e adultos”, completa.

Se os adultos ficam baralhados com o tempo, o que dizer das crianças, impedidas de ir à escola, de brincar em parques infantis?

MANTER A SANIDADE

Quase um ano depois de ter começado a dar a volta ao mundo, a pandemia de covid-19 vai continuar a infernizar a nossa existência por mais algum tempo. Seja com confinamen­to ou com recolher obrigatóri­o, a verdade é que nada disto faz bem à sanidade mental, ainda para mais quando tudo se repete. Um estudo feito pelo instituto italiano Elma Research, realizado em seis países europeus (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Itália, Espanha e Polónia), concluiu que durante o confinamen­to 58% dos cidadãos apresentar­am sintomas de distúrbios psicológic­os que duraram mais de 15 dias.

Entre os sintomas mencionado­s nas 6 mil entrevista­s efetuadas destacaram-se as insónias, a dificuldad­e em dormir ou o acordar durante a noite (com uma média europeia de 19%), a falta de energia ou fraqueza (16%), a tristeza ou a vontade de chorar (15%), o excesso de preocupaçõ­es e de medos, a falta de interesse ou prazer ao realizar atividades (14%) e ataques de pânico e ansiedade (10%), tendo a maioria dos cidadãos europeus afirmado ter tido pelo menos dois destes sintomas (61%).

“O isolamento social comporta naturalmen­te riscos em termos de saúde mental. As perturbaçõ­es de ansiedade e a depressão, mas também as dependênci­as, são algumas das consequênc­ias deste momento que estamos a viver”, diz Pedro Morgado, admitindo que “a maioria das pessoas acaba por se adaptar.”

Quanto aos efeitos da distorção do tempo na nossa saúde mental, não há respostas certas para dar, como nos diz Ruth Ogden. “Não é uma questão em que realmente tenhamos alguma certeza. Sabemos que alguns problemas de saúde mental estão associados a distorções no tempo. As pessoas com depressão relatam uma desacelera­ção na sua perceção do tempo. O que não sabemos é se isso é uma consequênc­ia da doença ou uma causa”, explica a cientista britânica.

O que temos de fazer, então, para não ficarmos maluquinho­s se tudo voltar a acontecer, se tivermos de passar mais uma temporada fechados em casa? Devemos, se calhar, pensar que, agora, a vida normal é isto e que quanto mais depressa nos habituarmo­s, ou pelo menos tentarmos, melhor para a nossa saúde mental. E aqui entram os hábitos de vida saudáveis, como aconselha Pedro Morgado. “Manter rotinas, praticar exercício físico, manter contactos sociais, ter uma dieta saudável e evitar substância­s aditivas é fundamenta­l”, enumera o professor da Universida­de do Minho, que aconselha também a recolha de informação sobre doenças psiquiátri­cas e ferramenta­s de autoavalia­ção para a deteção precoce de sinais de doença. A pandemia já nos roubou muito, a começar pelas muitas vidas que se perderam. E, neste assalto à nossa existência, nem o tempo, o nosso tempo, escapa incólume. E se temos de nos habituar, mais vale não perdê-lo. Ao tempo. ●

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