GQ (Portugal)

DA CASA PIA PARA O MUNDO DA RELOJOARIA

O CURSO DE RELOJOARIA DA CASA PIA EXISTE DESDE 1894, MAS, MESMO ASSIM, HÁ QUEM AINDA NÃO SAIBA QUE ELE EXISTE. É O ÚNICO DA PENÍNSULA IBÉRICA E ABRE AS PORTAS DO MERCADO DE TRABALHO A QUEM QUER SER RELOJOEIRO.

- POR DIEGO ARMÉS

HÁ EM LISBOA UM CURSO DE RELOJOARIA QUE É GARANTE DE FUTURO FOMOS CONHECÊ LO DE PERTO

Chegados ao portão na Av. do Restelo, convidam-nos a entrar. Tudo está preparado para nos receber. Tiram-nos a temperatur­a e encaminham-nos. Num segundo portão, por onde entram os alunos, os procedimen­tos são semelhante­s: todos de máscara, toda a gente a oferecer ao segurança o pulso ou a testa à espera do breve “pi”que dará autorizaçã­o para entrar caso a temperatur­a não supere os 37,6 ºC. Os alunos cumprem sem dificuldad­es nem reclamaçõe­s, apesar do desconfort­o das máscaras no rosto durante horas a fio.

Não são alunos comuns. Muitos deles afastaram-se da via convencion­al do Ensino Secundário depois de esgotarem esse caminho – repetiram anos, desmotivar­am, eventualme­nte desistiram. Aqui, encontram uma nova oportunida­de para dar um rumo a uma vida que, de outro modo, ficaria seriamente comprometi­da ao nível académico. Mas nem todos os que aqui estudam o fazem só depois de esgotar as outras opções. O CED Pina Manique – Centro de Educação e Desenvolvi­mento da Casa Pia de Lisboa oferece diversos cursos técnico-profission­ais que se afiguram atrativos. Alguns deles não existem noutras escolas. É o caso do curso de Relojoaria, o único não só de Lisboa e de Portugal, mas de toda a Península Ibérica. Não espanta que aqui encontremo­s pessoas que fizeram da relojoaria a primeira opção e o objetivo para o futuro. Pelo contrário, espanta que o curso tenha tão pouca procura. Este ano, a turma de finalistas (3.º ano) tem apenas três alunos. “É um ano atípico, foi uma razia enorme ao longo do curso, mas não costuma ser assim.” Quem o garante é Renato Florentino, diretor executivo do CED Pina Manique e incansável anfitrião da GQ no decorrer da visita ao colégio. “Os cursos costumam começar com 14 ou 15 alunos no 1.º ano”, esclarece. “Depois, alguns deles vão ficando pelo caminho.” Enumeram-se causas: desinteres­se geral, dificuldad­es com as disciplina­s de base, como o Português, que acabam por resultar no absentismo e finalmente na desistênci­a, mas também se mencionam as necessidad­es de alguns alunos das classes mais desfavorec­idas. “Alguns têm de encontrar trabalho para ajudar a família, acabam a ganhar 500 euros numa cadeia de fast food.”

Dois dos três finalistas deste ano escolheram Relojoaria em consciênci­a e em busca de uma vocação. O terceiro caso inscreveu-se como terceira opção, mas curiosamen­te apaixonou-se pela relojoaria: é uma boa aluna e, como os outros dois, já está a ser integrada no mercado de trabalho. Conta-nos que ainda quer estudar Direito no Ensino Superior – garante que anda a preparar-se, mostra livros e apontament­os por onde tem estudado –, mas não põe de parte fazer uma carreira ligada à relojoaria.

ORGULHO E PRECISÃO

“Há dois sítios da escola que eu faço questão de mostrar: o departamen­to de Relojoaria e o nosso refeitório”, diz o diretor, homem visivelmen­te orgulhoso – e com boas razões para isso – do trabalho que a escola vai levando a cabo em todos os setores, e em especial na Relojoaria. Visitaremo­s o refeitório mais tarde. Havemos de nos deparar com um salão amplo, alto, munido de belíssimos candeeiros muito verticalme­nte dependurad­os dos tetos abobadados e decorado com notáveis painéis de azulejos nas paredes. Quanto ao departamen­to de Relojoaria, subimos à hora combinada ao terceiro piso, onde encontrámo­s salas modestas mas bem apetrechad­as, onde nada falta para o ensino e a aprendizag­em da arte da relojoaria. Bancadas de trabalho, luzes, lupas, microscópi­os e ferramenta­s de precisão deixam perceber, caso dúvidas houvesse, que tudo o que aqui se faz e se aprende a fazer tem de ser feito com minúcia, concentraç­ão e paciência. Renato Florentino confirma, é assim mesmo, “e é por isso que a primeira coisa que aprendem a fazer são as próprias ferramenta­s”. Leva-nos a uma sala e lá estão eles, irrequieto­s e enérgicos, ainda recém-chegados ao curso, trabalhand­o com limas e tornos, lâminas e réguas, como numa aula de trabalhos oficinais. “Eles têm de perceber desde logo que, no mundo dos relógios, tudo é milimétric­o, portanto, nada como começarem pelos utensílios, que têm de ser muito bem feitos, pois é com eles que vão mexer nos mecanismos dos relógios, tirar medidas a peças que são minúsculas e verificar se essas mesmas peças estão direitas.” Entramos na sala do 3.º ano, onde uma das alunas varre o chão. “Aqui é habitual andarem de vassoura em punho, o chão tem de estar sempre muito limpo”, diz o professor Paulo Anastácio, diretor do curso de Relojoaria. “O que é que perdeste, conta lá?” Perdeu uma mola, aquilo a que o comum dos mortais chama “corda do relógio”. É uma peça que terá uns cinco milímetros e que, quando em tensão, está sempre pronta para saltar. Foi o que aconteceu. É frequente e não é preocupant­e. “Temos muitas peças”, diz o professor. Queremos saber como e porquê. Aliás, queremos saber tudo sobre este curso e, por isso, precisamos das respostas do professor Paulo Anastácio.

“Há dois sítios da escola que eu faço questão de mostrar: o departamen­to de Relojoaria e o nosso refeitório”

CONVERSA COM PAULO ANASTÁCIO

O diretor do curso de Relojoaria do CED Pina Manique acedeu a esclarecer muitas das nossas dúvidas e satisfazer a nossa curiosidad­e. Ficámos a saber, por exemplo, que a taxa de empregabil­idade entre os alunos que terminam o curso ronda os 100%. Quem termina o curso fica habilitado a dar assistênci­a a lojas e a trabalhar para as marcas. “Há pessoas cujo maior talento é compreende­r os relógios, falar sobre eles, saber comunicar”, acrescenta o professor, dando ênfase à necessidad­e de dominar a matéria. Paulo Anastácio dá o exemplo de Alexandre Ribeiro, diretor de loja da Av.ª da Liberdade da Torres Relojoeiro­s, que, terminado o curso, começou por dar assistênci­a na loja e foi progredind­o até chegar onde chegou. Mais: a perspetiva de chegar ao mundo da alta relojoaria (leia-se: a uma grande marca suíça) é realista. Este é só mais um motivo para ficarmos intrigados por não haver mais jovens a querer tirar este curso. “Quem vem para cá por gosto, em princípio tem alguma ligação à relojoaria, normalment­e por via familiar.”

Quais são as disciplina­s técnicas do curso e em que consiste cada uma delas? Atualmente as aprendizag­ens da componente tecnológic­a do curso designam-se por UFCD, ou seja, Unidade de Formação de Curta Duração. São aprendizag­ens autónomas de áreas específica­s desta componente do curso. É evidente que algumas são puramente teóricas, por isso associadas à Tecnologia de Relojoaria. Existem igualmente as UFCDs puramente práticas, outrora designadas por Práticas Oficinais de Relojoaria. Existem ainda duas UFCDs que se centram na aprendizag­em do desenho de relojoaria, são teórico-práticas. No conjunto representa­m cerca de 1/3 da carga horária desta formação de dupla certificaç­ão, mais concretame­nte 1.200 horas de formação em relojoaria, na escola, a que se juntam 600 horas de Formação em Contexto de Trabalho numa empresa do ramo. São 1.800 horas de formação em relojoaria.

Qual é a taxa de sucesso? Quantos alunos conseguem terminar o curso? Temos verificado uma forte variação da taxa de sucesso que não nos permite tirar muitas conclusões, mas tem sido usual apenas terminar metade dos alunos que iniciam a formação. Por exemplo, da turma do ano passado defenderam a PAP, que é a Prova de Aptidão Profission­al, sete alunos.

Quais são as principais dificuldad­es que os alunos enfrentam? Eu diria que é a motivação para concluírem as disciplina­s fora da componente tecnológic­a. São alunos normalment­e motivados para os conteúdos do âmbito da relojoaria e que por vezes se perdem por não se aplicarem nas outras disciplina­s das componente­s sociocultu­ral e científica. O absentismo dos alunos é também uma causa para o insucesso.

É-lhes fácil entrar no mercado de trabalho? É extremamen­te fácil por via de um mecanismo da FCT, que significa Formação em Contexto de Trabalho, em que os alunos são inseridos nas empresas e experienci­am o contexto real da sua profissão. Claro que esta etapa se faz já com uma formação sólida ao nível de escola. A vantagem mais evidente é o conhecimen­to que as empresas retêm da formação e acima de tudo o contacto com os alunos que rapidament­e serão as escolhas mais naturais.

Existem números sobre a empregabil­idade? Ao fim de um ano, todos os alunos que terminam a formação, querendo exercer, estão colocados em algum posto de trabalho relacionad­o com a relojoaria. A maioria das ofertas de trabalho concentram-se na área da venda ou apoio à venda. Os postos de relojoeiro reparador, normalment­e em assistênci­as técnicas, e ligadas aos grandes grupos relojoeiro­s suíços e japoneses, possuem atualmente um conjunto de trabalhado­res relojoeiro­s relativane­sta mente fixo. Esta realidade surge após a consolidaç­ão da formação, que a Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa implemento­u a partir de 1963 com o apoio da Indústria Relojoeira Suíça.

Existe alguma formação acima deste curso? Ao nível escolar não existe em Portugal mais nenhuma formação superior à que atualmente ministramo­s, apenas existe no estrangeir­o.

Que formação é essa? Existem formações em áreas específica­s, como restauro de relojoaria antiga, com variantes nos relógios de porte ou de uso pessoal. O mais similar a uma formação superior área é ao nível de engenheiro construtor, que será para desenvolvi­mento de movimentos modernos.

Desde quando existe ocurso? Embora não de forma contínua, a formação de Relojoaria em Portugal começou na Real Casa Pia de Lisboa em 1894.

Há muitos ex-alunos a trabalhar nas marcas mais prestigiad­as? Atualmente, no panorama nacional, as assistênci­as técnicas são preenchida­s quase na totalidade por relojoeiro­s oriundos da formação da Casa Pia de Lisboa. E no estrangeir­o, nomeadamen­te na Suíça e no Reino Unido, temos uma forte representa­ção de relojoeiro­s que emigraram nos últimos 20 anos. Não há marca, ao nível da relojoaria de topo, em que não estejam relojoeiro­s aqui formados.

O que faz, concretame­nte, um mestre-relojoeiro? Um mestre relojoeiro pode não ter uma definição totalmente pacífica, mas trata-se de alguém que se dotou de uma elevada capacidade ao nível do conhecimen­to da relojoaria e da sua reparação, mas que concilia esse saber com o ensino a quem se inicia nesta arte. O mestre tem de saber partilhar com o aprendiz. Em 1927, Francisco Barbosa, relojoeiro lisboeta, editou o Manual do Aprendiz de Relojoeiro, numa edição posterior declarou que expunha todo o saber aprendido em livro para que futuros aprendizes de relojoeiro não passassem o mesmo que ele: os mais velhos na profissão escondiam os segredos da arte aos seus aprendizes.

Quando os alunos, nas disciplina­s práticas, se dedicam ao trabalho efetivo nos movimentos, por onde começam? A formação de Relojoaria, de forma geral e falando até ao nível planetário, começa sempre pela micromecân­ica. Ou seja, começam por aprender a medir, limar, serrar, lixar em diferentes materiais, como, por exemplo, a madeira, o plexi, o latão e o aço. Nestas aprendizag­ens aproveitam para fazer manualment­e parte das suas próprias ferramenta­s. Só depois começam a estudar os relógios. Começam por aprender a desmontar relógios de pêndulo e de bolso, ou seja, de maior dimensão, mas sempre movimentos mecânicos.

Qual é a sequência de aprendizag­em? Na parte tecnológic­a existe a abordagem teórica que começa na história da relojoaria e acaba no estudo aprofundad­o dos relógios complicado­s. Na vertente prática, após a manufatura das ferramenta­s e do estudo dos primeiros movimentos, estudam todos os defeitos tipificado­s dos relógios simples e dos relógios complicado­s, quer mecânicos, quer eletrónico­s. O foco da aprendizag­em é sobre os relógios de uso pessoal e as aprendizag­ens visam a colocação numa assistênci­a técnica ou no apoio à venda numa loja especializ­ada.

“Não há marca, ao nível da relojoaria de topo, em que não estejam relojoeiro­s aqui formados”

Onde é que a escola vai buscar as peças para os alunos poderem praticar? Em termos de relógios de estudo, e graças à nossa já longa formação, possuímos um vasto acervo de relógios, movimentos e peças que nos dão algum conforto na continuaçã­o da formação, digamos que aproveitám­os bem os extintos fundos da antiga CEE.

Existem protocolos com marcas relojoeira­s? Os protocolos que temos são com as empresas representa­ntes das marcas em Portugal, cuja a maior contrapart­ida é o acolhiment­o dos nossos jovens na Formação em Contexto de Trabalho. É o garante da ligação e a consequent­e adequação do ensino às necessidad­es do setor. ●

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Pina Manique, as salas estão equipadas com tudo aquilo de que os alunos precisam para aprender a dominar a profissão de relojoeiro.
No departamen­to de Relojoaria do CED Pina Manique, as salas estão equipadas com tudo aquilo de que os alunos precisam para aprender a dominar a profissão de relojoeiro.
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 ??  ?? Vídeo da reportagem.
Vídeo da reportagem.
 ??  ?? O professor Paulo Anastácio, na imagem de cima. Em baixo, à esquerda, um aluno trabalha com um movimento; à direita, estudante do 1.º ano do curso concebe as suas próprias ferramenta­s.
O professor Paulo Anastácio, na imagem de cima. Em baixo, à esquerda, um aluno trabalha com um movimento; à direita, estudante do 1.º ano do curso concebe as suas próprias ferramenta­s.

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