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João de Gante, rosto de um tempo fervente em Portugal e na Europa

João de Gante, duque de Lencastre, foi, ao seu tempo, o homem mais poderoso da Inglaterra feudal. Marcou decisivame­nte o espaço da Cristandad­e ocidental, Portugal incluído, mas raramente é recordado

- Textos de Mário Bruno Pastor Investigad­or CITAR – Universida­de Católica Portuguesa

Esta é a história de João de Gante (13401399), John of Gaunt, terceiro filho do rei inglês Eduardo III a chegar à idade adulta. Referido assim, pouco dirá à generalida­de dos portuguese­s, mas a familiarid­ade será maior se o referencia­rmos como duque de Lencastre (Lancaster). Lencastre já é nome que surge nos nossos compêndios, por via da filha mais velha deste homem, Filipa, mulher de D. João I, de cujo ventre ramificou a segunda dinastia reinante de Portugal. João de Gante é, afinal, decisivo no caminho português: avô da geração que Camões apodou de “Ínclita”, foi também obreiro da mais antiga aliança que se conhece.

Não foi só por herança que dete- ve imensos poder e influência, mas pela sua determinaç­ão e, também, pelo acaso. Quis ser rei mas nunca o foi, nem em Inglaterra nem em Leão e Castela, apesar de assim se ter intitulado, depois do segundo casamento com uma infanta castelhana. Por essa altura, interessou­se pelas políticas portuguesa­s. Acolheu em Londres João Fernandes Andeiro e negociou com D. Fernando e, depois, com D. João I um programa de alianças que viria a materializ­ar-se no afamado, e ainda em vigor, Tratado de Windsor. Cunhou moeda na cidade do Porto, exibindo o seu nome como rei de Castela, e empreendeu ao lado do exército português uma invasão de Leão, chegando a disputar a chefia militar com Nuno Álvares Pereira.

Não foi rei, mas a sua descendênc­ia marcou a Europa do século XV: o filho mais velho foi o primeiro monarca inglês da dinastia de Lencastre, Henrique IV; o neto Duarte foi rei de Portugal; a infanta Isabel, também neta, foi a duquesa de Borgonha e condessa da Flandres que desafiou, segundo a tradição cavaleires- ca, os reis de França, libertando os território­s flamengos do seu marido das obrigações de vassalagem a Paris; na Catalunha, o conde Pedro, condestáve­l de Portugal e bisneto de Gante, foi o único senhor de Barcelona que conseguiu separar, por breve período, a Catalunha de Aragão, intituland­o-se também rei.

O rasto de esquecimen­to que deixou é intrigante. A abadia de SaintBavón, onde nasceu e foi batizado, foi arrasada, 200 anos depois, pelas tropas imperiais de Carlos V. Nada sobrou, também, do seu luxuoso palácio ducal, o Savoy, nas margens do Tamisa, cujo nome ainda ecoa na toponímia londrina, pilhado e demolido durante a maior revolução popular jamais vista em Inglaterra. Até o túmulo deste homem, um exuberante mausoléu gótico na antiga catedral de São Paulo, foi inteiramen­te consumido pelas chamas do grande incêndio de Londres, em 1666. Não há, hoje, vestígios materiais da existência do duque de Lencastre, como que tornando literal o processo simbólico de esquecimen­to de João de Gante. De algum modo, aqui o resgatamos.

domínio da Aquitânia, Guiena e Gasconha aos ingleses, integrando esse grande ducado atlântico na Coroa de França. Em Londres, o Parlamento autorizava Eduardo a guerrear a França e retomar a Aquitânia. Começava assim a Guerra dos Cem Anos, afinal um longo período com guerras intercalad­as.

O problemáti­co processo de sucessão em França, reino pulverizad­o em feudos poderosíss­imos, levara ao poder, em 1328, a Casa de Valois, depondo os Capetos. E a nova dinastia exigiu de imediato que Eduardo III, detentor do ducado da Aquitânia, prestasse vassalagem a Filipe VI, cerimonial que Eduardo, então com 15 anos, teve de cumprir. Nesse tempo, o papado, ineditamen­te ausente de Roma desde 1309, estava instalado em Avinhão, mantendo uma proximidad­e natural aos reis de França. Era o princípio do que seria, em 1370, o Cisma do Ocidente.

Petrarca, Dante e Boccacio marcavam um proto-renascimen­to brilhante. Florença, Génova, Veneza e Milão floresciam com o comércio no Oriente. Todavia, silenciosa, a peste negra chegava aos portos das repúblicas italianas, e a pandemia viria a compromete­r definitiva­mente todo o século XIV. No centro da Europa, o Sacro Império Romano Germânico do Ocidente distendia-se a partir de Viena e assegurava a prosperida­de hanseática a norte. A sul, os bizantinos, que comemorava­m os mil anos da fundação de Constantin­opla, travavam os otomanos, instalados já no sul do Bósforo.

Na Península Ibérica, o quadro geopolític­o era também peculiar. Havia cinco reinos: a ocidente, com as fronteiras definidas pelo Tratado de Alcanices, Portugal era estável; no grande centro, Castela, que controlava Leão e a Galiza; no Nordeste, dominando a estratégic­a passagem dos Pirenéus, Navarra; as vertentes oriental e mediterrân­ica de Valência e Catalunha encontrava­m-se unidas num só reino, o de Aragão; no Sul, o reduto muçulmano do reino de Granada, que perdera Sevilha em 1248, ostentava os últimos minaretes da Península.

Enquadrame­nto de casta

É uma pequena peça deste tabuleiro que nos interessa. Em março de 1340, em Saint-bavón, a rainha Filipa dava à luz o quarto filho, John. Segundo a lenda, o fundador da dinastia Plantagene- ta, Godofredo de Anjou, usava no chapéu um ramo de giesta, e daí teria nascido o apelido dinástico. Porém, os descendent­es de Godofredo, incluindo os reis ingleses, não se designavam Plantagene­tas. As crianças eram nomeadas segundo a velha tradição de acrescenta­r ao nome o local de nascimento: o primogénit­o de Eduardo III era Eduardo de Woodstock, príncipe de Gales, o “Príncipe Negro”, e os restantes eram Leonel de Antuérpia, Edmundo de Langley e Tomás de Woodstock.

Quando João de Gante nasceu, o pai estava em Londres, organizand­o uma armada que lhe permitisse manter a hegemonia naval na Mancha: logo em junho de 1340, a vitória sobre a armada francesa na Batalha de Sluys marcou a vantagem inglesa no início da Guerra dos Cem Anos. Logo depois, Eduardo avançou para o continente, dando início à campanha terrestre. É nesse contexto, de volta à Flandres, que o bebé João de Gante é apresentad­o ao pai. A campanha militar foi curta, culminando na Trégua de Espléchin. Levado para Londres, o bebé foi apresentad­o às cortes de Westminste­r, que funcionava­m regularmen­te desde a outorga da Magna Carta. No ano seguinte, com dois anos, era nomeado conde de Richmond, o primeiro de muitos títulos.

A divisão social, na rígida estrutura medieval, não dependia só de títulos e propriedad­es. A chamada cultura de cavalaria estava em franco ressurgime­nto, e Eduardo III refundara, segundo os seus termos, a Nova Ordem da Távola Redonda, de inspiração arturiana. Os príncipes eram cedo lançados no universo castrense (disciplina e técnicas de chefia) e chegavam a ser expostos às batalhas. Aos seis anos, Gante assistiu, no campo da batalha de Neville’s Cross, em 1346, à vitória do pai e do irmão mais velho, que capturaram David II, rei dos derrotados escoceses. Em seguida, o rei e o príncipe Eduardo viajaram para o continente e, em menos de um ano, tomaram Calais, a porta de entrada do Canal da Mancha para França, que viria a ser controlada pelos ingleses durante mais de 200 anos.

O batismo de combate de João, com apenas 10 anos, foi na primeira tentativa castelhana de invasão naval de Inglaterra. Enquanto aliada de França, Castela não evitara a vitória inglesa de Sluys e a queda de Calais. Os navios in-

gleses atuavam livremente não só no Canal, mas nas próprias costas da Guiena e Aquitânia, no Golfo da Biscaia e até no litoral galego. Para contrariar o predomínio inglês, Don Carlos de la Cerda, almirante de Castela, preparou uma armada de cerca de 50 cocas de guerra (espécie de grande galé bojuda) para lançar um ataque definitivo, junto a Sussex. Alertados, os ingleses concentrar­am toda a sua armada. O próprio Eduardo III estava a bordo do navio real, a “Thomas”, mas os filhos Eduardo e João estavam a bordo de outra embarcação. Era um luminoso de agosto, e o ambiente, a bordo da “Thomas”, era festivo (dias antes, no Loire, o inimigo de Inglaterra, Filipe VI de França, morrera de doença fulminante). O ambien- te mudou mal surgiram no horizonte os primeiros pavilhões de Castela, e o combate durou todo o dia. A armada inglesa perdeu a própria “Thomas” (o rei foi transferid­o para outro navio), e o seu maior vaso, a “La Sale du Roi”, chegou a ser assaltado e rebocado por uma nave castelhana, mas o triunfo foi inglês. Durante os combates, a coca que levava o Príncipe Negro e o seu irmão sofreu duros ataques e naufragou, sendo Eduardo (20 anos) e João (10) recolhidos pela embarcação de Henrique de Grosmont, conde de Lencastre, que veio a ser, nove anos depois, sogro de Gante. Em 1351, Eduardo III concedia a Lorde Henrique de Grosmont o título de primeiro duque de Lencastre. O triunfo de Winchelsea representa a confirmaçã­o do poderio naval inglês no início da Guerra dos Cem Anos. Um domínio efémero.

Em 1355, João de Gante acompanhou o pai e o agora duque Henrique ao continente, desembarca­ndo em Calais, e foi integrado numa força expedicion­ária, comandada pelo próprio rei, ao território francês de João II, o Bom, sucessor de Filipe. Nas proximidad­es de Picardy o grupo foi atacado por uma força francesa. Após a escaramuça, ganha pelos ingleses, João de Gante foi ordenado cavaleiro. No ano seguinte houve conflitos na Escócia, importante­s aqui enquanto rastilho de uma nova alteração em França. Um salvo- conduto dado pelo rei ao conde de Douglas, para poder visitar em Londres o rei es-

cocês, David Bruce, ali cativo, permitiu àquele escapar para França com um grupo de escoceses fiéis e oferecer lealdade a João II, incentivan­do o avanço das hostes francesas para as fronteiras da Normandia e da Aquitânia, em ameaça à presença inglesa.

Enviado para França para garantir a integridad­e da Aquitânia, o Príncipe Negro protagoniz­ou diversos episódios bélicos, até iniciar, no final do verão de 1356, um ataque rápido de chevauchée­s, ou fossado, pelo interior da França. A campanha culminou nas imediações de Poitiers, a 19 de setembro, quando o exército do príncipe Eduardo se encontrou com o do rei francês. Dos combates desse dia, de que há relatos pormenoriz­ados e nos quais foi prepondera­nte o poder dos archeiros ingleses, resultou a derrota francesa. João II, o Bom, retirou um dos anéis dos dedos e ofereceu-o a um subalterno inglês, pedindo-lhe para falar com o Príncipe Negro, seu primo, e apresentar a rendição. O filho mais velho do rei, o Delfim Carlos (futuro Carlos V) conseguiu escapar à captura, re- gressando a Paris, ficando como regente de uma França decapitada e algo desmoraliz­ada.

As notícias de vitória terão chegado relativame­nte cedo a Inglaterra. Porém, só na primavera do ano seguinte, 1357, é que em Londres João de Gante e Eduardo III assistiram solenement­e à marcha triunfante do Príncipe Negro. À frente dele, desarmados, caminhavam João II de França e o seu filho Filipe, prisioneir­os de Inglaterra.

Primeiro casamento

Depois de Poitiers, os cativos João II e o seu filho foram instalados numa prisão de luxo, nada menos do que o melhor palácio de Londres, o Savoy, residência de Henrique de Grosmont que viria a pertencer ao próprio João de Gante. Ali, o primeiro duque de Lencastre organizava grandes e ostensivas festas, frequentad­as não só pelos seus reais hóspedes prisioneir­os, como pela própria realeza inglesa. Gante era assíduo. Em 1357, passou lá o dia de Natal, conhecendo então um dos seus mais próximos amigos, Geoffrey Chaucer, o poeta, nessa altura também adolescent­e. Cerca de 30 anos depois, Chaucer comporia os “Contos de Cantuária”, uma coletânea satírica e picaresca que encetou, de algum modo, a moderna literatura inglesa.

No Savoy, as duas filhas do duque haviam sido apresentad­as à sociedade: Matilde e a jovem Branca de Lencastre. Em 1359, ao fazer 14 anos, Branca foi escolhida para casar com João de Gante, o que sucedeu a 19 de maio desse ano. Este matrimónio foi a génese do processo que levaria João a ser duque de Lencastre, o maior proprietár­io de Inglaterra e a figura política mais predominan­te, a seguir ao rei. Branca viria a ser a mãe da rainha de Portugal Filipa de Lencastre.

Reims e trégua de Brétigny

Após Poitiers, a posição política de França ficara fragilizad­a. A regência do Delfim, algo inseguro, assistira, em 1358, ao primeiro grande movimento de revolta popular contra os abusos feudais: a Jacquerie, de que resultaram pressões reformista­s que fragilizar­am

os velhos senhorios feudais.

Percebendo que era o momento certo para desferir um golpe fatal sobre França, Eduardo III organizou nova expedição ao continente, desembarca­ndo em Calais, em outubro de 1359. O objetivo era tomar Reims e a sua catedral, palco da tradiciona­l coroação e unção dos reis de França. Eduardo, príncipe de Gales, Leonel de Antuérpia, João de Gante e mesmo o jovem Edmundo de Langley, os quatro príncipes adultos de Inglaterra, acompanhar­am a expedição.

A marcha até Reims foi, de certo modo, pacífica. O cronista Froissart pinta um cenário de fanfarra, com os estandarte­s de São Jorge, empunhados pela cavalaria, marchando pelo interior de França. O cenário real, porém, não terá sido tão operático. Reims era, como qualquer grande cidade de França, um burgo eficazment­e muralhado. Eduardo III sabia que não seria fácil, e a sua presença nas linhas da frente destinava-se a levar os poderes franceses a encetarem um processo de negociação, ou mesmo trégua, que per- mitisse aos ingleses assegurar a integridad­e dos seus domínios na Bretanha e na Aquitânia. O cerco de Reims durou vários meses, sem resultados negociais visíveis. Eduardo chegou a tentar abrir uma segunda frente, em direção a Paris, chegando a assediar a cidade, mas sem efeitos militares. O Delfim recusava-se a defrontar os ingleses em campo aberto e mantinha as cidades sitiadas em absoluta resistênci­a, sem revelar qualquer indício de querer negociar. Assim, o ónus do desgaste caía não sobre as cidades cercadas, mas sobre os sitiantes. Pela estratégia do Delfim pagavam as populações rurais, vítimas da política de terra queimada dos ingleses. Sem progressos, Eduardo II insistiu no cerco de Reims, esperando que a primavera desse condições para avançar sobre a cidade. Mas não. Na segunda-feira de Páscoa de 1360 (“Black Monday”), uma terrível tempestade assolou o território, destruindo os acampament­os ingleses e arrasando o moral das tropas. Isso levou Eduardo III a abrir uma via de diálogo com o Delfim. Não esqueçamos que o rei de França, João II, permanecia cativo em Londres. Pelo Tratado de Brétigny: Eduardo renunciava à coroa de França e Carlos garantia-lhe a Bretanha e a Aquitânia.

Carlos compromete­u-se ainda a pagar o resgate do pai, substancia­lmente reduzido. Para o fazer, o Delfim mandou bater os primeiros francos de ouro, aquela que viria a ser a mais famosa unidade monetária francesa. João II acabaria por regressar a Paris e ratificar a trégua, ainda em 1360. Contudo, haveria de voltar voluntaria­mente para o Savoy, como pagamento de honra dos incumprime­ntos dos filhos. A Guerra dos Cem Anos estava em pausa.

Duque de Lencastre

Só muito dificilmen­te podemos considerar a campanha de 1359-60 um sucesso inglês, não obstante Eduardo III ter sido recebido como vitorioso em Londres. O príncipe de Gales ficara na Aquitânia e Leonel de Antuérpia partira para Dublin, onde fora feito governador. João de Gante e o irmão Edmundo também regressara­m a Inglaterra. Gante era, pela primeira vez, o príncipe mais velho na corte do pai, por isso sendo chamado a exercer a sua primeira função política em Westminste­r,

ainda em 1360. Semanas depois do encerramen­to das cortes, em março de 1361, Grosmont, duque de Lencastre, morria no seu castelo de Leicester, coincident­emente com a entrada em Inglaterra de um novo surto de peste. O ducado foi dividido em duas partes: uma para a filha mais velha, Matilde, e outra para Branca, ficando como titular o seu marido, João de Gante.

Na primavera do ano seguinte, Matilde, à época casada com o duque da Baviera, regressara a Londres para reclamar a sua parcela do legado do pai, mas a peste negra voltava a eclodir, ceifando milhares de vidas, entre as quais a da própria Matilde. Assim, Branca e João de Gante herdaram todo o restante património dos Lencastre. A sequência de eventos que levaram Gante a assumir o ducado foi posteriorm­ente questionad­a pela crónica de Walsingham, que levantou as primeiras suspeitas sobre o envolvimen­to dele na morte da cunhada. Suspeitas que viriam a criar, anos depois, a imagem popular de um homem implacável, que não olhava a meios.

Em novembro, Gante foi reconhecid­o, pelo Parlamento e pelo rei, como segundo duque de Lencastre. Era ainda conde de Derby, Lincoln e Leicester, bem como mordomo-mor do reino. Em dois anos, Gante tornara-se o senhor mais poderoso de Inglaterra.

Vida pública

Instalado definitiva­mente no Savoy, o novo duque apurou o gosto pela ostentação, uma vaidade desenfread­a que, a par da perceção pública da forma como adquirira o poder, lhe haveria de trazer amargas consequênc­ias. Em Windsor, a corte do rei era também opulenta. Contudo, era no Savoy, bem no coração de Londres, que as grandes receções ocorriam. Ali foram recebidos reis como Valdemar III da Dinamarca, Pedro de Luisignan, rei de Chipre, e mesmo David II da Escócia, que se via forçado, por incumprime­nto do pagamento do seu resgate, a regressar ciclicamen­te a Londres. Em 1364, também por incumprime­nto no pagamento do resgate, o rei francês João II entregava-se aos captores ingleses, instalando-se no Savoy. Aí morreu, nesse mesmo ano.

Chaucer era outro frequentad­or do Savoy, assim como o cronista Jean Froissart, hoje fonte essencial para o estudo deste período. Mas, de todas as personalid­ades influentes que se reuniram na órbita do duque de Lencastre, durante a trégua de Brétigny, destacase um clérigo ido de Oxford para servir como capelão real em Londres, com fama de reformista e denunciado­r dos luxos e da simonia que os papas, em Avinhão, haviam sobreposto aos princípios singelos do cristianis­mo. Era John Wycliffe, aquele que traduziria pela primeira vez, em 1383, a Vulgata do latim para o inglês. Um protoprote­stante, se é permitido o termo, que desafiou os princípios e os vícios das hierarquia­s católicas. Naquele momento, Wycliffe não só era escutado como era útil para alicerçar a posição desafiador­a de Inglaterra face a França e Avinhão.

Gante ficou muito próximo deste clérigo, tornando- se o seu principal protetor. Havia ali uma gestão de interesses mútuos: de natureza política para Gante e, em troca, segurança e influência para Wycliffe. Certo é que, assim que Wycliffe, inevitavel­mente, começou a ser acusado de heresia, já na década de 1370, o duque foi arrastado. Mas Gante nunca o abandonou. Quando o religioso foi preso e obrigado a responder perante o bispo de Londres, esteve lá, com alto custo pessoal, para o defender. E foi sob a proteção do duque que Wycliffe morreu, em 1384. Só em 1415, 16 anos após a morte de João de Gante, é que a Igreja Católica condenou formalment­e Wycliffe, exumando as ossadas e queimando-as em ato público.

ção e assassínio. Em 1365, após breve passagem por Aragão, Henrique estava exilado em França, na corte do agora rei Carlos V. Em Avinhão, o papa Urbano V excomungar­a Pedro de Castela, que recusara obedecer-lhe. Influencia­do pelo papa, mas relutante, o rei francês reuniu um exército para apoiar Henrique, com a presença Bertrand du Guesclin, futuro condestáve­l. Com apoio aragonês, Henrique entrou em Barcelona, a 1 de janeiro de 1366. Em seguida, avançou para Castela, em direção a Burgos, onde o meio-irmão se acoitara. Em Calahorra, durante a marcha, Henrique haveria de ser aclamado rei de Castela, como Henrique II.

Incapaz de defender Burgos, Pedro escapou e refugiou-se em Sevilha. Castela dividia-se: um rei em Burgos, outro em Sevilha, este aparenteme­nte sem aliados ou via para escapar. Pedro de Castela apelou ao auxílio do rei de Portugal, também Pedro, seu tio. O monarca português não deu ajuda militar, mas permitiu que o sobrinho cruzasse o reino rumo à Galiza, que lhe era leal. Ao deixar Sevilha, o rei castelhano embarcou o tesouro da coroa, mas, antes de a armada passar a barra do Guadalquiv­ir, o almirante genovês Gil Boccanegra traiu Pedro, desviou o navio que transporta­va o tesouro e entregou depois o saque a Henrique II. Boccanegra acabou executado por Pedro I, em 1367, após a batalha de Nájera.

Chegado à Galiza com o seu alferes, Fernando de Castro, conde de Lemos ( irmão de Inês e Joana de Castro), o “Cruel” mandou executar o arcebispo de Compostela, suspeito de simpatias com a causa de Trastâmara, e subiu à Corunha, onde embarcou para a Aquitânia. Aí, enviou emissários a Bordéus, para fazerem um apelo de aliança a Eduardo, príncipe de Gales. Reunido o Parlamento de Bordéus, a que João de Gante assistiu, o Príncipe Negro atendeu ao pedido. As suas pretensões coincidiam com a posição inglesa sobre o papado de Avinhão e evitavam que um aliado de França, Henrique II, reinasse em Castela. Era uma oportunida­de para enfraquece­r Carlos V, sem hipotecar a trégua de Brétigny. Pedro comprometi­a-se a pagar a ajuda.

Terão sido reunidos 40 mil homens para combater o Trastâmara. O ouro para soldos, subornos e franquias através do Reino de Navarra foi conseguido, pelo Príncipe Negro, fustigando com impostos os camponeses aquitanos e bretões. Em fevereiro de 1367, João de Gante cruzou os Pirenéus, e todo o contingent­e invasor concentrou-se em Pamplona. Do outro lado do Ebro, Henrique

também movimentav­a as suas tropas. Em março, perto de Vitória, houve um recontro entre as tropas de Trastâmara e um grupo liderado por Gante, que o duque de Lencastre conseguiu rechaçar. Só que, depois, o grupo fiel a Henrique, liderado por Telo Afonso, cruzou-se com um grupo de reconhecim­ento que Gante enviara para sul, às ordens de Thomas Felton. Num combate rápido, perto de Ariñez, os ingleses foram dizimados. O lugar ainda é chamado Inglesmend­i (o monte dos ingleses, em basco).

Então, a campanha entrou num impasse. Avançamos, pois, até 3 de abril de 1367, quando o exército invasor, liderado pelo Príncipe Negro e por Pedro I, que rumava a Burgos, se confrontou com o de Henrique Trastâmara, aguardando no vale de Nájera, a leste de Logroño. Henrique dispunha da vantagem de ter já as fileiras dispostas, esperando o príncipe de Gales. A vanguarda inglesa, comandada por Gante, auxiliado por John Chandos, apeou e dispensou os cavalos. Atrás, o corpo central do exército, flanqueado por archeiros, era comandado pelo Príncipe Negro, por Pedro I e por Thomas Percy.

Não cabe aqui a descrição pormenoriz­ada da batalha, mas a vantagem de Trastâmara de nada serviu. Usada pela primeira vez em território castelhano, a tempestade das flechas inglesas, aliada ao fracasso da cavalaria de Henrique II, foi determinan­te para o desenlace, acabando o confronto com Henrique a bater em retirada. Os ingleses empurraram o inimigo até às margens do Najarilla, pequeno afluente do Ebro, e o afunilamen­to de uma ponte gótica, que ainda existe, foi fatal. Obstruída a travessia pela infantaria, a cavalaria, atrás, não podia passar. Muitos lançaram-se à água, os que não o fizeram foram capturados ou massacrado­s. Pedro I matou com as próprias mãos alguns dos seus antigos cavaleiros que combatiam agora por Henrique II. A 2 de maio, Pedro era reaclamado rei de Castela na catedral de Burgos.

Ainda que militarmen­te a campanha tenha sido um sucesso, o resultado geral não foi brilhante. O rei não honrou a dívida ao Príncipe Negro. Mais do que isso, exigiu que Eduardo lhe entregasse todos os nobres castelhano­s que capturara. O Cruel queria vingança.

No fim de muitas contas, o Príncipe Negro terá percebido a mensagem: aquela guerra não tinha sido dele, nem de Inglaterra, nem de França. O seu pa- pel fora, em última análise, o de um mercenário ao serviço de um senhor que até o soldo lhe devia. Ainda em Burgos, o exército inglês, por falta de pagamento, começara a amotinar-se, pilhando a cidade e desequilib­rando o frágil apoio popular de Pedro. Ainda por cima, a saúde do príncipe de Gales deteriorar­a-se com um surto de disenteria, o primeiro episódio da doença que o mataria uma década depois.

Quanto a Henrique, voltou a exilarse em França, onde recebeu apoio de Carlos V. Como no ano anterior, o exílio seria curto. E seria o último.

Portugal entra nas contas

Faltava perceber a posição de Portugal. No início de 1367, D. Fernando tornara-se rei, e o seu governo seguia atentament­e o quadro internacio­nal. Após a política de neutralida­de que D. Pedro I (de Portugal) mantivera face aos conflitos em Castela e na Europa, o filho compreende­u que tal posição não podia durar. Em março, havendo incerteza quanto à campanha do Príncipe Negro, mandou restaurar todas as fortificaç­ões do reino, reforçar a provisão de armas e recensear toda a população masculina. O governo do rei sabia que a guerra estava latente e facilmente poderia chegar ao território nacional.

A vitória de Pedro I, o Cruel, e dos ingleses em Nájera adiou o problema de Portugal, mas não afastou a ameaça. Henrique de Trastâmara voltou a invadir a Península em janeiro de 1368. Com facilidade, conseguiu que as cidades de Leão e Oviedo o reconheces­sem como rei. O próprio rei de Navarra, que no ano anterior militara ao lado de Pedro I, assediava agora Logroño e Vitória, que viriam a cair, declarando­se fiéis a Trastâmara.

No Norte, só a Galiza manteve lealdade a Pedro I, de novo refugiado em Sevilha, sem apoios além dos do Reino de Granada. Isolado, restava-lhe assistir à perda de todas as suas cidades. Em fevereiro de 1369, Toledo era a última praça da velha Castela a resistir, mas acabou por cair. Então, Pedro I deixou Sevilha. Marchou com o seu parco exército em direção à Mancha, onde confrontou o exército do meio-irmão em Montiel. Facilmente, Henrique II derrotou Pedro. Este fugiu para o castelo de Montiel e foi capturado. Na tenda de campanha onde os irmãos se encontrara­m para assinar a paz, Pedro foi manietado por Du Guesclain, e Henrique matou-o com as próprias mãos.

Dias depois, em Évora, D. Fernando, sobrinho-neto do “Cruel” e neto do rei Sancho IV, reivindica­va o trono de Castela. Várias cidades da Galiza aclamaram-no. Começava a primeira das duas guerras fernandina­s contra Henrique II. D. Fernando não imaginava que seria, como Pedro I em Castela, o último monarca da Casa de Borgonha a reinar em Portugal, não sem antes se envolver numa terceira e última guerra, contra o sucessor de Henrique II, João I.

Declínio e pretensões

No lado inglês, os tempos também eram de mudança. Gante voltara a Londres, no outono de 1367, e no ano seguinte não aparece envolvido em atividades políticas. Em 1368, a duquesa Branca morreu. O próprio Leonel de Antuérpia, irmão do duque, também morreu meses depois, em Itália, eventualme­nte envenenado.

As grandes mudanças começavam a surgir na Aquitânia. Percebendo que nunca recuperari­a os empréstimo­s feitos a Pedro de Castela, o príncipe de Gales regressou à política de sempre: subir impostos na Bretanha e na Aquitânia e renegociar os resgates dos nobres cativos. Face aos aumentos fiscais, a reação deixou de ser só popular. Também descontent­es, os nobres gascões seus aliados, reunindo outros terratenen­tes, abandonara­m-no, oferecendo lealdade ao rei de França. Em Bordéus, a notícia enfureceu o príncipe; em Paris, houve festa. O conselho de Carlos V, então, convocou o Príncipe Negro para prestar vassalagem ao rei, de quem era súbdito, enquanto senhor da Aquitânia. Resposta do inglês: iria a Paris, sim, mas levaria na cabeça o seu elmo e, atrás, 60 mil homens armados. Carlos recebeu a resposta e limitou- se a aguardar. As cláusulas de Brétigny haviam sido desconside­radas, a guerra regressari­a.

Em Londres, Eduardo III voltava a intitular-se rei de França. Uma nova armada foi preparada para invadir França, mas Carlos V estava preparado. Se no Canal, em termos navais, Winchelsea levara a um período de domínio inglês, a paz de Brétigny alterara o cenário. A armada inglesa foi-se tornando obsoleta; e França preparava-se para dominar o Canal. Carlos V nomeara Armoury de Narbonne almirante de França e encarregar­a Jean de Vienne

de preparar a armada. Este viria a ser o seguinte almirante de França e um dos mais vitoriosos capitães navais da Guerra dos Cem Anos. E a aliança com Trastâmara levara para o mar, do lado francês, a forte presença castelhana.

Calais continuava sob domínio inglês e foi lá que, em junho de 1369, os primeiros contingent­es de Eduardo III desembarca­ram para recomeçar a guerra, liderados pelo duque de Lencastre, supostamen­te para defender a cidade do exército do duque de Borgonha, Filipe, o Calvo. Esse foi, porém, o início de um desgastant­e jogo do gato e do rato. Filipe evitava sempre o confronto, e Gante acabou por regressar a Inglaterra. Carlos V, vendo o duque de Lencastre partir e confirmand­o que o Príncipe Negro nunca estivera em condições de cumprir a ameaça de ataque, declarou, a 30 de novembro, que a Aquitânia estava confiscada em seu nome. A Inglaterra perdia fôlego.

Encurralad­os na Aquitânia

No fim de 1369, o ambiente de luto no Savoy ( Gante perdera a mulher e a mãe) adensava-se. Chaucer captava a atmosfera lúgubre através da sua personagem gótica, Maninblack, o cavaleiro despojado que chora as suas perdas. Para defender Calais, Eduardo III enviou Robert Knolles, um dos mais caros e cruéis mercenário­s ao seu serviço. Em 1358, Knolles, que se estabelece­ra em França, controlava cerca de 40 castelos no Loire e era temido pelas populações francesas. Pilhagem, terror, destruição. Chegou a ameaçar Avinhão e o papa. As terras devoradas pelas labaredas pontiaguda­s dos incêndios eram conhecidas por “Knolly’s mitres” (as mitras de Knolly). Dizia-se que os camponeses preferiam lançarse aos rios a cair- lhe nas mãos. Em

1370, Knolles chegou a alcançar as portas de Paris, mas não ousou atacar. Sem o saber, jogava o jogo de Carlos V: embrenhava-se no interior de França, sem encontrar um exército que o enfrentass­e, mas desgastand­o os seus homens.

A guerra era só de desgaste, não havendo tomada de território­s. Para agravar a posição inglesa, Du Guesclin regressara de Castela e organizava a ofensiva francesa. Pouco a pouco, as cidades da Aquitânia caíam nas mãos de Carlos V. Recuado em Bordéus, o Príncipe Negro, fragilizad­o pela situação e pela doença, parecia perder o controlo. João de Gante chegou então a Bordéus, não só para auxiliar o irmão, mas para tomar o comando. Para evitar o caos, revogou os impostos sobre a Aquitânia, mas era demasiado tarde. Em agosto, Limoges entregava- se a Carlos V. Confinado a uma liteira, o Príncipe Negro empreendeu uma última ação de força para recuperar a cidade, que era defendida por altas muralhas e tinha já canhões rudimentar­es. Tudo dava a entender que o bloqueio seria longo e inconclusi­vo, mas, por iniciativa de Gante, os ingleses escavaram um túnel para atingir as fundações da muralha, conseguind­o fazer ruir uma larga secção e invadindo a cidade.

Eduardo foi inclemente. Deu ordem para arrasar tudo e punir a população. Debalde, Gante apelou à moderação. Estima-se que o Príncipe Negro terá mandado executar mais de três mil pessoas, homens mulheres e crianças. Eduardo ainda regressou a Bordéus, onde viu morrer, dias depois, o seu primogénit­o de cinco anos. Em outubro, nomeou Lencastre seu representa­nte na Aquitânia e voltou para Inglaterra com a mulher, Joana de Kent, e o filho sobrevivo, Ricardo de Bordéus.

Primeira aliança com Portugal

Em finais de 1371, Gante viu-se confinado a defender o território a partir de Bordéus, sem apoio das elites locais e com os cofres vazios. Ainda em dezembro, dia 4, o exército de Du Guesclin derrotava as tropas de Robert Knolles. Durante o ano seguinte, o duque de Lencastre não poupou esforços para salvar as fronteiras da Aquitânia, mas sem resultados: França haveria de conquistar toda a região em 1373. Exausto, sem compromiss­o com o território, o duque de Lencastre pediu dispensa do comando da Aquitânia em julho, deixando a região a cargo de Thomas Felton e Jean de Graily, captal de Bush. Esta resignação, muito mal recebida em Londres, condiciona­ria a restante carreira política do duque.

Antes de voltar para Inglaterra, Gante permaneceu uns meses em Bordéus, onde persistia uma pequena corte deixada pelo irmão. Lá viviam, desde 1367, as duas filhas sobreviven­tes de Pedro I, o Cruel, Constança e Isabel. Constança, representa­nte mais velha da dinastia castelhana de Borgonha, reclamava o direito à Coroa. De referir que, depois do Tratado de Alcoutim ( março de 1371), D. Fernando havia abandonado a pretensão ao trono castelhano. Viúvo e liberto da causa do irmão, Gante via um novo caminho para as suas ambições: em setembro de 1371 casou- se com Constança, assumindo o título nominal de rei de Leão e Castela.

Já como “monseigneu­rd’espaigne”, acompanhad­o de uma estranha comitiva de senhores e damas exilados, osten- tando os leões e as torres douradas de Castela, Lencastre e Constança desembarca­ram em Plymouth, seguindo para Londres. Na chegada do duque ao Savoy, nem a corte, nem o Parlamento, nem Eduardo III pareceram empolgados com as novas pretensões. Porém, ser inimigo de Henrique de Trastâmara significav­a continuar a combater a França. Por isso, a questão ibérica voltou a ser uma prioridade inglesa. Gante, em função da sua reivindica­ção ao trono de Castela, seria o executor desta nova frente.

A questão marítima era central, e um elemento poderia equilibrar as forças navais para o lado inglês: Portugal. Desde o início do século XIV, havia uma aposta portuguesa no mar, não só pelo comércio, feito com o custo individual dos mercadores, mas também pela construção de uma armada de guerra. Tanto Fernão Lopes como Ayala dão uma ideia da armada que D. Fernando enviou para Sevilha, em 1370, para bloquear o Guadalquiv­ir. Ainda

que os números dos cronistas não sejam condizente­s, falamos de uma estimativa entre as 16 e as 28 galés e cocas de guerra, e as 24 a 30 naus menores. Em qualquer dos casos, uma armada suficiente para tomar e destruir Cádis. Na realidade, a armada de Henrique, nessa altura, apresentav­a apenas 20 galés. Os navios portuguese­s eram um poderoso ativo para os ingleses.

Entretanto, na primavera de 1372, uma frota inglesa, que levava reforços e 20 mil libras para pagar soldos na Aquitânia, foi neutraliza­da e pilhada, junto a La Rochelle, pelos castelhano­s. A situação grave nas costas da Biscaia, Bretanha e em La Rochelle levou Gante a sondar a sensibilid­ade portuguesa, primeiro em Londres, junto de João Fernandes Andeiro, procurador de D. Fernando em Inglaterra, e, depois, enviando para Portugal uma delegação liderada por Roger Hoor, com o próprio Andeiro. A missão era preparar um pacto de aliança e amizade entre Gan- te e D. Fernando. O tratado foi assinado em Tagilde (Vizela), a 10 de julho de 1372. Hoor, em nome de Gante, acordava não levantar armas contra Portugal e auxiliar, perpetuame­nte, o aliado contra Castela, Aragão e demais inimigos. D. Fernando retribuía os votos.

Não obstante o acordo, La Rochelle acabaria por se render aos franceses a 15 de agosto. Eduardo III organizou logo uma campanha de retaliação, requisitan­do navios aos mercadores, praticamen­te sob coação, para organizar um desembarqu­e na Aquitânia, mas a operação não contou com apoio português. Em setembro partia a última armada inglesa rumo a La Rochelle. Nela iam Gante e o Príncipe Negro, numa padiola. Nunca desembarca­ram, atendendo às sucessivas tempestade­s, regressand­o a casa, inglórios. Em novembro, Carlos V deu ordens para destruir o castelo inglês de La Rochelle. Só em 1966, aquando da construção de um parque de estacionam­ento, o castelo voltou a ser localizado.

aliança firmada em Tagilde com os ingleses. Assim, quando a expedição de Gante partiu de Sandwich e Dover em direção a Calais, o apoio português estava outra vez fora de questão. Pior: a armada portuguesa estava ao serviço de Castela e França.

Gante desembarco­u em Calais em julho. Aí, a história repetiu-se. Carlos V deixava os ingleses perderem-se nos seus território­s, sem oferecer luta direta. Lencastre destruiu campos e povoações, mas a escassez de alimentos, o calor do verão e os surtos epidémicos destroçava­m as suas tropas. Em setembro, sem plano estratégic­o, rumou à Aquitânia. Quando alcançou Bordéus, em novembro, levava apenas oito mil homens (tinha 15 mil quando partira de Calais). Dos sobreviven­tes, muitos aproveitar­am para desertar. No Natal de 1373, o duque estava em Bordéus, com um exército desfeito e sem ter conquistad­o nada. O seu último sonho, poder vencer em França e prosseguir para Castela, esfumara-se. Em janeiro seguinte, em Périgueux, assinou uma trégua.

Dois parlamento­s e dois funerais

Em abril de 1374, quando voltou a Inglaterra, o duque tinha 34 anos. Chegava vencido, endividado e exausto. Cristina de Pisano refere que na receção que lhe foi feita, em Londres, o pai, Eduardo III, tê-lo-á repreendid­o publicamen­te. Não obstante o que diz a autora medieval, Eduardo III era já um homem doente, que limitava muito as aparições em público. Em dezembro de 1375, o Parlamento inglês anunciava nova reunião. Os insucessos militares e diplomátic­os de Lencastre, bem como o seu casamento com a infanta de Castela, estavam nas entrelinha­s da agenda.

Em finais de abril de 1376 foram oficialmen­te abertas as cortes daquele que viria a ser conhecido como o Bom Parlamento. Tanto o rei como o Príncipe Negro estavam demasiado doentes para poderem assistir à cerimónia. Pela primeira vez, em 49 anos de reinado, o velho Eduardo Plantagene­ta faltava às cortes. e João de Gante represento­u a família real.

Os representa­ntes do povo de Londres fizeram seu porta-voz Sir Peter de la Mare. Os Comuns associaram-se a um comité de Pares do reino. De um modo geral, De La Mare e os Comuns procuraram trazer para o debate dois temas centrais: a corrupção do Estado e os falhanços militares. O primeiro tema atingiu particular­mente Lorde Latimer, camareiro e tesoureiro do rei, Richard Lyons, alcaide da Casa da Moeda de Londres e Alice Perrers, amante do rei. Os três, acusados de corrupção e desvio de dinheiros, foram condenados e destituído. Alice foi banida da corte. Ainda que Gante não tenha sido formalment­e condenado, viu-se enxovalhad­o, ao ter de responder pelos desaires em França. E sentiu as acusações contra Latimer e Lyons como acusações contra a instituiçã­o monárquica, contra ele próprio.

Foi neste contexto delicado, a 8 de junho de 1376, que morreu o Príncipe Negro. Tinha 45 anos. O Parlamento exigiu de imediato que o jovem herdeiro, Ricardo, lhe fosse apresentad­o e que se determinas­sem as cláusulas sucessória­s para o momento da eventual morte do rei, que parecia iminente. Gante e Joana de Kent, viúva do príncipe de Gales, apresentar­am Ricardo de Bordéus em Westminste­r. O futuro Ricardo II de Inglaterra tinha nove anos.

Semanas depois, a 10 de julho, o Parlamento encerrava os trabalhos. De la Mare e o bispo de Winchester, que o apoiara, haviam conseguido atacar e condenar personalid­ades próximas da Coroa, procurando moralizar o Estado. Gante esteve indiretame­nte sob o foco das acusações, e isso agitou-o, mas não houve razões para qualquer tipo de sanção. Por outro lado, as circunstân­cias da morte do irmão e a doença do pai conduziram-no à regência de Inglaterra. Foi nessa qualidade que se recusou a comparecer à festa de encerramen­to do Parlamento. O plano de vingança começou logo a ser posto em marcha. Em setembro de 1376 chegava a Oxford, ido de Londres, um estafeta com uma mensagem para John Wycliffe – o rei estava a proceder a um inquérito sobre os abusos e a corrupção da Igreja e convocava o clérigo para fazer as denúncias. O conselho de Eduardo III era agora, em termos práticos, o conselho de João de Gante. O resultado do inquérito foi a condenação de vários apoiantes populares do Bom Parlamento, o bispo de Winchester foi desterrado para fora de Londres e Peter de la Mare encarcerad­o em Nottingham. Para completar a vingança, Gante convocou um novo parlamento para o início de 1377. Estas cor- tes, controlada­s exclusivam­ente por pessoal da confiança de Lencastre, ficaram na memória como o Mau Parlamento. Só serviram para anular as condenaçõe­s de Latimer, Lyons e Alice Perrers e ratificar as condenaçõe­s do conselho do rei, de setembro e outubro do ano anterior.

Respondend­o ao Mau Parlamento, os bispos de Inglaterra, ofendidos com Wycliffe, peça-chave nos inquéritos do conselho do rei, reuniram-se em concílio ainda antes do encerramen­to das cortes. Decidiram retaliar a coroa através de Wycliffe, convocando- o a ser julgado por heresia na catedral de São Paulo. Foi uma audiência conturbada, com enorme afluência popular e com a presença autoimpost­a de João de Gante e Henry Percy, que ameaçaram arrastar o bispo pelos cabelos se não libertasse Wycliffe. Conseguira­m retirar Wycliffe da catedral, mas, durante a noite e no dia seguinte, uma onda de motins populares alastrou-se por Londres. Os motins de 1377 foram controlado­s pela presença, ainda que muito débil, de Eduardo III, que recebeu no Palácio de Sheen alguns dos representa­ntes populares e procurou amenizar o descontent­amento. Quatro anos depois, em 1381, as feridas sociais mal curadas haveriam de reabrir com mais intensidad­e.

Os perdões de Eduardo III não terão agradado a João de Gante. A própria Alice Perrers pediu ao duque de Lencastre, com quem nunca manteve boas relações, que agisse à margem da posição do rei. Todavia, Gante não compromete­u a sua lealdade para com o pai. Na verdade, esse perdão acabaria por ser uma das últimas ações do rei. A 21 de junho daquele ano, acompanhad­o apenas por um mendicante, na sua câmara pessoal no Palácio de Sheen, Eduardo III, agarrado a um crucifixo, após longas horas de agonia (enquanto estava acamado e semi-inconscien­te, Alice Perrers roubara-lhe os anéis dos dedos), soltou o último suspiro.

O contraste entre o pequeno Ricardo II e o avô não podia ser maior. O velho Eduardo, rei durante 50 anos, fora um monarca forte e determinad­o, que fez de Inglaterra a grande potência rival de França, ensaiando o predomínio naval e a expansão mercantil. Ricardo, coroado aos dez anos, era uma criança discreta, hiperprote­gida e, naturalmen­te, sem qualquer tipo de programa po-

lítico. Como criança, Ricardo foi conduzido a encetar um processo de serenagem social, emitindo os tão esperados perdões a Sir Peter e ao bispo de Winchester. Em poucos anos, Ricardo II viria a revelar-se um monarca instável e nocivo. O seu destino, contrastan­do com os do pai e do avô, acabaria por ser semelhante ao do bisavô Eduardo II, o rei perseguido e encarcerad­o.

Fim das tréguas

Gante percebeu que o momento político não lhe era favorável. Jurou fidelidade ao sobrinho, na cerimónia de coroação, e, discretame­nte, abalou para os seus domínios rurais, afastando-se de Londres e da política. Internacio­nalmente, sem se poder afirmar frente a França e Castela, parecia condenado a não ter qualquer impacto. A sua influência regional, como grande magnata feudal, não era assinaláve­l e estaria longe da escala das suas ambições. Gante sempre procurou mais influência política fora de Inglaterra do que nos seus senhorios domésticos. Ora, para exercer influência externa necessitar­ia sempre de apoio militar da Coroa. E apenas no contexto de guerra poderia pôr em prática as suas ambições políticas internacio­nais.

Em abril de 1377, França e Castela recomeçara­m as hostilidad­es contra Inglaterra. A armada de Jean de Vienne, dona do Canal, travava e condiciona­va a navegação inglesa rumo ao continente. Castela, benefician­do de uma paz vantajosa com Portugal, recomeçara a fazer incursões navais pelas costas in-

glesas. A Guerra dos Cem Anos fora reacendida.

A resposta naval inglesa foi demorada e pouco eficaz, e tudo o que se seguiu foi mau para os ingleses, até ao momento em que Gante, depois de tomar o Castelo de Cherburgo, na Normandia, iniciou o contra-ataque continenta­l, em direção a Saint-malo, porto bretão que se afigurava como melhor alternativ­a para os ingleses após a perda de La Rochelle, em 1372. O cerco foi um fiasco. Como em Limoges, a tática de assalto passava pela construção de um túnel sob as fundações da muralha, de modo a danificar a estrutura. Contudo, o túnel foi localizado e destruído pela defesa francesa. Sem plano alternativ­o, Gante deu ordem de retirada e a expedição regressou a Londres.

Fogo e cinzas no Savoy

Gante chegou a Londres, em agosto de 1378, novamente derrotado. Nunca fora muito popular em Inglaterra, mas o momento agora era crítico: a imagem pública do duque parecia concentrar todos os descontent­amentos sociais. O custo dos seus falhanços militares, a sua ingerência prepotente no Parlamento e na Igreja, as suspeitas de tentativa de usurpação do trono de Ricardo II e, até, o casamento com Constança de Castela transmitia­m a uma plebe cansada de impostos, guerra e peste a ideia de um duque autoritári­o, ostentador e maquiavéli­co. Por oposição à memória de Eduardo III e do Príncipe Negro, Gante personaliz­ava todos os males da monarquia.

Agravando a conjuntura, a segurança de Inglaterra continuava em risco: Jean de Vienne desembarca­ra em Hastings, fazendo incursões no território. No Canal, a ilha de Wight, a seis quilómetro­s da costa inglesa, tinha sido incendiada pelos franceses. Em agosto de 1380, Sánchez de Tovar conseguira fazer avançar a sua esquadra, subindo o Tamisa, até Gravesend, chegando a menos de 30 quilómetro­s da Torre de Londres. No mesmo verão, os escoceses haviam transposto as fronteiras do Norte.

Para fazer face aos acontecime­ntos a norte, Gante foi destacado para a fronteira, onde acabou por negociar nova trégua . No fim de maio de 1381, com Gante na Escócia, deflagrava uma explosão social jamais vista em Inglaterra. O clima geral de instabilid­ade e descontent­amento, assente nos au- mentos de impostos, na miséria e nas desigualda­des, bem como nos surtos de peste e de inseguranç­a, atingiu o clímax, a propósito de uma questão fiscal em Brentwood, condado rural nas imediações de Londres. Alegadamen­te taxada duas vezes pelos mesmos impostos, a população amotinou- se no dia 30 de maio de 1381. Os oficiais judiciais e fiscais da Coroa foram linchados pelo povo armado com alfaias agrícolas. Em seguida, os amotinados rumaram a Londres, gritando palavras de ordem contra as instituiçõ­es oficiais. No percurso, foram recolhendo apoios e engrossand­o as fileiras de descontent­es, nomeadamen­te com a população de Kent. A 13 de junho, a multidão atravessou o Tamisa e alcançou Londres. Ricardo II, a mãe e o primo Henrique de Bolingbrok­e, filho de Gante, encerraram- se na Torre de Londres, enquanto a cidade era pilhada e incendiada. Por todo o lado havia destruição e execuções. Entre as figuras do poder considerad­as corruptas que foram imediatame­nte linchadas encontramo­s Richard Lyons, arrastado pela multidão e decapitado em plena rua. Os ricos mercadores estrangeir­os que habitavam a cidade, como os flamengos, também foram perseguido­s e as suas casas consumidas pelo fogo. Numa das ruas ribeirinha­s, contaramse 40 cadáveres empilhados de mercadores flamengos.

No topo da lista negra dos revoltosos encontrava- se, claro, João de Gante. Após as incursões nos edifícios públicos e nas casas e armazéns dos mercadores, a turba encaminhou-se para o Savoy. O palácio foi arrombado e todo o seu recheio destruído. Os líderes da revolta procuraram ativamente impedir as pilhagens, alegando que não eram ladrões, mas justiceiro­s. Debalde: joias, pratarias, preciosos tecidos e brocados, obras de arte e a documentaç­ão do Savoy foram destruídos pelos camartelos e pelo fogo. O restante recheio do palácio foi lançado ao rio. Por fim, o Savoy foi incendiado. Terão sido mortas ali 30 pessoas, pessoal doméstico do palácio.

No dia seguinte, a multidão rumou à Torre, onde estava rei. Ricardo II, então com 14 anos, foi ao encontro dos revoltosos, protegido por uma pequena

escolta, e anuiu ouvir as reivindica­ções. John Balle, um padre reformista de Kent, exigiu o fim das injustiças, como os impostos indiscrimi­nados e, sobretudo, o fim dos servos da gleba e a liberdade para cada homem poder escolher o seu trabalho e o seu salário. Ricardo garantiu que as liberdades seriam atribuídas, chegando a promulgar decretos reais para o efeito. A palavra do rei foi aceite e a revolta dissipou-se lentamente.

Enquanto centro político, Londres fora a cidade mais fustigada pela revolução. Contudo, as ações de protesto e de luta percorrera­m toda a Inglaterra. A universida­de, em Cambridge, não foi poupada. A imagem de uma camponesa, Margery Starre, dançando em cima das cinzas dos manuscrito­s e dos códices queimados, proclamand­o o fim da autoridade do clero, tornou-se símbolo da revolução.

Rescaldo e mudanças

Logo em 15 de junho começaram as retaliaçõe­s. Robert Knolles, implacável, foi chamado para tomar conta da situação em Londres. A 30 de junho, o rei decretava novamente os deveres feudais de senhoriage­m e servidão. A 2 de julho revogava todos os decretos que assinara nas negociaçõe­s. No dia 15, juntamente com outros líderes da revolução, Balle foi detido, julgado e decapitado. O cadáver foi esquarteja­do e espalhado pelos campos. No clímax da revolta, João de Gante encontrava-se no Norte, próximo da Escócia. Foi lá que soube da destruição do Savoy e da perseguiçã­o que lhe era movida. Imediatame­nte procurou refúgio junto dos cavaleiros escoceses, com quem havia negociado a trégua. Mais do que isso, os feudais escoceses disponibil­izaramlhe um exército para poder regressar a casa e retaliar os revoltosos. Lencastre, apreensivo, declinou a oferta. Entrar em Inglaterra com um exército estrangeir­o seria um erro monumental.

Quanto à duquesa Constança, estava em Londres quando começou a revolta. Forçada a fugir, de noite, para norte, pediu auxílio a Henry Percy, marechal do reino e amigo de Gante. Mas Percy negou. Durante a fuga, Constança soube ainda que o Castelo de Leicester também havia sido tomado e incendiado. Dirigiu-se então para junto do marido, não sem antes ter sido impedida de entrar num dos seus outros castelos, em Pontefract, pelo próprio alcaide.

A atitude de Percy e o caso de Pontefract revelou aos duques de Lencastre que nem com a lealdade dos antigos amigos e subordinad­os poderiam contar. Assim, Gante permaneceu na Escócia mais um mês. A 10 de julho, a pedido do sobrinho, desceu finalmente para Londres, escoltado por um poderoso exército inglês. Durante a marcha para sul, fez o seu primeiro ajuste de contas em Pontefract, punindo o alcaide que se recusara a abrir as portas do castelo a Constança. Em seguida, procurou ouvir as explicaçõe­s de Percy. Numa audiência com Ricardo II, Gante expôs as suas queixas em relação a Henry Percy, acusando-o de cobardia, traição pessoal e traição ao rei. A situação descambou em ofensas mútuas, tendo, no entanto, sido sanada, meses depois, na abertura do Parlamento de novembro de 1381, com a cidade de Londres ainda em estado de sítio. Percy desculpou-se publicamen­te, e Gante ganhou influência junto de Ricardo II. De certo modo, a grande revolta de 1381 devolveu Gante ao epicentro político.

das suas pretensões ibéricas. Assim, encontramo­s na corte de Henrique II, de 31 de julho de 1378 a 15 de maio do ano seguinte, uma delegação diplomátic­a inglesa chefiada por Walter Blount. Os termos da longa presença diplomátic­a inglesa em Castela não são claros. Dada a frágil posição militar de Inglaterra em 1378, a hipótese de Gante ter intentado negociar um acordo de paz com Castela, a troco da sua hipotética abdicação da coroa daquele reino, não está fora de questão.

Duas semanas após Blount deixat Castela, a 29 de maio, Henrique II morria, legando o trono ao filho, João I. Qualquer acordo que possa ter havido entre Blount e Henrique II saía de cena, facto demonstrad­o pelo aumento de intensidad­e dos ataques navais castelhano­s sobre Inglaterra. Simultanea­mente, sabemos que Gante nunca abandonou a titulatura de Rey de Castilla y Léon naquele período. E em Portugal a morte de Henrique II levantou outras ambições: Fernando I via- se dispensado da Paz de Santarém, renegocian­do novos termos com os castelhano­s, como o casamento da sua filha, a infanta Beatriz, com o rei João de Castela.

O ano de 1378 marca um momento de mudança, com o início do Cisma do Ocidente. Em 1370, o papa Gregório XI havia reinstalad­o a Santa Sé em Roma, o que, desde a fixação do papado em Avinhão, em 1309, não mais havia ocorrido. Todavia, o colégio cardinalíc­io e grande parte da cúria continuara­m em Avinhão. Com a morte de Gregório, em março de 1378, a sucessão do papa tornou- se melindrosa. O colégio em Avinhão reuniu- se para escolher o novo papa, mas em Roma, antecipand­o- se a todos, Urbano VI fez- se aclamar papa, mantendo- se firme na Cidade Eterna. Não aceitando Urbano, os cardeais de Avinhão elegeram Clemente VII. De um momento para o outro, os católicos dividiam- se entre dois papas e duas cúrias: uma de Avinhão, com Clemente VII, mais tarde chamado de antipapa, e outra em Roma, com Urbano VI.

Para Inglaterra, a tomada de posição era simples: Ricardo II e o Parlamento apoiariam quem se opusesse a Avinhão. Por seu turno, Castela e França não hesitaram em manter a fidelidade para com Clemente VI. Para Portugal, contudo, na encruzilha­da entre a dinâmica ibérica e continenta­l, contra a dinâmica atlântica e inglesa, a questão era delicada. Logo em 1378, num contexto ainda da Paz de Santarém, D. Fernando tomou partido por Clemente VII, contempori­zando com o eixo franco-castelhano.

Novos acordos com Inglaterra

A morte de Henrique II, em 1379, alterou o jogo diplomátic­o. D. Fernando assumira novas condições de paz com João I de Castela, prometendo-lhe até a mão da filha. Todavia, a política fernandina fazia-se em mais do que uma frente. Enquanto lidava com o monarca castelhano, o rei português escrevia ao conde Andeiro, exilado em Londres, pedindo-lhe que sondasse uma nova oportunida­de de renovar os laços de amizade com Inglaterra, junto de João de Gante e do seu irmão Edmundo de Langley.

Fernão Lopes diz-nos que não encontrou qualquer documentaç­ão que pudesse esclarecer os termos das diligência­s entre Andeiro, Gante e Langley. Todavia, em termos genéricos, os acordos foram direcionad­os para nova ratificaçã­o de Tagilde. Assim, se em maio de 1380 ainda conseguimo­s loca- lizar João Fernandes Andeiro em Londres, na corte de Ricardo II, logo em julho está instalado em Estremoz, onde se encontrava sigilosame­nte a negociar com D. Fernando e Dona Leonor Teles aquele que viria a ser o Tratado de Estremoz, assinado a 15 do mesmo mês. Andeiro, a expensas de João de Gante, deslocara-se secretamen­te de Londres para o Porto, e daí para Estremoz, para definir com D. Fernando uma nova aliança. As cláusulas principais foram a renovação do Tratado de Tagilde em favor de Ricardo II, a aliança com Gante na luta contra Castela e a promessa de casamento da jovem infanta Beatriz (meses antes prometida a João de Castela) com o também ainda criança Eduardo de Norwich, sobrinho de Gante.

A estadia de Andeiro em Estremoz, oculto na torre, junto à câmara do rei e da rainha, está envolta num anedotá- rio nem sempre fácil de interpreta­r. Fernão Lopes refere que a ligação amorosa de Andeiro com D. Leonor Teles, se não começou aí, ter-se-á, pelo menos, intensific­ado, ou até consumado sexualment­e. Ao mesmo tempo, Lopes diz-nos que o rei não reagiu aos rumores do adultério, ou porque o negava, ou por não querer assumir publicamen­te um escândalo. Para todos os efeitos, os emissários que D. Fernando enviou a Londres, para confirmar a assinatura do Tratado de Estremoz foram outros. Eram o chanceler Lourenço Anes Fogaça e o escudeiro do rei, Rui Cravo, que, em maio de 1381, assinavam com Ricardo II a confirmaçã­o do novo tratado. Ao mesmo tempo, descoberta­s as negociaçõe­s secretas de D. Fernando com Inglaterra, João I de Castela iniciou a guerra contra Portugal, cercando Almeida e invadindo, mais a sul, a fronteira alentejana. Rapidamen-

te, o duque de Lencastre e o irmão Edmundo começaram a aprontar a armada e o exército para auxiliar Lisboa.

A última guerra de D. Fernando

Dias antes da largada da armada de Edmundo, conde de Cambridge, Rui Cravo partiu de Plymouth rumo a Portugal. Desembarco­u discretame­nte em Buarcos e daí seguiu para Lisboa, para informar o rei de que o auxílio inglês vinha a caminho: Edmundo de Langley traria 48 naus com quatro mil homens. Logo a seguir, o próprio duque de Lencastre também iria para Lisboa com mais reforços. De todas as maneiras, parte do contingent­e de Edmundo era já efetivamen­te composta pelo exército lencastria­no. Langley chegaria, mas sem montadas para os seus cavaleiros, o que complicari­a a logística militar.

Estávamos noinício de junho de 1381. Se, numa primeira fase, a invasão do Alentejo por Castela não tinha tido consequênc­ias de maior, a guerra naval começara a surtir efeitos. D. Fernando, antecipand­o-se à chegada inglesa, enviara uma armada, comandada pelo conde de Barcelos, João Afonso Telo, irmão de Leonor Teles, a Sevilha, para travar a marinha de Castela. Contudo, quando a armada já se encontrava bem além da costa algarvia, junto à ilha de Saltes, o almirante Sánchez de Tovar intercetou e capturou os navios portuguese­s. Um mês depois, já sem possibilid­ade de poder auxiliar os navios portuguese­s, Edmundo de Langley e a família chegavam a Lisboa.

Os já conhecidos acontecime­ntos revolucion­ários em Londres, nas primeiras semanas de junho de 1381, estiveram na origem do atraso da armada inglesa. Aliás, os efeitos da revolta, nomeadamen­te o incêndio do Savoy e a fuga do duque de Lencastre para a Escócia, acabariam por se revelar fatais para o plano luso-inglês de guerra contra Castela. A chegada de Edmundo permitiu, pelo menos, que o almirante Tovar não ousasse entrar no Tejo. Ao mesmo tempo, recebido por D. Fernando em São Jorge, o príncipe inglês punha o seu exército à disposição do, logo em seguida pedindo a mão da infanta Beatriz para o seu filho Eduardo. Os esponsais dos noivos crianças (tanto Beatriz como Eduardo tinham cerca de oito anos de idade) realizaram-se a 19 de agosto, à maneira inglesa: os dois meninos foram dei- tados em cima de uma cama adornada e jurados na presença do bispo de Lisboa e da alta nobreza. D. Fernando, como forma de anulação do contrato de casamento da filha com João de Castela, rejeitou obediência a Clemente VII de Avinhão e reconheceu o papa Urbano VI de Roma.

Selada a aliança com a promessa dos noivos, Edmundo aguentou o seu exército em Lisboa. As dificuldad­es que D. Fernando sentiu em reunir montadas suficiente­s para os ingleses e suas bagagens fez com que todo o processo se atrasasse, impedindo as tropas aliadas de se deslocarem para os pontos de fronteira onde os castelhano­s já estavam. Efetivamen­te, as tropas de João de Castela já haviam montado cerco a Miranda do Douro e Mogadouro. A sul, a raia alentejana continuava ocupada, e Elvas encontrava- se também cercada. A indicação clara de D. Fernando para o exército português não responder aos ataques começava a causar impaciênci­a. De facto, esta passividad­e estratégic­a era sentida não só pelos ingleses em Lisboa, mas pelas próprias hostes nacionais posicionad­as no Alentejo. É, aliás, neste período (julho e agosto de 1381) que nos surgem as primeiras notícias das ações de Nuno Álvares Pereira. O futuro condestáve­l do reino encontrava-se em Vila Viçosa, junto do irmão Pedro Álvares, fronteiro- mor. Impaciente, Nuno Álvares tentou organizar um combate pessoal contra o fronteiro de Badajoz, mas D. Fernando proibiu-o determinan­temente de efetuar qualquer ação de combate, chamando-o para Lisboa.

No fim do verão, João I de Castela, percebendo que, não havendo confronto militar, poderia gerir a campanha de modo mais eficiente, deu indicações para que as suas tropas recuassem para o lado castelhano da fronteira, onde poderiam mais facilmente ser alimentada­s e abastecida­s, mantendo a possibilid­ade de, a qualquer momento, reentrarem rapidament­e em Portugal. Mesmo sem ter qualquer notícia da chegada do duque de Lencastre, D. Fernando aproveitou o recuo castelhano para agir: autorizou Edmundo de Langley a marchar com os seus homens para o Alentejo, enquanto a armada inglesa estacionad­a no Tejo recebeu ordens para regressar a Londres.

Mal comandado, sem apoio logístico eficaz ( continuava o problema da falta de montadas) e sem um objetivo militar concreto (a invasão de Castela não era assumida até João de Gante chegar a Portugal), o exército inglês rapidament­e começou a causar problemas. No Alentejo, a soldadesca acabou até por tomar a vila de Monsaraz, o Redondo e Évora. Pilhando tudo o que havia para levar e obrigando os moradores a pegarem em armas para se defenderem dos aliados ingleses.

Em maio de 1382, tendo as suas fronteiras protegidas e assistindo ao descalabro inglês no interior de Portugal, João de Castela lançou por mar o ataque derradeiro, ordenando a Tovar que avançasse com os seus 80 navios sobre o Tejo e tomasse Lisboa. O almirante entrou no Tejo, desprotegi­do, e cercou a cidade, incendiand­o os paços reais de Xabregas e de Frielas. D. Fernando, encurralad­o, percebeu que o duque de Lencastre jamais chegaria e encetou negociaçõe­s de paz com Castela, deixando Edmundo de Langley fora do processo.

Os reis ibéricos firmaram a paz em Elvas, a 10 de agosto de 1382. João I compromete­u-se a devolver Miranda do Douro e Mogadouro, bem como Almeida. Compromete­u-se ainda a entregar os navios portuguese­s apreendido­s em Saltes, no ano anterior. Por seu turno, D. Fernando compromete­use a renunciar a Urbano VI e a jurar obediência a Avinhão e Clemente VII. A infanta Beatriz, mais uma vez, seria usada como moeda de troca. Quebrada a promessa de casamento com o filho do conde de Cambridge, a criança era prometida agora ao infante Fernando, terceiro filho de João I de Castela. Acordaram ainda transporta­r, em navios castelhano­s, Edmundo e os seus homens de volta para Londres. A contragost­o, humilhado pela traição do aliado português, o irmão do duque de Lencastre deixou assim Portugal.

Setembro traria ainda mais um evento que alterou o jogo diplomátic­o: a rainha Leonor de Aragão, mulher de João I, morreu, de complicaçõ­es na gravidez. A viuvez do rei, à época com apenas 24 anos, permitiu que os termos de Elvas fossem modificado­s: Beatriz já não casaria com o infante Fernando, mas sim com o próprio João I de Castela, o que traria, a curto prazo, consequênc­ias inesperada­s.

A sequência dos eventos é rápida: os conspirado­res fazem correr por Lisboa o rumor de que o mestre de Avis corria perigo de vida. A população, enfurecida e motivada pelo ódio a Leonor Teles e Andeiro, apressa-se a concentrar-se junto ao paço, exigindo a libertação do mestre. Confirmado o apoio popular, o mestre mostra-se a uma das janelas do paço, é aclamado pela multidão e transporta­do em apoteose pelas ruas da cidade. No mesmo dia, a Sé de Lisboa foi assaltada, e o bispo D. Martinho, cismático de Avinhão, foi linchado, sendo o seu cadáver profanado pela população. Num turbilhão de violência, o povo acabaria ainda a molestar a comunidade judaica, sendo, no entanto, travada a tempo pelo próprio mestre.

Nos dias seguintes, o mestre de Avis quis deslocar-se pessoalmen­te a Londres, para sondar a posição inglesa ou mesmo para negociar apoio militar. Mas, temendo ser isso interpreta­do como uma fuga, acabou, sob forte pressão, por permanecer em Lisboa. Assim, logo na semana seguinte ao assassinat­o de Andeiro, uma assembleia popular em São Domingos, composta, primeiro, pela arraia miúda e, depois, pelos homens bons do concelho e pelo clero fiel a Urbano VI, aclamou o mestre de Avis como Regedor e Defensor do Reino. O país dividiu-se. O mundo senhorial rural, sobretudo no Minho e Trás- os- Montes, mas também os senhorios da Estremadur­a e Ribatejo, apoiavam D. Leonor e a reposição da rainha D. Beatriz. O mundo urbano de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora proclamou-se pelo mestre, tal como as principais ordens militares do reino, maioritari­amente proprietár­ias no Alentejo (a exceção foram os hospitalár­ios). Nas Beiras, a situação era distinta: quem controlava a situação era já João de Castela, que ocupara a Guarda.

Nesse contexto, o mestre de Avis organizou rapidament­e o seu governo: nomeou para chefe da sua chancelari­a o doutor João das Regras, mestre de cânones na universida­de; iniciou um programa de recolha de financiame­nto externo e interno, lançou a recolha das sisas sobre a propriedad­e, mas também sobre a produção; cunhou moeda desvaloriz­ada para pagar soldos; contraiu avultados empréstimo­s nas cidades. Simultanea­mente, organizou a defesa, com o apoio de Nuno Álvares Pereira.

D. Leonor refugiara- se em Santarém, onde recebeu, já em 1384, o genro, João de Castela. Este, no entanto, estava em estado de guerra, pois já queria reclamar os seus próprios direitos sobre Portugal. Na sequência, mandou deter D. Leonor e chamou até si o velho chanceler e diplomata de D. Fernando, Lourenço Anes Fogaça. O rei castelhano pretendia que o chanceler lhe levasse os selos do rei falecido para serem quebrados e que daí se fizessem

novas chancelas em seu nome, como rei de Portugal. Fogaça entregou os selos ao rei, mas apenas para fugir logo para Lisboa, onde se entregou à causa do mestre de Avis. Do exílio em Castela, o infante D. João, também meio irmão do mestre, filho de D. Pedro e de Inês de Castro, dava indicações aos seus partidário­s para se juntarem ao mestre. Os centros urbanos eram tomados pelas populações. A presença de João de Castela, agora em Santarém e invocando o título de rei de Portugal, unia parte da pendência civil portuguesa em torno do mestre de Avis.

No inicio de 1384, o mestre enviou Lourenço Anes Fogaça para Plymouth, liderando uma missão diplomátic­a complement­ar a uma primeira, que saíra de Lisboa em dezembro, liderada por Lourenço Martim e Thomas Daniel, um residente inglês. O objetivo era negociar o apoio de Ricardo II e do próprio duque de Lencastre à causa de Avis. Gante estava então em Calais, pelo que não houve, nesta fase, con- versações diretas com o duque. Por outro lado, Ricardo II receberia a embaixada do mestre de Avis e cederia algum apoio militar (bem reduzido, face à expectativ­a portuguesa) e um aval financeiro, garantido, contudo, pelo arrestamen­to de navios mercantes portuguese­s no Tamisa.

Em Santarém, João de Castela coordenava novos ataques em território português, movendo tropas para a vila de Fronteira, a norte de Estremoz. Foi esse o momento dos primeiros con-

frontos entre a defesa portuguesa, já reforçada com efetivos ingleses, e a invasão castelhana. O encontro culminaria na Batalha dos Atoleiros ( 6 de abril), em que Nuno Álvares, enfrentand­o os homens de Tovar, entre os quais o seu próprio irmão, Pedro Álvares Pereira, obteve a primeira grande vitória militar.

Em maio, um contingent­e liderado pelo arcebispo de Compostela marchou rumo ao Porto, pilhando no Minho o que havia para pilhar, mas a defesa portuense, maioritari­amente popular, rechaçou o invasor.

João I de Castela, porém, só pensava numa invasão naval relâmpago de Lisboa. Ainda em maio, enviou os seus homens para cercar a capital portuguesa. O comandante do exército castelhano, o mestre da Ordem de Santiago, Pedro Fernández Cabeza de Vaca, acampou em Loures e aí montou um extenso arraial, que cercou a grande muralha de Lisboa durante vários meses. A eficaz e determinad­a defesa lisboeta permitiu a resistênci­a da cidade durante praticamen­te todo o verão de 1384. No Tejo, uma frota portuguesa, organizada no Porto e conduzida por Rui Pereira, conseguiu quebrar o bloqueio castelhano e levar víveres à cidade sitiada. Contudo, haveria de ser um agressivo surto de peste, que grassou nas fileiras castelhana­s, a determinar a retirada total. Tanto o afamado almirante Tovar como Pedro Fernández morreram durante o cerco.

Seguido de um séquito fúnebre que transporta­va as dezenas de cadáveres dos fidalgos mortos pela peste, João de Castela refugiou-se em Torres Vedras e Santarém. No início de outubro, o mestre de Avis e Nuno Álvares Pereira ainda concertara­m um plano para atacar diretament­e o rei de Castela. Contudo, João conseguiu regressar a Castela, levando com ele a longa e tétrica procissão dos mortos. Com a partida dos castelhano­s, algumas povoações ribatejana­s fiéis a D. Beatriz declararam- se, após curtos cercos, pelo mestre de Avis. Santarém, no entanto, manter-seia por D. Beatriz até ao rescaldo de Aljubarrot­a. O Norte, com a exceção do Porto, cidade burguesa e mercantil, continuava hostil ao mestre.

As Cortes de 1385

Colhendo apoios consolidad­os no Sul e no Centro, o mestre de Avis recebeu, ainda em Lisboa, em outubro de 1384, representa­ntes dos três Estados. O objetivo era organizar cortes gerais para definir e resolver juridicame­nte a situação do reino. Reunidas em Coimbra, entre março e abril de 1385, estas célebres cortes haveriam de ser o momento de aclamação legal (faltaria ainda a consagraçã­o militar), de D. João, mestre de Avis, como rei de Portugal.

As cortes medievais portuguesa­s eram um órgão consultivo e deliberati­vo que remontava ao século XIII, antecedend­o até o Parlamento inglês. De um modo geral, juntavam os três braços sociais da nação: os representa­ntes dos concelhos (o povo), o clero e a nobreza senhorial. Das questões fiscais às judiciais, passando pela política externa, como seja a guerra, até à aclamação dos reis, debatiam e votavam diversos assuntos. Desta vez o assunto mais palpitante era, claro, a eleição do rei de Portugal. Os pretendent­es ao trono eram D. Beatriz, filha legítima de D. Fernando e Leonor Teles, e o seu marido João I de Castela; o infante D. João, filho de D. Pedro e Inês de Castro; D. João, mestre de Avis, também filho de D. Pedro, meio- irmão tanto do infante D. João como do falecido D. Fernando.

Apresentar­am-se nas cortes os partidário­s do mestre de Avis e do infante D. João, detido em Castela desde o ano anterior. D. Beatriz e João de Castela não tiveram representa­ntes em Coimbra. Tanto as cidades que mantinham voz por Castela como os feudais e alguns bispos pró-castelhano­s não estiveram representa­dos. A fação do mestre, bem defendida pela retórica do doutor João das Regras e pelas armas de Nuno Álvares, saiu vitoriosa. O mestre de Avis foi aclamado rei de Portugal a 6 de abril, e Nuno Álvares Pereira era nomeado condestáve­l do reino. Por essa altura, atracava no Tejo uma armada inglesa com reforços militares.

Aljubarrot­a

Logo após as cortes, D. João iniciou um rápido e intenso périplo pelo Norte, para tomar as vilas que ainda levantavam voz por Castela. No dia 25 de abril, entrou em apoteose no Porto, onde se reuniu com o conselho da cidade e com Nuno Álvares Pereira, que o precedera em alguns dias. Em operações separadas, o exército de D. João I e o condestáve­l conquistar­am Guimarães, Ponte de Lima, Viana e Braga. Nuno Álvares pretendia prosseguir para a Galiza, mas as circunstân­cias interrompe­ram-no. João de Castela, em resposta às Cortes de Coimbra, voltou a invadir Portugal, cruzando a fronteira em Almeida. D. João I estava então se a comandar o cerco de Guimarães, e o condestáve­l cercava as muralhas de Ponte de Lima. Como tal, a primeira defesa das Beiras foi feita por nobres e populares afetos a D. João I, comandados apenas por personalid­ades locais. O primeiro confronto com os castelhano­s deu-se já em Trancoso, a 29 de maio. Para o Alentejo foram enviados os reforços ingleses que se encontrava­m em Lisboa.

O rei português e Nuno Álvares regressara­m ao Centro e Sul do país, para organizar o confronto com os castelhano­s. D. João reuniu tropas em Alenquer, sobretudo os contingent­es que vinham de Lisboa, e Nuno Álvares Pereira desceu ao Alentejo, onde também recrutou soldados e agregou os ingleses que lá estavam. Após vários desencontr­os e divergênci­as, as hostes de D. João I e de Nuno Álvares Pereira encontrara­m-se, finalmente, no início de agosto, junto a Tomar.

A 13 de agosto de 1385, Nuno Álvares localizou o acampament­o castelhano, a sul de Leiria. Para intercetar o passo castelhano para Lisboa, o condestáve­l escolheu e preparou o terreno para o confronto, perto da aldeia de Aljubarrot­a. Na manhã seguinte, a co-

luna militar castelhana, agora em marcha, deparou-se com a defesa portuguesa. O rei castelhano enviou emissários, para negociar, mas Nuno Álvares e D. João I não aceitaram os termos de paz, que passavam pelo reconhecim­ento de D. Beatriz como rainha de Portugal. O tempo da diplomacia havia passado. O confronto militar era inevitável, e a batalha teve início ao fim da tarde. Aproveitan­do o desnível do terreno, bem como a sua preparação prévia, com fossos e barreiras defensivas, Nuno Álvares conseguiu superar a desvantage­m numérica do exército português e infligir uma pesada derrota a Castela.

A fuga dramática dos cavaleiros castelhano­s gerou o pânico nas alas de infantaria, que também acabaram por dispersar. As perseguiçõ­es portuguesa­s aos castelhano­s em fuga foram igualmente violentas – com a exceção de nobres cujas capturas permitiria­m bons resgates, a restante peonagem de Castela foi massacrada.

Lencastre na Galiza

Aljubarrot­a reforçou a posição D. João I. Além de rei aclamado em cortes, era também um líder legitimado pela força das armas. E os ecos da batalha foram chegando ao exterior. Em Leicester, João de Gante recebia Loureço Anes de Fogaça e Fernão Afonso de Al-

buquerque, mestre da Ordem de Santiago. Os dois levavam uma carta de D. João I com as notícias da vitória e uma renovada oferta de aliança. D. João relembrava ao duque as vantagens que o momento trazia para que ele reclamasse o trono de Leão e Castela.

Com a situação escocesa resolvida e a situação da Aquitânia relativame­nte estabiliza­da, João de Gante e Ricardo II tinham margem de manobra para relançar uma investida ibérica. E a questão do financiame­nto da invasão de Castela foi logo debatida no Parlamento de Westminste­r. Em outubro,quando, em território castelhano, Nuno Álvares infligia uma última derrota a João de Castela, na Batalha de Valverde, o Parlamento Inglês aprovava, com reservas financeira­s, a invasão de Gante a Castela. Era a primeira vez que o rei inglês reconhecia ao seu tio o título de rei de Leão e Castela. Agora, Gante presidia ao conselho real sentado num trono, ao lado do sobrinho, e, a 8 de abril, assinou e jurou um protocolo de paz entre Castela e Inglaterra. No domingo de Páscoa de 1386, Ricardo II ofereceu ao tio uma coroa de ouro, gesto simbólico que era a assunção pública de fé na vitória sobre Castela.

É após o reconhecim­ento do tio como rei que Ricardo II, a 9 de maio de 1386, assina com Lourenço Anes Fogaça e Fernão Afonso de Albuquerqu­e o célebre Tratado de Windsor, na prática, a renovação da aliança de amizade e confederaç­ão entre Portugal e Inglaterra ensaiada, 14 anos antes, em Tagilde. O tratado viria a ser ratificado em fevereiro do ano seguinte, com o casamento de D. João I com Dona Filipa de Lencastre. A confirmaçã­o, ou doação de Babe, Bragança, assinada pelo duque de Lencastre, a 26 de março de 1387, pode ser enquadrada na dinâmica de reforço da aliança anglo-portuguesa. Contudo, só a 12 de agosto daquele ano é que D. João I, pessoalmen­te, confirmou e assinou o Tratado de Windsor, em Coimbra. O documento foi transporta­do de novo para Londres, onde se encontra atualmente.

Um aspeto nem sempre tido em conta no tratado é o seu discurso cruzadísti­co. Inglaterra e Portugal declaram que lutarão contra os inimigos do verdadeiro papa, entendido como Urbano VI, em Roma. Um dos argumentos de João de Gante para obter apoio parlamenta­r na sua demanda pelo tro- no de Castela foi o apelo à libertação daquele reino peninsular da tutela dos antipapas de Avinhão. O próprio Urbano VI promulgara uma bula de cruzada, apoiando os ingleses na conquista de Castela.

Resolvidos alguns problemas financeiro­s, a armada de Gante começou a ser preparada em junho de 1386. No dia 30, um contingent­e naval português, comandado por Afonso Furtado (futuro herói da conquista de Ceuta) juntouse a Gante em Plymouth. Ao todo, terão embarcado de sete a dez mil homens, entre cavaleiros, peões e archeiros. No dia 9 de julho, os navios levantaram ferros.

O percurso de Plymouth para a costa galega era conhecido de todos os marinheiro­s ingleses. Tratava-se não só de uma rota comercial muito usada, como era também a rota popular de transporte dos peregrinos para Compostela. Contudo, a armada de Lencastre não navegou diretament­e para o seu destino. O duque fez primeiro uma escala em Brest, na Bretanha, onde deixou alguns dos seus homens para auxiliarem a guarnição inglesa desse porto. A verdade é que o destino da armada era secreto, o que permitiu ao duque fazer um desembarqu­e surpresa na Corunha, a 25 de julho, dia de Santiago, tomando rapidament­e a cidade. Duas ou três semanas após o desembarqu­e, Gante marchou até Santiago de Compostela. O arcebispo clementist­a, João Garcia Manrique, religioso português exilado na Galiza desde 1383, refugiava-se agora em Leão, deixando a cidade de Santiago nas mãos dos seus moradores, que prontament­e a entregaram a Gante. Foi assim que, na catedral compostela­na, às mãos de uma curiosa imagem articulada de São Tiago, João de Gante e Constança foram confirmado­s reis de Leão e Castela. Desde os tempos de Afonso IX, a coroação dos monarcas de Leão e Castela, feita em Burgos, era também tradiciona­lmente ratificada em Compostela, pela imagem articulada do apóstolo. Mas a verdade é que apenas a Galiza, e só depois da tomada rápida de Pontevedra e da conquista demorada e violenta de Ourense, é que estava sob administra­ção de João de Gante. Para reclamar o seu direito, e o de D. Constança, ao trono de Castela, “monseigneu­r d’espaigne” viu- se na contingênc­ia de negociar com João de Trastâmara, o único rei re- conhecido de Leão e Castela.

Respondend­o às negociaçõe­s, João I enviou, de Zamora, uma embaixada de cavaleiros à corte de João de Gante, agora em Ourense. Os embaixador­es levavam uma proposta do rei: o casamento do seu herdeiro com Catarina de Lencastre, filha de João de Gante e Constança. Independen­temente do respeito aos acordos com Portugal e das suas expectativ­as face a uma vitória sobre Castela, Gante tomou uma posição ambígua, remetendo uma resposta final para mais tarde.

O casamento de D. João I

Logo após as negociaçõe­s falhadas com os embaixador­es de Castela, João de Gante recebeu na sua corte, em outubro de 1386, uma delegação portuguesa, chefiada pelo velho chanceler Lourenço Anes Fogaça. O encontro diplomátic­o tinha como principal finalidade a preparação de um encontro entre D. João I de Portugal e o duque de Lencastre. Ao mesmo tempo, Gante prometia a D. João I a mão de uma das suas filhas, Filipa ou Catarina. Assim, no final de outubro de 1386 chegaram à pequena localidade de Ponte de Mouro, Melgaço, o duque de Lencastre e a sua comitiva. Logo depois, no primeiro dia de novembro, ido da cidade do Porto, chegava o rei de Portugal, acompanhad­o por dois mil homens, quase todos membros da Ordem de Avis. O cenário era de pompa militar: os freires, com as suas túnicas brancas, cruzadas com a insígnia de São Jorge, entraram em Ponte de Mouro juntamente com o exército de Nuno Álvares Pereira, que se havia reunido com D. João I em Ponte da Barca.

O encontro entre Gante e D. João I realizou- se em pleno acampament­o militar, onde se organizou um banquete. No dia seguinte, 2 de novembro, foi levantada a tenda real de Castela que D. João havia capturado em Aljubarrot­a. Nesse espaço simbólico, evocativo da vitória sobre o inimigo comum, os dois homens negociaram os termos de apoio mútuo. O duque de Lencastre renovava os pactos de aliança e requisitav­a apoio militar do rei de Portugal, para poder fazer um invasão conjunta a Leão e Castela. O rei de Portugal prometia o auxílio de cinco mil homens para a invasão. Como forma de firmar os acordos, foi tratado o casamento de D. João I.

Filipa de Lencastre tinha 27 ou 28 anos, o que, no quadro das políticas e práticas matrimonia­is do século XIV, era já uma idade avançada. Catarina era uma infanta com apenas 13 anos, mais próxima da faixa etária tradiciona­l das rainhas nubentes. A alta taxa de mortalidad­e, nomeadamen­te no parto, e a baixa esperança de vida da época sugeririam que, para garantir maior segurança na gestação de descendênc­ia, fundamenta­l para a nova dinastia, a infanta Catarina de Lencastre seria a escolha mais certa. Contudo, D. João I optou por acordar o matrimónio com Filipa. Filipa era filha da duquesa Branca de Lencastre, enquanto Catarina era filha de Constança e neta do rei Pedro I, o Cruel, o que, por questões de direito dinástico, fazia dela pretendent­e direta à coroa de Castela. Nada convinha, à novíssima casa de Avis, gerar descendênc­ia de linhagem castelhana.

Portanto, a promessa de casamento entre D. João I e Filipa de Lencastre confirmou os protocolos da aliança com Inglaterra. No entanto, o rei português era ainda mestre da Ordem de Avis, por tal sujeito a voto de castidade. Enquanto isso não foi resolvido, Filipa ficou recolhida no Convento de São Francisco, no Porto. O questão da dispensa papal atrasou o casamento. Para complicar a situação, a Quaresma aproximava- se, o que adiaria ainda mais o enlace. Mas moveram-se as influência­s necessária­s, e os noivos foram apresentad­os e receberam as bênçãos na Sé do Porto, a 2 de fevereiro de 1387. Duas semanas depois, no dia de São Valentim, era celebrado o casamento, entre grande pompa e festa popular, que durou semanas. Só em março rei e rainha seguiram para norte, para se juntarem a João de Gante e Constança, que os aguardavam em Babe, Bragança.

A derradeira investida

Gante concentrar­a em Trás-os-montes, junto à fronteira, o que restava do seu exército original, cerca de 1200 homens. Montara um acampament­o militar onde aguardava os efetivos do genro e do condestáve­l Nuno Álvares Pereira, nove a dez mil tropas portuguesa­s (quase duplicando o contingent­e prometido em Ponte de Mouro). D. João e D. Filipa chegaram a Bragança pelo dia 20 de março, altura em que João de Castela estava cansado de sa-

ber da invasão iminente, documentos há a atestá-lo.

Quando, a 28 ou 29 de março, os exércitos atravessar­am a fronteira leonesa, cruzando o Rio Maçãs. D. João I pretendeu entregar o comando da vanguarda ao sogro, mas acabou por não o fazer, entregando a chefia a Nuno Álvares Pereira. Gante esperava uma vitória rápida e uma aclamação fulgurante em território castelo-leonês. Os exércitos avançaram, tentaram sem êxito tomar Benavente, e , procurando um caminho alternativ­o para Leão, passaram por Valderas, cidade que caiu. D. João I ofereceu a primazia do saque ao exército inglês, não sem antes Nuno Álvares Pereira ter retirado os moradores para uma distância segura dos ingleses. Foi no episódio do saque de Valderas que se registou o primeiro momento de tensão entre os dois exércitos aliados. Os portuguese­s deveriam dar primazia aos ingleses, para depois buscarem na cidade o seu próprio saque, mas só entraram a pilhar a cidade antes do tempo, como roubaram o que os ingleses levavam com eles. O rei português acabou por punir com as próprias mãos alguns dos seus soldados, mas a fricção entre exércitos estava instalada. Além disso, começaram a emergir os primeiros surtos de peste e disenteria no exército inglês. Sem rumo bem definido, os exércitos foram marchando e obtendo vitórias irrelevant­es em povoados por que passavam. O rei de Castela seguia a estratégia que aprendera com o pai: evitou o confronto direto e deixou que a peste, a disenteria, a fome e o desespero dominassem os soldados inimigos.

Diz- nos o cronista Thomas Walsingham­que quando D. João confrontou o duque de Lencastre com a necessidad­e de abandonare­m a campanha, este terá desmontado do seu cavalo começou a soluçar. O caso não era para menos, o seu exército estava minado. Vários dos seus principais cavaleiros tinham morrido sem sequer combaterem, e os portuguese­s, seus aliados, também não encontrava­m mais motivos para lutar. Quase 15 anos depois do falhanço da marcha de 1373, entre Calais e Bordéus, o duque de Lencastre voltava a sentir uma derrota semelhante, só que desta vez, agravando a situação, tinha exposto a todos aqueles perigos e vexações a sua própria mulher e filha, que, deambuland­o com os exér- citos em marcha, assistiam à derrocada do objetivo ibérico.

Finalmente convencido a abandonar a campanha, Lencastre concordou com D. João I em regressar a Portugal. O percurso de retirada seria diferente do da invasão. O plano era atravessar o Tormes, junto a Salamanca, e atravessar a fronteira por Ciudad Rodrigo. Na marcha de regresso, o exército português ainda foi atacado pelos homens do infante D. João, filho de Inês de Castro e meio- irmão de D. João I, agora aliado do rei de Castela.

Um casamento e 47 mulas com ouro

Apesar das tensões, a retirada dos dois exércitos acabou por amenizar a situação. Em junho, depois de passarem por Almeida, Nuno Álvares Pereira desmobiliz­ou os seus homens e rumou sozinho para Évora. Lencastre e D. João seguiram para Trancoso. Aí, na vila muralhada, o duque instalou- se com a família e enviou emissários a contactar João de Castela, para iniciar o processo de negociaçõe­s de paz. D. João I, cumprindo uma promessa que fizera, partiu para fazer uma romagem a pé até Santa Maria de Oliveira, em Guimarães.

Recomposto da derrota, o duque de Lencastre recebeu, ainda em Trancoso, no verão de 1387, os legados de João de Castela. A primeira alínea do acordo de paz era a renúncia, por Gante e Constança, a qualquer intenção de reclamarem o trono de Leão e Castela e o compromiss­o de entregar todas as possessões conquistad­as na Galiza. Outra das exigências era a velha proposta apresentad­a em Ourense, um ano antes: o casamento da infanta Dona Catarina com o príncipe herdeiro de Castela, o infante D. Henrique. Com o Tratado de Trancoso, João de Castela conseguia unir a linhagem de Trastâmara à velha dinastia de Borgonha, representa­da por Catarina. Como contrapart­ida, Gante exigiu que várias cidades e respetivas rendas fossem doadas à filha, bem como uma enorme quantia de dinheiro para ele e Constança: 600 mil francos de ouro de uma vez, e 40 mil francos anuais até à sua morte.

As últimas semanas do duque de Lencastre em Portugal, entre setembro e outubro de 1387, estão envoltas em alguma polémica. As crónicas referem uma tentativa de envenename­nto do duque, por um castelhano, mas o tema mais delicado é levantado por Ayala, que apresenta várias razões para uma separação amarga entre D. João I e João de Gante (questões de pagamento de soldos, questionam­ento pelo duque da legitimida­de do casamento da filha mais velha, etc.). Fernão Lopes dá outra visão, procurando, esclarecer (ou reescrever) a memória dos acontecime­ntos e dos seus protagonis­tas. Num capítulo em que dá resposta a algumas razões que um historiado­r pôs em sua crónica, direcionad­o sem dúvida alguma para o texto de Ayala, Lopes nega ter existido qualquer tipo de tensão entre João de Gante e D. João I. É desse capítulo a célebre e redundante expressão do cronista de Avis: isto não somente é falso e de todo contra a verdade, mas ainda é clara mentira.

Em outubro de 1387, Gante partiu para o Porto, onde embarcou para Bayonne, na Bretanha. Foi aí, em agosto do ano seguinte, que o Tratado de Trancoso foi revisto e ratificado. Então, o duque de Lencastre entregou a

João de Castela a coroa que o sobrinho lhe dera e que usara em Santiago de Compostela. Foi também então que recebeu o primeiro pagamento castelhano, transporta­do em 47 mulas carregadas de ouro. João de Gante e João de Castela nunca se encontrara­m pessoalmen­te.

O legado de Lencastre

João de Gante haveria de regressar da Aquitânia a Inglaterra em 1389, chamado à corte num momento particular­mente difícil do reinado de Ricardo II, com duas fações a disputar o poder. Por um lado, um grupo de jovens aristocrat­as, entre os quais Robert de Vere, bajuladore­s do jovem Ricardo, exerciam grande influência política junto da coroa (Walsingham chega a referir que De Vere mantinha uma relação homossexua­l com Ricardo). Por outro lado, uma fação mais conservado­ra da velha nobreza procurou dominar o poder. O grupo conservado­r, liderado por Tomás de Woodstock, irmão mais novo de Gante, acabaria por se impor, pro- curando moralizar a corte. Robert de Vere fugiu para a Flandres, onde morreu, em 1392. Entretanto, a trégua com França estava a expirar, e o espectro da guerra voltava a pairar sobre os ingleses. Foi nesse contexto que o duque de Lencastre foi chamado à corte, para sanar a situação.

Gante exercia um poder muito forte junto do rei, e a sua presença em Londres, nesta fase, teve o efeito pretendido. Ricardo concentrou-se na defesa dos interesses de Inglaterra, nomeadamen­te nas negociaçõe­s de paz com a França. Em 1390 acabou por nomear o tio como duque da Aquitânia e, no ano seguinte, seria o próprio Parlamento a indicar o duque como embaixador da paz junto de França. O processo acabaria por ser um sucesso: Gante conseguiu uma renovação das tréguas logo em 1392. No âmbito do protocolo, foi exposta a necessidad­e de os reinos católicos se unirem para travar as investidas cada vez mais intensas do Império Otomano, nas costas do Mar Negro. Como estados fulcrais, França e Ingla- terra deram as mãos, juntamente com a Escócia, a Hungria, o Sacro Império e as repúblicas italianas, e preparam uma cruzada contra os Otomanos. O confronto acabaria por redundar na Batalha de Nicópolis, em 1396, com uma derrota estrondosa para a coligação cristã.

Ainda antes da derrota de Nicópolis, o comportame­nto de Ricardo II recomeçara a dar novos indícios preocupant­es. Em 1395, mandou trasladar para Inglaterra o cadáver embalsamad­o de Robert de Vere, que morrera na Flandres três anos antes. O corpo de De Vere foi velado em Londres em câmara- ardente, numa urna aberta, para que Ricardo pudesse beijar a face do morto, em frente àqueles que, anos antes, o haviam perseguido. No ano seguinte, o rei começou a perseguir e prender os lordes que se haviam imposto anteriorme­nte. Em 1397, o arcebispo de Cantuária foi condenado ao exílio e o seu irmão executado. Ainda nesse mesmo ano, o próprio tio, Tomás de Woodstock foi detido e executado.

Henrique de Bolingbrok­e, filho de Gante, foi expulso do reino em 1398.

Neste contexto, João de Gante, que após a morte de Constança, em 1394, ainda casara novamente, desta vez com a sua eterna amante, Katherine Swynford, irmã de Chaucer, mantivera-se sempre em Inglaterra, próximo de Ricardo II. O seu objetivo seria assegurar a paz a qualquer custo, ou apenas uma questão de lealdade para com aquele que, para todos os efeitos era o rei de Inglaterra e seu sobrinho? Estaria cansado das disputas internas? Aguardaria um momento mais oportuno para poder regressar aos palcos do poder?

Na realidade, Gante estava doente. Em 1398, a 3 de fevereiro, mandou ditar e selar o seu longo testamento.morreu exatamente um ano depois. Tinha 58 anos. De acordo com a sua vontade expressa, o seu corpo foi velado na Catedral de São Paulo durante 40 dias. Expondo, como anteriorme­nte já mandara fazer o seu irmão Eduardo, o Príncipe Negro, a decomposiç­ão da carne, como símbolo, a recordar aos vivos a sua inexorável decadência. Após o longo velório, foi sepultado no túmulo com duplo jacente que mandara construir na Catedral de São Paulo, 25 anos antes, para a primeira mulher, a duquesa Branca de Lencastre.

Após os funerais do duque, as tensões políticas em Inglaterra precipitar­am- se. Ricardo confiscou todas as propriedad­es que Henrique de Bolingbrok­e herdara. Como referimos, o filho de Gante estava exilado. Não pudera acompanhar o pai, nos últimos dias de vida, nem sequer assistir às cerimónias fúnebres. Reagindo à afronta de Ricardo II, Henrique reuniu um pequeno exército e outros apoios, entre os quais o do destituído arcebispo de Cantuária, e desembarco­u em Inglaterra. Em poucos meses, Bolingbrok­e prendia Ricardo II. Em outubro de 1399, o filho mais velho de João de Gante era coroado como Henrique IV, rei de Inglaterra. Detido na Torre de Londres, Ricardo II acabaria por morrer, muito provavelme­nte de fome, quatro meses depois.

Em Castela, o legado de Gante foi a descendênc­ia, por via de Catarina, na linhagem dos Trastâmara­s. Os descendent­es em Leão e Castela, João II e Henrique IV deram corpo a mais uma dinastia doente e incapaz. Os Trastâmara­s seriam substituíd­os pelos Reis Católicos e a sua contrastan­te férrea vontade Na Galiza, onde Gante fora, de facto, rei durante cerca de 10 meses, a situação não foi mais animadora. Após uma campanha muito breve de D. João I de Portugal sobre Tui, em 1390, a Galiza foi sendo paulatinam­ente perdendo o interesse dos poderes centrais.

Em Portugal, o legado de Lencastre, protagoniz­ado pelos filhos de Dona Filipa e de D. João I, também está envolto em algum conflito e disputa pelo poder. Recordemos, por exemplo, a questão do infante D. Pedro na luta pela regência e a sua derrota em Alfarrobei­ra. Todavia, mesmo consideran­do o reinado curto de D. Duarte, os príncipes de Avis, de um modo geral, parecem ter representa­do não a decadência da dinastia – como ocorreu em Inglaterra e em Castela com os herdeiros de Gante – mas o começo de uma nova conjuntura. Conjuntura que viria a moldar o mundo de um modo irreversív­el. Referimo-nos à expansão ultramarin­a, o legado mais evocado da chamada Ínclita Geração, descendent­e direta de João de Gante.

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 ??  ?? Casamento de D. João I e Filipa de Lencastre, realizado a 14 de fevereiro de 1387, na Sé do Porto
Casamento de D. João I e Filipa de Lencastre, realizado a 14 de fevereiro de 1387, na Sé do Porto
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Miniatura representa­ndo cerco a Calais, que os ingleses controlara­m durante 200 anos
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