A primeira polémica política da Revolução de 1820
Texto de Vital Moreira (Universidade Lusíada – Norte / Universidade de Coimbra) e José Domingues (Universidade Lusíada – Norte)
Arevolução portuense de 24 de agosto de 1820 veio colocar a convocatória das Cortes portuguesas (que não se reuniam havia mais de um século) na ordem do dia da agenda política do país: “Imitando nossos maiores, convoquemos as Cortes e esperemos da sua sabedoria e firmeza as medidas que só podem salvar-nos da perdição e segurar nossa existência política”.
A revolução foi pacífica quanto a esse ponto, e ninguém ousou contraditar a exortação – “vivam as Cortes e a Constituição por elas!”. No entanto, uma grande controvérsia vai instalar-se imediatamente sobre o modo de levar a cabo esse objetivo, designadamente em torno de duas questões-chaves: (i) a da legitimidade dos revolucionários para convocar as Cortes e (ii) a da forma como devia ser efetuada a convocatória e consequente formação dessas Cortes.
A questão da competência para a convocação das Cortes
Em Lisboa, os Governadores do Reino em nome de D. João VI, que continuava no Brasil, apressaram- se a alegar que a Junta Provisional do Governo Su- premo do Porto, saída da revolução, não tinha legitimidade para convocar as Cortes, que “sempre seriam ilegais quando não fossem chamadas pelo soberano”. Considerando que eles próprios eram os “únicos depositários legítimos da autoridade régia, na ausência do nosso amado soberano”, resolveram, porém, cooptando a decisão dos revolucionários do Porto, “adotar, em seu real nome, a resolução de convocar as Cortes” como o “meio legal de atender às queixas e desejos da Nação”.
No dia 1 de setembro de 1820 mandaram imprimir ( em panfleto) uma Proclamação – da autoria do duque de Palmela –, dirigida aos portugueses, contra a “sublevação da cidade do Porto”, anunciando, em contrapartida, que “depois de ouvirem o parecer do grande número de pessoas do Conselho de sua Majestade e conspícuas entre as diversas classes da nação, resolveram, em nome de El-rei nosso senhor, convocar Cortes, nomeando imediatamente uma comissão destinada a proceder aos trabalhos necessários para a pronta reunião das mesmas Cortes”.
A primeira Comissão Preparatória das Cortes foi nomeada por portaria desse dia, 1 de setembro de 1820, e dela faziam parte: D. Frei Patrício da Silva (arcebispo de Évora), Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro (conde de Barbacena), Matias José Dias Azedo (tenente-general conselheiro de guerra), António José Guião ( desembargador) e Tomás da Silva Monteiro (desembargador). O conde de Barbacena alegou moléstias que o impediam de assumir tal compromisso; por isso, foi dispensado e para o seu lugar foi nomeado – pela portaria de 4 de setembro de 1820 – o Dr. Joaquim José Ferreira Gordo e para secretário foi nomeado o Dr. Manuel Borges Carneiro.
É provável que os governadores do Reino tenham enviado convocatórias aos concelhos que, por foral ou privilégio, tinham assento em Cortes até ao século XVII. Aos dias de hoje chegou (em panfleto impresso) a convocatória dirigida à Câmara da cidade de Lisboa, no dia 9 de setembro desse ano, para se elegerem “dois procuradores que tenham as qualidades e circunstâncias que para tal ato se requerem”, que deviam estar presentes à abertura das Cortes, no dia 15 de novembro de 1820, para deliberarem em conjunto com os procuradores das outras cidades e vilas.
Os governadores do reino comunicaram de imediato a sua iniciativa ao rei, D. João VI, que estava no Brasil. Mas o monarca considerou a resolução irregular, entendendo que a prerrogativa
de convocar as Cortes era inseparável da realeza e, por isso, só poderia ter emanado diretamente da sua própria e real decisão. No entanto, tendo em consideração a conjuntura que se vivia, a prosperidade da monarquia e a felicidade dos seus súbditos, o rei acabou por autorizar que as Cortes se reunissem nesses moldes, desde que as propostas que viessem a apresentar lhe fossem submetidas e ficassem dependentes da sua real sanção “conforme aos usos, costumes e leis fundamentais da monarquia”. Era uma clara tentativa de reafirmação do poder real e de neutralização da revolução de agosto no Porto.
É certo que, desde os recuados tem- pos medievais, o poder de convocar as Cortes pertencia tradicionalmente ao rei, mas devia ser interpretado mais como “obrigação tradicional” do que como “privilégio real”. Sem embargo, 1820 não foi o primeiro nem o único caso na história política portuguesa em que a convocatória das Cortes tinha sido alheia à vontade do monarca. Por exemplo, D. Afonso III foi coagido, contra a sua vontade, a reunir as Cortes de Coimbra em 1261; quando foi feita a convocação para se reunirem as Cortes de Coimbra de 1385, o Mestre de Avis era apenas governador do reino, vindo a ser aclamado rei nessas mesmas Cortes; a reunião das Cortes de Lisboa, em 1439, já vinha fixada previa- mente das Cortes do ano anterior, de Torres Novas, em 1438; as Cortes de Almeirim, em 1580, foram convocadas pelos governadores e defensores do reino; e as Cortes de Lisboa, em 1667, com certeza, não foram convocadas por vontade do monarca D. Afonso VI, que nelas viria a ser afastado do governo do reino.
De qualquer maneira, no dia em que D. João VI assina a suprarreferida carta régia – Palácio do Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1820 –, já a regência que tinha convocado as Cortes tradicionais tinha sido dissolvida (no dia 15 de setembro), sendo substituída por uma nova regência governativa em Lisboa, alinhada com a revolução. Além do
mais, exatamente um mês antes da missiva real, por portaria de 27 de setembro de 1820, os governos provisórios do Porto e de Lisboa uniram- se para formar duas novas juntas: a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino – encarregada da administração pública – e a Junta Provisional Preparatória das Cortes – encarregada de preparar a convocação e regular funcionamento das Cortes (cf. a composição das duas Juntas no primeiro artigo desta série, nº 11 desta revista). Esta última foi subdividida em duas secções, uma para tratar da convocação das Cortes e outra para tratar dos assuntos que nela se deviam discutir.
Borges Carneiro, na sua Reflexão de 13 de outubro de 1820 sobre as Cortes Extraordinárias, coloca a questão: “A Junta Provisional do Governo Supremo tem direito de convocar Cortes ou pertence ele exclusivamente a el-rei?”. A que responde: “Ninguém ignora ou deve ignorar que Portugal é uma Nação livre; que a ideia de um reino patrimonial é absurda, como contrária à natureza e fim das instituições sociais; que o nosso território, com os ilustres barões que o habitam, não é nem pode ser património de nenhuma casa ou pessoa; que a soberania reside essencialmente em a Nação; que a ela pertence, por consequência, o direito de estabelecer leis e de as fazer executar; direito que ela exercita pelos seus re- presentantes, ou seja um ou muitos. Portanto, a Junta Provisional, chamada a esta representação por consentimento e, nunca visto, aplauso da Nação portuguesa, a representa provisoriamente até que esta representação se verifique plenamente nas próximas Cortes”.
Assim triunfava definitivamente a vontade revolucionária de convocar as Cortes por sua iniciativa, à margem da vontade real.
A questão da forma de convocação e da formação das Cortes
Sanadas as divergências entre Porto e Lisboa, vai gerar-se inflamada controvérsia, no seio da Junta Preparatória
das Cortes, sobre a forma como deviam ser convocadas e formadas as Cortes, às quais seria confiada a missão de preparar e aprovar a prometida Constituição para o país.
Surgem, então, duas correntes profundamente divergentes quanto ao modo de se formar o magno Congresso: (i) Cortes à maneira tradicional portuguesa, instituída na Idade Média e seguida até à última convocatória em 1697, compostas pela representação separada dos três “estados” do reino – clero, nobreza e povo; ou (ii) Cortes à maneira de outros países constitucionais da Europa (e dos Estados Unidos da América), através de eleições gerais baseadas no sufrágio individual e sem separação por classes sociais, nomeadamente seguindo os preceitos constitucionais da vizinha Espanha (Constituição de Cádis de 1812). No final, como sabemos, haveria de ser esta última proposta a sair vencedora da liça, mas a decisão não foi consensual.
Perante este dilema de “determinar o melhor e o mais pronto modo de organizar a representação em Cortes”, tentando conciliar a “facilidade e economia de convocação com a legitimidade que só pode deduzir-se do consentimento da nação e da conveniente expressão da vontade geral”, a Junta Provisional Preparatória das Cortes determinou consultar diretamente as “corporações científicas” e os “homens conhecidos pelas suas profissões literárias”, mas acolhendo também, “com toda a cordialidade, quaisquer trabalhos que lhe forem dirigidos pelas pessoas a quem a sua modéstia impede de figurarem com ostentação científica”. Os trabalhos teriam de ser comunicados no prazo de 15 dias à secretaria da dita Junta. A determinação sobre esta inédita consulta pública, com data do dia 6 de outubro de 1820 e assinada pelo secretário, Filipe Ferreira de Araújo e Costa, foi publicada nos jornais da época e mandada imprimir em 300 panfletos avulsos.
No dia 7 de outubro, a Junta Preparatória das Cortes notificou desta determinação, por carta particular, a Universidade de Coimbra – na pessoa de D. Francisco Lemos de Faria Pereira Coutinho, bispo de Coimbra e reitor da Universidade – e a Academia Real das Ciências de Lisboa. Em simultâneo, foram enviadas cerca de 2200 circulares impressas a várias pessoas “de reputa- da literatura” e aos titulares, dignidades, ministros e empregados em postos eminentes. Infelizmente, esfumaram-se praticamente todos os pareceres emitidos, mormente os que se teriam pronunciado a favor da convocação das Cortes pelos cânones tradicionais, salvo o parecer de Joaquim José Ferreira Gordo e o parecer avalizado pela Academia Real das Ciências de Lisboa, sobre o qual nos chegou breve nota legada pelas Memórias do seu autor, Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato.
O núncio da Academia das Ciências de Lisboa defendeu uma convocação tradicional às Cortes, chamando-se a elas as três “ordens” ou “braços” do reino, com a seguinte distribuição: “o clero seria representado por todos os bispos e prelados com jurisdição ordinária, em numero de vinte e três (23); a nobreza, pelos procuradores escolhidos por todas as classes dela, em numero de trinta (30); e a do povo pelos procuradores de todas as cidades, vilas e concelhos, escolhidos pelas câmaras, que depois na cabeça de comarca nomeariam, conforme a povoação das mesmas comarcas, um número correspondente de representantes em Cortes que todos eles fizessem a soma de cento e cinquenta (150); vindo as Cortes a compor- se de duzentas (200) pessoas, as quais deviam votar por indivíduos e não por classes”.
Note-se que, apesar da defesa das Cortes com representação tripartida, o autor inova em relação ao modelo tradicional, ao propor uma maioria para o corpo do “povo” e o voto individual na assembleia (em vez do voto por corpos, como era tradicional), no que se revela clara influência do célebre manifesto do Abade Sieyés, “O que é o Terceiro Estado?”, de 1789, antes do início da Revolução Francesa.
Os jornais liberais de outubro de 1820 protestaram imediata e vigorosamente contra a forma tradicional de reunir as “velhas” Cortes e defenderam eleições livres e amplas, baseadas no sufrágio e no mandato individual e isentas de quaisquer privilégios de representação privativa da nobreza e do clero. Num noticiário daquele tempo podia ler-se que, “se os nossos predecessores reputavam nação só o ajuntamento de quatro padres, uns poucos de abades, outros tantos frades, alguns bispos e certo número de fidalgos, não nos convém isto hoje, porque queremos estados nacionais e não concílios. Queremos constituição onde apareça o voto do sapateiro a par do clérigo, do magistrado, do homem rico, do sábio e do ignorante. Porque todos estes são filhos da nação, são cidadãos”.
Nesse encadeamento, o Génio Constitucional de 14 de outubro de 1820 propunha: “Se vai formar-se um Congresso da Nação, é preciso que toda a Nação seja convocada para nele se reunir virtualmente, isto é, por meio de legítimos representantes, que sejam da escolha dos povos e eleitos por todos os cidadãos. Não sendo assim, não haverá representação nacional. A população das cidades, das vilas e dos campos deve formar uma massa geral. Nenhuma classe está fora da comunidade dos seus concidadãos. Nenhuma deve ter interesses diferentes do comum da Nação. Todo o cidadão português tem o mesmo direito na eleição dos seus deputados e só usando todos do seu direito se poderá obter a legitimidade da representação que se procura. Ao Governo pertence regular as juntas eleitorais, mas os povos devem insistir em que nenhum cidadão seja excluído delas ou, para nos servirmos da nossa linguagem pátria, que as eleições dos deputados sejam tiradas por capitação. Enquanto existir aquela antiga distinção de classes e de estados, a Nação não será legitimamente representada nas Cortes”.
Também chegaram até aos nossos dias, vertidos para letra de imprensa, alguns dos pareceres adeptos de uma representação política assente em eleições gerais. A começar pelo aditamento – com data de 13 de outubro – do Dr. Manuel Borges Carneiro ( que tinha sido nomeado para a 1.ª Comissão Preparatória das Cortes, em portaria de 4 de setembro de 1820) ao seu “Portugal Regenerado”, que carrega uma crítica mordaz contra a convocação tradicional seguida em Portugal até ao ano de 1697. Segue-se o parecer – datado de 24 de outubro – do punho de José Teotónio Canuto de Forjó, que se bate por “eleições com todas aquelas formalidades que judiciosamente adotou a Constituição de Espanha”. Seguindo a mesma cartilha, um parecer do dia seguinte – 25 de outubro –, da lavra de Francisco José de Almeida, defende uma “representação decorosa e legítima em Cortes, Cortes à espanhola, de que todo o mundo faz uma clara ideia, e não esse carcomido e exangue esqueleto sobrecarregado de vaidosos atavios, que nem assim cobre suas pulvirulentas ruínas há tão longos anos soterrado”.
A reunião do dia 25 de outubro do juiz do povo e Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa terá sido decisiva, sobretudo, porque contou com o apoio imediato do exército. Nessa sessão ficou decidido reivindicar que os membros das Cortes fossem escolhidos “indistintamente da massa geral da nação, seguindo- se para se obter este fim a mesma forma determinada na digna constituição espanhola (...) devendo ser desprezada toda a ideia de uma convocação de Cortes da maneira antigamente praticada, do que só resultaria a inutilidade das honrosas fadigas gloriosamente sofridas para se conseguir uma livre constituição, adaptada às puras ideias do tempo e às nossas necessidades”.
A Junta Provisional Preparatória das Cortes acabaria por aderir a esta proposta de realizar eleições gerais e sem representação de classes, mas ainda tentou uma solução eleitoral diferente da consagrada na Constituição de Cádis, através das Instruções eleitorais de 31 de outubro de 1820. Contestadas estas com o movimento da Martinhada (movimento militar do dia de S. Martinho, 11 de novembro), no dia 22 de novembro foram publicadas as novas Ins- truções eleitorais – que, na adaptação ao nosso país, tiveram por base o texto da referida Constituição espanhola de 1812 – para servirem de suporte legal às eleições que se viriam a realizar pacificamente entre os dias 10 e 30 de dezembro de 1820.
No entanto, ainda não foi desta vez que se calaram as vozes defensoras das Cortes portuguesas tradicionais, como se deduz de um texto da época:
“A nobreza do reino e os prelados, quando juraram obediência ao novo Governo, foi nos termos do mesmo juramento, devendo ele convocar as Cortes para organizarem a Constituição portuguesa. Ora, por Cortes entende-se a assembleia dos três estados, nem podia alguém entender outra coisa, porque nunca houve outras Cortes em Portugal. Porque motivo ou com que direito hão de agora os dois primeiros estados ser excluídos? O Terceiro Estado, só por si, não é as nossas Cortes, que se prometeram à nação. Chamem-lhe Diretório, Assembleia Constituinte ou o que quiserem, mas nunca as nossas Cortes. Se a Junta Preparatória assentou de fazer outro arranjo, El-rei pode não querer reconhecê-lo. O clero e a nobreza não juraram de estar por ele, nem resignaram à parte que lhes pertence ter na formação da Constituição e nas disposições nacionais e, portanto, o seu juramento não os pode obrigar em consciência, faltando o Governo às condições”.
A passagem da convocatória tradicional das Cortes, com mandato por corpos, para as eleições gerais, com mandato individual dos deputados, estava intimamente relacionada com a titularidade do poder de soberania e a consequente legitimidade do órgão representativo da comunidade política e com a noção de representação política. As cortes tradicionais eram incompatíveis com três princípios básicos que triunfaram no pensamento político vintista: a soberania nacional, a unidade da representação nacional e a igualdade política dos cidadãos, independentemente do nascimento e da classe social.
A transmissão popular do poder político é um ideal muito antigo, que terá sido escrito, pela primeira vez, por Manegold de Lautenbach ( Sécs. XI-XII). Em Portugal, as Cortes tinham sido o palco de transmissão do poder político para o rei em Lamego ( c. 1143), em Coimbra (1385) e em Lisboa (1641), por isso a sua legitimidade não podia depender estritamente da convocação feita pelo rei. Mas as Cortes – que tinham deixado de se reunir no final do século XVII – só em tempos de crise e vacância do trono assumiam a titularidade da soberania popular, que era delegada no monarca.
A separação do poder legislativo do poder executivo ( tão cara a John Locke), com o primeiro confiado a uma assembleia representativa, e o repúdio da tese do poder divino e absoluto do rei levaram os revolucionários de 1820 a colocar o exercício do poder de soberania nas mãos dos deputados eleitos. A Constituição de 1822 viria a consignar este princípio estruturante do novo sistema representativo da livre escolha do povo: “A soberania reside essencialmente em a Nação. Não pode, porém, ser exercitada senão pelos seus representantes legalmente eleitos” (art. 26.º). Esta é a pedra de toque, o legado icónico ao constitucionalismo hodierno português, que acabou por custar muito cara ao vintismo. Após a tentativa fracassada da Carta de Lei Fundamental de 1823, a Carta Constitucional de 1826 vai alterar profundamente este princípio, sobretudo através do exercício do poder constituinte pelo próprio rei e do sistema do bicamaralismo – que, ao lado da câmara baixa ou dos Deputados, cria uma câmara alta ou dos Pares, composta por representantes do clero e da nobreza – e do “poder moderador” privativo do rei.
Foi no dia 25 de março de 1882 que entrou em funcionamento, na verde e luxuriante elevação que abriga um dos mais emblemáticos santuários portugueses – o do Bom Jesus do Monte, em Braga -, aquele que é hoje o mais antigo elevador do seu género na Península Ibérica. Uma imensa multidão acompanhou a inauguração deste funicular, narrando a imprensa da época a “alegria indizível (…) de milhares de espectadores” e o ambiente de festa, com “três bandas de música, tocando todas ao mesmo tempo, repiques de sinos e repetidas girândolas de foguetes”. E esta mole humana não era constituída apenas por gente da região. Com efeito, para tornar possível a deslocação ao local dos muitos interessados, a “Direcção dos Caminhos de Ferro do Minho e Douro resolveu estabelecer para ali comboios extraordinários com bilhetes de ida e volta a preços reduzidos”. Não era caso para menos. A curiosidade era imensa e generalizada. Todos queriam constatar como seria possível, em apenas dois minutos, cumprir aquele íngreme percurso, ou seja, vencer um desnível de 116 metros num plano inclinado de somente 267 metros.
A expectativa que rodeara a construção deste equipamento alimentara, de resto, a curiosidade nacional durante os meses anteriores, dela podendo ser encontrados muitos e repetidos ecos na imprensa da época. Isto porque, se por um lado se tratava “de um melhoramento dos mais notáveis que se têm realizado neste país” (“O Comércio do Porto”, 3 de março de 1882, p. 1), por outro lado, do estrangeiro vinham chegando notícias preocupantes, dando conta de graves desastres ocorridos com máquinas deste tipo. A questão da segurança levara, aliás, o ministro das Obras Públicas a nomear uma comissão “que há-de examinar o caminho de ferro automotor do Bom Jesus do Monte a fim de reconhecer se está em circunstância de ser aberto à circulação pública” (“O Comércio do Porto”, 18 de março de 1882, p. 1). E, apesar de ter comprovado a segurança e qualidade de todo o sistema, a verdade é que esta comissão, composta por alguns dos mais destacados engenheiros responsáveis pela construção do caminho-de-ferro em Portugal, exigiu uma última e cabal prova: que o cabo que puxava o elevador fosse cortado em pleno andamento, por forma a testar o travão automático. E foi para provar a segurança do meca-
nismo que, convicto da eficácia do sistema, se salientaria um dos principais engenheiros envolvidos na construção da linha: Raoul Mesnier. Tendo-se oferecido como voluntário, fez sozinho essa viagem experimental e concludente, durante a qual (e citemos o relatório da referida Comissão) “de um só golpe foi cortada a corda do guincho e o carro entregue à acção da gravidade. Imediatamente desceu o travão automático e o carro, a menos de um metro de distância, parou de repente”. Estavam, assim, provadas a exequibilidade do projeto e a segurança do elevador, bem como os dotes construtivos do engenheiro portuense, que, utilizando o sistema e os veículos do suíço Riggenbach e associando-se a um outro engenheiro portu- guês, António Kopcke de Carvalho, construía ali o primeiro dos seus muitos elevadores. O funicular do Bom Jesus, constituído por duas carruagens que, quase 140 anos depois, continuam a subir e descer em simultâneo, mas alternadamente, os carris de ferro colocados ao longo do percurso, foi na época verdadeiramente revolucionário. E, num tempo em que a energia a vapor era o sinal do progresso, ele apresentava também uma notável e pioneira inovação: funcionava com base numa energia ecologicamente “limpa”… água! É, com efeito, o peso da água colocada na carruagem descendente que permite a deslocação dos veículos. Embora à partida sejam depositados 500 litros no depósito da carruagem, a capacidade pode ascender aos 3.500 litros. A quantidade de água necessária varia dependendo do número de passageiros que ocupem a carruagem ascendente, sendo colocados mais 500 litros por cada grupo de cinco pessoas. O número de passageiros ascendentes era transmitido ao extremo oposto por toques num sino, entretanto substituído por toques de campainha. O velho sino, no entanto, permanece no local, como alternativa a uma possível falha elétrica. É que a água, essa, nunca falha, e, por isso, o elevador também nunca para. O sucesso do funicular do Bom Jesus de Braga acabou por lançar Raoul Mesnier numa fabulosa e intensa carreira, ao longo da qual viria a idealizar e a construir um número impressionante de funiculares, elevadores e outras estruturas mecânicas de trans-
porte, em Portugal, na ilha da Madeira, na ilha de S. Tomé, na Guiné e em Moçambique, onde acabou por falecer em 1914. Mesnier, o “Senhor Elevador”, foi o autor de verdadeiras relíquias da nossa arqueologia industrial que permanecem, até hoje, em funcionamento. Assim, e além do seu envolvimento na produção do elevador do Bom Jesus de Braga, foi também o responsável pela conceção do ascensor do Lavra, em Lisboa, que entrou em serviço em 1884; do elevador da Glória, em Lisboa, que começou a funcionar em 1885; e o elevador da Bica, ainda em Lisboa, que entrou ao serviço em 1892 e que, à semelhança dos dois anteriores, foi classificado como Monumento Nacional em 2002. Ainda na capital ergue-se também aquele que é um dos seus mais famosos elevadores: o de Santa Justa, designado por vezes como “do Carmo”. Inaugurado em julho de 1902, esta obra monumental, para lá da sua importância no campo da engenharia, destaca-se pelo seu estilo artístico neogótico. Outro dos mais famosos elevadores portugueses, igualmente da autoria de Raoul Mesnier de Ponsard, é o do Sítio, na Nazaré. Tendo começado a funcionar em julho de 1889, possui, tal como o de Braga, uma inclinação máxima de 42%. Mesmo assim abaixo dos 47% de inclinação que possuía o funicular dos Guindais no Porto. Inaugurado em 4 de junho de 1891 teve, no entanto, vida curta, uma vez que deixou de funcionar na sequência de um grave acidente (sem vítimas mortais) que ocorreu dois anos depois, a 5 de junho de 1893, quando se registou a rutura de um cabo, fazendo precipitar a carruagem ao longo da escarpa, acabando aquela por embater no pilar granítico da ponte Luis I. O actual funicular dos Guindais, inaugurado em 2004, continua, contudo, a utilizar o antigo leito do percurso idealizado por Mesnier. Além do funicular dos Guindais à Batalha, outros elevadores concebidos pelo engenheiro portuense, mas desta feita em Lisboa, deixaram também de funcionar, por circunstâncias diversas, no início do século XX: o da Estrela, conhecido popularmente por “machimbombo”, que funcionou entre 1890 e 1913; o elevador da Graça, inaugurado em 1893 e desativado em 1904; e o de S. Sebastião da Pedreira, que esteve ativo entre 1889 e 1901.