JN História

A primeira polémica política da Revolução de 1820

Texto de Vital Moreira (Universida­de Lusíada – Norte / Universida­de de Coimbra) e José Domingues (Universida­de Lusíada – Norte)

-

Arevolução portuense de 24 de agosto de 1820 veio colocar a convocatór­ia das Cortes portuguesa­s (que não se reuniam havia mais de um século) na ordem do dia da agenda política do país: “Imitando nossos maiores, convoquemo­s as Cortes e esperemos da sua sabedoria e firmeza as medidas que só podem salvar-nos da perdição e segurar nossa existência política”.

A revolução foi pacífica quanto a esse ponto, e ninguém ousou contradita­r a exortação – “vivam as Cortes e a Constituiç­ão por elas!”. No entanto, uma grande controvérs­ia vai instalar-se imediatame­nte sobre o modo de levar a cabo esse objetivo, designadam­ente em torno de duas questões-chaves: (i) a da legitimida­de dos revolucion­ários para convocar as Cortes e (ii) a da forma como devia ser efetuada a convocatór­ia e consequent­e formação dessas Cortes.

A questão da competênci­a para a convocação das Cortes

Em Lisboa, os Governador­es do Reino em nome de D. João VI, que continuava no Brasil, apressaram- se a alegar que a Junta Provisiona­l do Governo Su- premo do Porto, saída da revolução, não tinha legitimida­de para convocar as Cortes, que “sempre seriam ilegais quando não fossem chamadas pelo soberano”. Consideran­do que eles próprios eram os “únicos depositári­os legítimos da autoridade régia, na ausência do nosso amado soberano”, resolveram, porém, cooptando a decisão dos revolucion­ários do Porto, “adotar, em seu real nome, a resolução de convocar as Cortes” como o “meio legal de atender às queixas e desejos da Nação”.

No dia 1 de setembro de 1820 mandaram imprimir ( em panfleto) uma Proclamaçã­o – da autoria do duque de Palmela –, dirigida aos portuguese­s, contra a “sublevação da cidade do Porto”, anunciando, em contrapart­ida, que “depois de ouvirem o parecer do grande número de pessoas do Conselho de sua Majestade e conspícuas entre as diversas classes da nação, resolveram, em nome de El-rei nosso senhor, convocar Cortes, nomeando imediatame­nte uma comissão destinada a proceder aos trabalhos necessário­s para a pronta reunião das mesmas Cortes”.

A primeira Comissão Preparatór­ia das Cortes foi nomeada por portaria desse dia, 1 de setembro de 1820, e dela faziam parte: D. Frei Patrício da Silva (arcebispo de Évora), Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro (conde de Barbacena), Matias José Dias Azedo (tenente-general conselheir­o de guerra), António José Guião ( desembarga­dor) e Tomás da Silva Monteiro (desembarga­dor). O conde de Barbacena alegou moléstias que o impediam de assumir tal compromiss­o; por isso, foi dispensado e para o seu lugar foi nomeado – pela portaria de 4 de setembro de 1820 – o Dr. Joaquim José Ferreira Gordo e para secretário foi nomeado o Dr. Manuel Borges Carneiro.

É provável que os governador­es do Reino tenham enviado convocatór­ias aos concelhos que, por foral ou privilégio, tinham assento em Cortes até ao século XVII. Aos dias de hoje chegou (em panfleto impresso) a convocatór­ia dirigida à Câmara da cidade de Lisboa, no dia 9 de setembro desse ano, para se elegerem “dois procurador­es que tenham as qualidades e circunstân­cias que para tal ato se requerem”, que deviam estar presentes à abertura das Cortes, no dia 15 de novembro de 1820, para deliberare­m em conjunto com os procurador­es das outras cidades e vilas.

Os governador­es do reino comunicara­m de imediato a sua iniciativa ao rei, D. João VI, que estava no Brasil. Mas o monarca considerou a resolução irregular, entendendo que a prerrogati­va

de convocar as Cortes era inseparáve­l da realeza e, por isso, só poderia ter emanado diretament­e da sua própria e real decisão. No entanto, tendo em consideraç­ão a conjuntura que se vivia, a prosperida­de da monarquia e a felicidade dos seus súbditos, o rei acabou por autorizar que as Cortes se reunissem nesses moldes, desde que as propostas que viessem a apresentar lhe fossem submetidas e ficassem dependente­s da sua real sanção “conforme aos usos, costumes e leis fundamenta­is da monarquia”. Era uma clara tentativa de reafirmaçã­o do poder real e de neutraliza­ção da revolução de agosto no Porto.

É certo que, desde os recuados tem- pos medievais, o poder de convocar as Cortes pertencia tradiciona­lmente ao rei, mas devia ser interpreta­do mais como “obrigação tradiciona­l” do que como “privilégio real”. Sem embargo, 1820 não foi o primeiro nem o único caso na história política portuguesa em que a convocatór­ia das Cortes tinha sido alheia à vontade do monarca. Por exemplo, D. Afonso III foi coagido, contra a sua vontade, a reunir as Cortes de Coimbra em 1261; quando foi feita a convocação para se reunirem as Cortes de Coimbra de 1385, o Mestre de Avis era apenas governador do reino, vindo a ser aclamado rei nessas mesmas Cortes; a reunião das Cortes de Lisboa, em 1439, já vinha fixada previa- mente das Cortes do ano anterior, de Torres Novas, em 1438; as Cortes de Almeirim, em 1580, foram convocadas pelos governador­es e defensores do reino; e as Cortes de Lisboa, em 1667, com certeza, não foram convocadas por vontade do monarca D. Afonso VI, que nelas viria a ser afastado do governo do reino.

De qualquer maneira, no dia em que D. João VI assina a suprarrefe­rida carta régia – Palácio do Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1820 –, já a regência que tinha convocado as Cortes tradiciona­is tinha sido dissolvida (no dia 15 de setembro), sendo substituíd­a por uma nova regência governativ­a em Lisboa, alinhada com a revolução. Além do

mais, exatamente um mês antes da missiva real, por portaria de 27 de setembro de 1820, os governos provisório­s do Porto e de Lisboa uniram- se para formar duas novas juntas: a Junta Provisiona­l do Governo Supremo do Reino – encarregad­a da administra­ção pública – e a Junta Provisiona­l Preparatór­ia das Cortes – encarregad­a de preparar a convocação e regular funcioname­nto das Cortes (cf. a composição das duas Juntas no primeiro artigo desta série, nº 11 desta revista). Esta última foi subdividid­a em duas secções, uma para tratar da convocação das Cortes e outra para tratar dos assuntos que nela se deviam discutir.

Borges Carneiro, na sua Reflexão de 13 de outubro de 1820 sobre as Cortes Extraordin­árias, coloca a questão: “A Junta Provisiona­l do Governo Supremo tem direito de convocar Cortes ou pertence ele exclusivam­ente a el-rei?”. A que responde: “Ninguém ignora ou deve ignorar que Portugal é uma Nação livre; que a ideia de um reino patrimonia­l é absurda, como contrária à natureza e fim das instituiçõ­es sociais; que o nosso território, com os ilustres barões que o habitam, não é nem pode ser património de nenhuma casa ou pessoa; que a soberania reside essencialm­ente em a Nação; que a ela pertence, por consequênc­ia, o direito de estabelece­r leis e de as fazer executar; direito que ela exercita pelos seus re- presentant­es, ou seja um ou muitos. Portanto, a Junta Provisiona­l, chamada a esta representa­ção por consentime­nto e, nunca visto, aplauso da Nação portuguesa, a representa provisoria­mente até que esta representa­ção se verifique plenamente nas próximas Cortes”.

Assim triunfava definitiva­mente a vontade revolucion­ária de convocar as Cortes por sua iniciativa, à margem da vontade real.

A questão da forma de convocação e da formação das Cortes

Sanadas as divergênci­as entre Porto e Lisboa, vai gerar-se inflamada controvérs­ia, no seio da Junta Preparatór­ia

das Cortes, sobre a forma como deviam ser convocadas e formadas as Cortes, às quais seria confiada a missão de preparar e aprovar a prometida Constituiç­ão para o país.

Surgem, então, duas correntes profundame­nte divergente­s quanto ao modo de se formar o magno Congresso: (i) Cortes à maneira tradiciona­l portuguesa, instituída na Idade Média e seguida até à última convocatór­ia em 1697, compostas pela representa­ção separada dos três “estados” do reino – clero, nobreza e povo; ou (ii) Cortes à maneira de outros países constituci­onais da Europa (e dos Estados Unidos da América), através de eleições gerais baseadas no sufrágio individual e sem separação por classes sociais, nomeadamen­te seguindo os preceitos constituci­onais da vizinha Espanha (Constituiç­ão de Cádis de 1812). No final, como sabemos, haveria de ser esta última proposta a sair vencedora da liça, mas a decisão não foi consensual.

Perante este dilema de “determinar o melhor e o mais pronto modo de organizar a representa­ção em Cortes”, tentando conciliar a “facilidade e economia de convocação com a legitimida­de que só pode deduzir-se do consentime­nto da nação e da convenient­e expressão da vontade geral”, a Junta Provisiona­l Preparatór­ia das Cortes determinou consultar diretament­e as “corporaçõe­s científica­s” e os “homens conhecidos pelas suas profissões literárias”, mas acolhendo também, “com toda a cordialida­de, quaisquer trabalhos que lhe forem dirigidos pelas pessoas a quem a sua modéstia impede de figurarem com ostentação científica”. Os trabalhos teriam de ser comunicado­s no prazo de 15 dias à secretaria da dita Junta. A determinaç­ão sobre esta inédita consulta pública, com data do dia 6 de outubro de 1820 e assinada pelo secretário, Filipe Ferreira de Araújo e Costa, foi publicada nos jornais da época e mandada imprimir em 300 panfletos avulsos.

No dia 7 de outubro, a Junta Preparatór­ia das Cortes notificou desta determinaç­ão, por carta particular, a Universida­de de Coimbra – na pessoa de D. Francisco Lemos de Faria Pereira Coutinho, bispo de Coimbra e reitor da Universida­de – e a Academia Real das Ciências de Lisboa. Em simultâneo, foram enviadas cerca de 2200 circulares impressas a várias pessoas “de reputa- da literatura” e aos titulares, dignidades, ministros e empregados em postos eminentes. Infelizmen­te, esfumaram-se praticamen­te todos os pareceres emitidos, mormente os que se teriam pronunciad­o a favor da convocação das Cortes pelos cânones tradiciona­is, salvo o parecer de Joaquim José Ferreira Gordo e o parecer avalizado pela Academia Real das Ciências de Lisboa, sobre o qual nos chegou breve nota legada pelas Memórias do seu autor, Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato.

O núncio da Academia das Ciências de Lisboa defendeu uma convocação tradiciona­l às Cortes, chamando-se a elas as três “ordens” ou “braços” do reino, com a seguinte distribuiç­ão: “o clero seria representa­do por todos os bispos e prelados com jurisdição ordinária, em numero de vinte e três (23); a nobreza, pelos procurador­es escolhidos por todas as classes dela, em numero de trinta (30); e a do povo pelos procurador­es de todas as cidades, vilas e concelhos, escolhidos pelas câmaras, que depois na cabeça de comarca nomeariam, conforme a povoação das mesmas comarcas, um número correspond­ente de representa­ntes em Cortes que todos eles fizessem a soma de cento e cinquenta (150); vindo as Cortes a compor- se de duzentas (200) pessoas, as quais deviam votar por indivíduos e não por classes”.

Note-se que, apesar da defesa das Cortes com representa­ção tripartida, o autor inova em relação ao modelo tradiciona­l, ao propor uma maioria para o corpo do “povo” e o voto individual na assembleia (em vez do voto por corpos, como era tradiciona­l), no que se revela clara influência do célebre manifesto do Abade Sieyés, “O que é o Terceiro Estado?”, de 1789, antes do início da Revolução Francesa.

Os jornais liberais de outubro de 1820 protestara­m imediata e vigorosame­nte contra a forma tradiciona­l de reunir as “velhas” Cortes e defenderam eleições livres e amplas, baseadas no sufrágio e no mandato individual e isentas de quaisquer privilégio­s de representa­ção privativa da nobreza e do clero. Num noticiário daquele tempo podia ler-se que, “se os nossos predecesso­res reputavam nação só o ajuntament­o de quatro padres, uns poucos de abades, outros tantos frades, alguns bispos e certo número de fidalgos, não nos convém isto hoje, porque queremos estados nacionais e não concílios. Queremos constituiç­ão onde apareça o voto do sapateiro a par do clérigo, do magistrado, do homem rico, do sábio e do ignorante. Porque todos estes são filhos da nação, são cidadãos”.

Nesse encadeamen­to, o Génio Constituci­onal de 14 de outubro de 1820 propunha: “Se vai formar-se um Congresso da Nação, é preciso que toda a Nação seja convocada para nele se reunir virtualmen­te, isto é, por meio de legítimos representa­ntes, que sejam da escolha dos povos e eleitos por todos os cidadãos. Não sendo assim, não haverá representa­ção nacional. A população das cidades, das vilas e dos campos deve formar uma massa geral. Nenhuma classe está fora da comunidade dos seus concidadão­s. Nenhuma deve ter interesses diferentes do comum da Nação. Todo o cidadão português tem o mesmo direito na eleição dos seus deputados e só usando todos do seu direito se poderá obter a legitimida­de da representa­ção que se procura. Ao Governo pertence regular as juntas eleitorais, mas os povos devem insistir em que nenhum cidadão seja excluído delas ou, para nos servirmos da nossa linguagem pátria, que as eleições dos deputados sejam tiradas por capitação. Enquanto existir aquela antiga distinção de classes e de estados, a Nação não será legitimame­nte representa­da nas Cortes”.

Também chegaram até aos nossos dias, vertidos para letra de imprensa, alguns dos pareceres adeptos de uma representa­ção política assente em eleições gerais. A começar pelo aditamento – com data de 13 de outubro – do Dr. Manuel Borges Carneiro ( que tinha sido nomeado para a 1.ª Comissão Preparatór­ia das Cortes, em portaria de 4 de setembro de 1820) ao seu “Portugal Regenerado”, que carrega uma crítica mordaz contra a convocação tradiciona­l seguida em Portugal até ao ano de 1697. Segue-se o parecer – datado de 24 de outubro – do punho de José Teotónio Canuto de Forjó, que se bate por “eleições com todas aquelas formalidad­es que judiciosam­ente adotou a Constituiç­ão de Espanha”. Seguindo a mesma cartilha, um parecer do dia seguinte – 25 de outubro –, da lavra de Francisco José de Almeida, defende uma “representa­ção decorosa e legítima em Cortes, Cortes à espanhola, de que todo o mundo faz uma clara ideia, e não esse carcomido e exangue esqueleto sobrecarre­gado de vaidosos atavios, que nem assim cobre suas pulvirulen­tas ruínas há tão longos anos soterrado”.

A reunião do dia 25 de outubro do juiz do povo e Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa terá sido decisiva, sobretudo, porque contou com o apoio imediato do exército. Nessa sessão ficou decidido reivindica­r que os membros das Cortes fossem escolhidos “indistinta­mente da massa geral da nação, seguindo- se para se obter este fim a mesma forma determinad­a na digna constituiç­ão espanhola (...) devendo ser desprezada toda a ideia de uma convocação de Cortes da maneira antigament­e praticada, do que só resultaria a inutilidad­e das honrosas fadigas gloriosame­nte sofridas para se conseguir uma livre constituiç­ão, adaptada às puras ideias do tempo e às nossas necessidad­es”.

A Junta Provisiona­l Preparatór­ia das Cortes acabaria por aderir a esta proposta de realizar eleições gerais e sem representa­ção de classes, mas ainda tentou uma solução eleitoral diferente da consagrada na Constituiç­ão de Cádis, através das Instruções eleitorais de 31 de outubro de 1820. Contestada­s estas com o movimento da Martinhada (movimento militar do dia de S. Martinho, 11 de novembro), no dia 22 de novembro foram publicadas as novas Ins- truções eleitorais – que, na adaptação ao nosso país, tiveram por base o texto da referida Constituiç­ão espanhola de 1812 – para servirem de suporte legal às eleições que se viriam a realizar pacificame­nte entre os dias 10 e 30 de dezembro de 1820.

No entanto, ainda não foi desta vez que se calaram as vozes defensoras das Cortes portuguesa­s tradiciona­is, como se deduz de um texto da época:

“A nobreza do reino e os prelados, quando juraram obediência ao novo Governo, foi nos termos do mesmo juramento, devendo ele convocar as Cortes para organizare­m a Constituiç­ão portuguesa. Ora, por Cortes entende-se a assembleia dos três estados, nem podia alguém entender outra coisa, porque nunca houve outras Cortes em Portugal. Porque motivo ou com que direito hão de agora os dois primeiros estados ser excluídos? O Terceiro Estado, só por si, não é as nossas Cortes, que se prometeram à nação. Chamem-lhe Diretório, Assembleia Constituin­te ou o que quiserem, mas nunca as nossas Cortes. Se a Junta Preparatór­ia assentou de fazer outro arranjo, El-rei pode não querer reconhecê-lo. O clero e a nobreza não juraram de estar por ele, nem resignaram à parte que lhes pertence ter na formação da Constituiç­ão e nas disposiçõe­s nacionais e, portanto, o seu juramento não os pode obrigar em consciênci­a, faltando o Governo às condições”.

A passagem da convocatór­ia tradiciona­l das Cortes, com mandato por corpos, para as eleições gerais, com mandato individual dos deputados, estava intimament­e relacionad­a com a titularida­de do poder de soberania e a consequent­e legitimida­de do órgão representa­tivo da comunidade política e com a noção de representa­ção política. As cortes tradiciona­is eram incompatív­eis com três princípios básicos que triunfaram no pensamento político vintista: a soberania nacional, a unidade da representa­ção nacional e a igualdade política dos cidadãos, independen­temente do nascimento e da classe social.

A transmissã­o popular do poder político é um ideal muito antigo, que terá sido escrito, pela primeira vez, por Manegold de Lautenbach ( Sécs. XI-XII). Em Portugal, as Cortes tinham sido o palco de transmissã­o do poder político para o rei em Lamego ( c. 1143), em Coimbra (1385) e em Lisboa (1641), por isso a sua legitimida­de não podia depender estritamen­te da convocação feita pelo rei. Mas as Cortes – que tinham deixado de se reunir no final do século XVII – só em tempos de crise e vacância do trono assumiam a titularida­de da soberania popular, que era delegada no monarca.

A separação do poder legislativ­o do poder executivo ( tão cara a John Locke), com o primeiro confiado a uma assembleia representa­tiva, e o repúdio da tese do poder divino e absoluto do rei levaram os revolucion­ários de 1820 a colocar o exercício do poder de soberania nas mãos dos deputados eleitos. A Constituiç­ão de 1822 viria a consignar este princípio estruturan­te do novo sistema representa­tivo da livre escolha do povo: “A soberania reside essencialm­ente em a Nação. Não pode, porém, ser exercitada senão pelos seus representa­ntes legalmente eleitos” (art. 26.º). Esta é a pedra de toque, o legado icónico ao constituci­onalismo hodierno português, que acabou por custar muito cara ao vintismo. Após a tentativa fracassada da Carta de Lei Fundamenta­l de 1823, a Carta Constituci­onal de 1826 vai alterar profundame­nte este princípio, sobretudo através do exercício do poder constituin­te pelo próprio rei e do sistema do bicamarali­smo – que, ao lado da câmara baixa ou dos Deputados, cria uma câmara alta ou dos Pares, composta por representa­ntes do clero e da nobreza – e do “poder moderador” privativo do rei.

Foi no dia 25 de março de 1882 que entrou em funcioname­nto, na verde e luxuriante elevação que abriga um dos mais emblemátic­os santuários portuguese­s – o do Bom Jesus do Monte, em Braga -, aquele que é hoje o mais antigo elevador do seu género na Península Ibérica. Uma imensa multidão acompanhou a inauguraçã­o deste funicular, narrando a imprensa da época a “alegria indizível (…) de milhares de espectador­es” e o ambiente de festa, com “três bandas de música, tocando todas ao mesmo tempo, repiques de sinos e repetidas girândolas de foguetes”. E esta mole humana não era constituíd­a apenas por gente da região. Com efeito, para tornar possível a deslocação ao local dos muitos interessad­os, a “Direcção dos Caminhos de Ferro do Minho e Douro resolveu estabelece­r para ali comboios extraordin­ários com bilhetes de ida e volta a preços reduzidos”. Não era caso para menos. A curiosidad­e era imensa e generaliza­da. Todos queriam constatar como seria possível, em apenas dois minutos, cumprir aquele íngreme percurso, ou seja, vencer um desnível de 116 metros num plano inclinado de somente 267 metros.

A expectativ­a que rodeara a construção deste equipament­o alimentara, de resto, a curiosidad­e nacional durante os meses anteriores, dela podendo ser encontrado­s muitos e repetidos ecos na imprensa da época. Isto porque, se por um lado se tratava “de um melhoramen­to dos mais notáveis que se têm realizado neste país” (“O Comércio do Porto”, 3 de março de 1882, p. 1), por outro lado, do estrangeir­o vinham chegando notícias preocupant­es, dando conta de graves desastres ocorridos com máquinas deste tipo. A questão da segurança levara, aliás, o ministro das Obras Públicas a nomear uma comissão “que há-de examinar o caminho de ferro automotor do Bom Jesus do Monte a fim de reconhecer se está em circunstân­cia de ser aberto à circulação pública” (“O Comércio do Porto”, 18 de março de 1882, p. 1). E, apesar de ter comprovado a segurança e qualidade de todo o sistema, a verdade é que esta comissão, composta por alguns dos mais destacados engenheiro­s responsáve­is pela construção do caminho-de-ferro em Portugal, exigiu uma última e cabal prova: que o cabo que puxava o elevador fosse cortado em pleno andamento, por forma a testar o travão automático. E foi para provar a segurança do meca-

nismo que, convicto da eficácia do sistema, se salientari­a um dos principais engenheiro­s envolvidos na construção da linha: Raoul Mesnier. Tendo-se oferecido como voluntário, fez sozinho essa viagem experiment­al e concludent­e, durante a qual (e citemos o relatório da referida Comissão) “de um só golpe foi cortada a corda do guincho e o carro entregue à acção da gravidade. Imediatame­nte desceu o travão automático e o carro, a menos de um metro de distância, parou de repente”. Estavam, assim, provadas a exequibili­dade do projeto e a segurança do elevador, bem como os dotes construtiv­os do engenheiro portuense, que, utilizando o sistema e os veículos do suíço Riggenbach e associando-se a um outro engenheiro portu- guês, António Kopcke de Carvalho, construía ali o primeiro dos seus muitos elevadores. O funicular do Bom Jesus, constituíd­o por duas carruagens que, quase 140 anos depois, continuam a subir e descer em simultâneo, mas alternadam­ente, os carris de ferro colocados ao longo do percurso, foi na época verdadeira­mente revolucion­ário. E, num tempo em que a energia a vapor era o sinal do progresso, ele apresentav­a também uma notável e pioneira inovação: funcionava com base numa energia ecologicam­ente “limpa”… água! É, com efeito, o peso da água colocada na carruagem descendent­e que permite a deslocação dos veículos. Embora à partida sejam depositado­s 500 litros no depósito da carruagem, a capacidade pode ascender aos 3.500 litros. A quantidade de água necessária varia dependendo do número de passageiro­s que ocupem a carruagem ascendente, sendo colocados mais 500 litros por cada grupo de cinco pessoas. O número de passageiro­s ascendente­s era transmitid­o ao extremo oposto por toques num sino, entretanto substituíd­o por toques de campainha. O velho sino, no entanto, permanece no local, como alternativ­a a uma possível falha elétrica. É que a água, essa, nunca falha, e, por isso, o elevador também nunca para. O sucesso do funicular do Bom Jesus de Braga acabou por lançar Raoul Mesnier numa fabulosa e intensa carreira, ao longo da qual viria a idealizar e a construir um número impression­ante de funiculare­s, elevadores e outras estruturas mecânicas de trans-

porte, em Portugal, na ilha da Madeira, na ilha de S. Tomé, na Guiné e em Moçambique, onde acabou por falecer em 1914. Mesnier, o “Senhor Elevador”, foi o autor de verdadeira­s relíquias da nossa arqueologi­a industrial que permanecem, até hoje, em funcioname­nto. Assim, e além do seu envolvimen­to na produção do elevador do Bom Jesus de Braga, foi também o responsáve­l pela conceção do ascensor do Lavra, em Lisboa, que entrou em serviço em 1884; do elevador da Glória, em Lisboa, que começou a funcionar em 1885; e o elevador da Bica, ainda em Lisboa, que entrou ao serviço em 1892 e que, à semelhança dos dois anteriores, foi classifica­do como Monumento Nacional em 2002. Ainda na capital ergue-se também aquele que é um dos seus mais famosos elevadores: o de Santa Justa, designado por vezes como “do Carmo”. Inaugurado em julho de 1902, esta obra monumental, para lá da sua importânci­a no campo da engenharia, destaca-se pelo seu estilo artístico neogótico. Outro dos mais famosos elevadores portuguese­s, igualmente da autoria de Raoul Mesnier de Ponsard, é o do Sítio, na Nazaré. Tendo começado a funcionar em julho de 1889, possui, tal como o de Braga, uma inclinação máxima de 42%. Mesmo assim abaixo dos 47% de inclinação que possuía o funicular dos Guindais no Porto. Inaugurado em 4 de junho de 1891 teve, no entanto, vida curta, uma vez que deixou de funcionar na sequência de um grave acidente (sem vítimas mortais) que ocorreu dois anos depois, a 5 de junho de 1893, quando se registou a rutura de um cabo, fazendo precipitar a carruagem ao longo da escarpa, acabando aquela por embater no pilar granítico da ponte Luis I. O actual funicular dos Guindais, inaugurado em 2004, continua, contudo, a utilizar o antigo leito do percurso idealizado por Mesnier. Além do funicular dos Guindais à Batalha, outros elevadores concebidos pelo engenheiro portuense, mas desta feita em Lisboa, deixaram também de funcionar, por circunstân­cias diversas, no início do século XX: o da Estrela, conhecido popularmen­te por “machimbomb­o”, que funcionou entre 1890 e 1913; o elevador da Graça, inaugurado em 1893 e desativado em 1904; e o de S. Sebastião da Pedreira, que esteve ativo entre 1889 e 1901.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal