Pórtico Honrar a verdade num mar de boatos
Muito antes do fenómeno das ‘fake news’ – que de novo só tem esta triste tentação de recorrer a palavras estrangeiras quando somos detentores de uma língua riquíssima e falada por 261 milhões de pessoas, a quarta mais usada no mundo –, muito antes desse fenómeno, dizia, já a história era abastada no domínio do boato, da manipulação, do rumor que se avoluma, das narrativas de conveniência. A palavra história é aqui empregue por comodidade expositiva: se é falso, manipulado ou moldado à conveniência de alguém, simplesmente não é história. Nesta edição, o Tema de Capa versa assuntos que têm de ser olhados com cautela, porque a principal fonte disponível é a memória de intervenientes, e esta, por definição, transcende em muito a ambição utópica de uma verdade inatacável. Tem de ser lida criticamente. Todavia, não é aí que encontramos o veneno do boato. Este flui em redor da história e, quando o tema é a oposição à ditadura, existe para presumível benefício dos saudosistas de um tempo derrotado, circulando facilmente nesse amplificador de informação nociva que a internet também é. Mário Soares nunca mandou lançar os portugueses de África aos tubarões nem cuspiu na bandeira nacional. Tudo isso é mentira. E Camilo Mortágua, que nos deixa aqui o seu testemunho, não foi ladrão de bancos nem bandido. Foi um combatente pela Liberdade. Encarar as operações de ação direta contra o salazarismo como crimes de delito comum não é apenas intelectualmente desonesto. É a mensagem que, naquele tempo, a PIDE queria fazer passar.