DESAFIAR O REGIME E SALAZAR NA RESSACA DO “FURACÃO”
Marcada, sobretudo, pela Guerra Colonial, a década de 1960 foi pontuada por algumas das mais espetaculares ações de oposição à ditadura, pensadas para ter impacto nacional e internacional e estimuladas, de certo modo, pela campanha inaudita de Humberto De
Portugal assinalou, por estes dias, 45 anos de regime democrático. Entre os que festejam (claro que sempre haverá, também, os que lamentam), seria curioso perceber se o fazem por rotina, por nostalgia de um tempo aventuroso (e venturoso) ou pela convicção de que quatro décadas e meia podem ser vistas como apenas uma página no curso da história, pelo que é necessário não desmobilizar da defesa de valores de liberdade, de justiça social, respeito pelas minorias, enfim, tudo o que se queira usar para caracterizar o objetivo de uma so
ciedade harmoniosa. Tudo isto tem a ver com a cidadania, não diretamente com a história. Mas, tendo nós presente que esta é uma ferramenta essencial para o exercício daquela, a coisa começa a ganhar sentido. Vale a pena evocar apenas “o dia inicial inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio”, como Sophia eternizou o 25 de Abril, ou temos de entender os acontecimentos de 1974 como o remate de algo que lentamente se ia construindo desde muito antes? Sendo o nosso objeto a história, claro que importa ir atrás, de forma a que assinalar a “revolução dos cravos” seja mais do que um ritual. De forma a que o festejo resulte na certeza de que a democracia não é um dado adquirido ou um estado natural das coisas, mas um sistema tão frágil como qualquer outro, cuja sobrevivência está ligada ao grau de cultura democrática e de cidadania da população. Nas páginas seguintes não encontraremos os movimentos ou acontecimentos que, de uma forma mais direta, levaram ao 25 de Abril. Não se trata de, pela enésima vez, de explicar como a necessidade de sustentar uma guerra em vários teatros de operações levou a medidas que levaram, por razões eminentemente corporativas, à consolidação do Movimento dos Capitães, de que veio a resultar o Movimento das
Forças Armadas. Nem de explicar como, nesse tempo, se foi instalando entre os oficiais de baixa patente uma consciência política que os impeliria a avançar contra a ditadura. Ou a saturação do país face a uma guerra cada vez menos compreendida, aliada ao desgaste do próprio regime, coincidente com o estímulo que a chamada “primavera marcelista”, mesmo sendo uma ilusão, deu aos movimentos oposicionistas. Muito menos cabe aqui a longa história da oposição à ditadura. Do que se falará nas páginas seguintes é da década de 1960, que, tendo sido quase integralmente marcada pela Guerra Colonial, foi também o tempo de algumas das mais espetaculares ações contra o salazarismo: o assalto ao paquete “Santa Maria”, em janeiro de 1961, o desvio do avião da TAP que fazia a ligação Casablanca- Lisboa, em novembro do mesmo ano, e o assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, em maio de 1967.
Muitas outras ações de oposição (ou subversivas, do ponto de vista do regime) pontuaram esses tempos, mas a junção destes três episódios é absolutamente natural por várias razões, como a coincidência de elementos operacionais ou a ideia sempre subjacente à vontade de realizar operações espetaculares, que causassem espavento nacional e internacional. Por isso – e não por qualquer tipo de afetividade, aqui indesejável –, rotular esses homens de heróis românticos ou soldados da fortuna não é totalmente desprovido de sentido. Evocá-los, porém, também não pode ser feito sem os enquadrar. Poderíamos recuar a 1926, quando a ditadura se instalou em Portugal, mas seria exagerado e confuso. Fiquemo-nos por 1958.
Nunca a dimensão do descontentamento popular havia sido tão visível, tão evidente como durante a campanha presidencial de Humberto Delgado e, por conseguinte, nunca a farsa eleitoral foi tão notória como a que nessa eleição levou à colocação de Américo Tomás no cargo de presidente da República. Daí que as palavras “furacão” ou “terramoto”, associadas à candidatura do “general sem medo”, façam todo o sentido: tanto foi abalado o regime, forçado a reagir a um nível de contestação para o qual não estava preparado, como a oposição, igualmente surpreendida com a dimensão do apoio popular que poderia ter, portanto incapaz de agir à altura do momento. E o apoio popular teria sido essencial para derrubar o regime, tal como veio a ser em 1974, quando a adesão espontânea e maciça da população se tornou o maior impulso ao sucesso dos militares revoltosos.
Mas voltemos a 1958 e aos tempos subsequentes, lendo o que a esse propósito escreve Irene Flunser Pimentel em “História da Oposição à Ditadura – 1926-1974” (Figueirinhas, 2013):
É comum dizer-se que, em 1974, não obstante todo o mérito dos militares do MFA, o regime “caiu de podre”. Não deixa de ser verdade que o desgaste era grande e que o regime se mostrou absolutamente incapaz de reagir (pensando Marcelo Caetano que a contestação havia ficado anulada pela contenção do “golpe das Caldas”, pouco mais de um mês antes do 25 de Abril, o que demonstrou a falência dos pilares da situação, da estrutura militar à PIDE). Mas isso ocorreu 18 anos depois das eleições de 1958, com 13 anos de guerra pelo meio. Ou seja, o PCP, que, de facto, era a estrutura mais sólida e organizada de oposição ao regime, naquele tempo, teorizara, no seu V Congresso (setembro de 1957), que a estratégia passaria mais por minar o regime, potenciando as clivagens internas que o levariam à queda, e não pela sublevação violenta. E a fidelidade aos ditames do coletivo, decididos em congresso, toldou a capacidade de reação ao momento.
No entanto, o mote estava dado. O “furacão”, ou “terramoto” ou o que se lhe queira chamar, constituía, apesar do grande aumento da repressão, um estímulo à procura de novas formas de abalar o regime, para, em última análise, o derrubar. Com toda a naturalidade, e porque o próprio se sentia detentor do protagonismo, Delgado quis ser figura
tutelar da oposição. Nunca o foi de facto, mas, pelo que fez, veio a pagar com a vida. Não é esse o nosso tema.
Logo depois das eleições, Delgado denunciou publicamente a falsidade dos resultados eleitorais. Oficialmente, Tomás ganhou com 76% dos votos, contra 24% do general, e este, além de convocar uma conferência de imprensa, escreveu ao presidente da República, Craveiro Lopes, instando-o a demitir o governo, e também a vários generais ( Júlio Botelho Moniz, Lopes da Silva, Costa Macedo e Beleza Ferraz), tentando sensibilizá- los para impedirem a posse do almirante. Em 18 de junho, criou o Movimento Nacional Independente (MNI).
Percebia-se, nos meios de decisão do regime, que o general teria de ser um alvo a abater. Não literalmente, como viria a suceder em 1965, mas através da descredibilização e da criação de condições para o retirar de cena. Em 8 de janeiro de 1959, foi afastado da Direção Geral de Aeronáutica, primeiro passo rumo a definitiva expulsão da Força Aérea, que só se consumou em 1960. Pouco depois, em 12 do mesmo mês, a PIDE tentou criar um pretexto para o prender, promovendo uma manifestação alegadamente popular frente à casa de Delgado, que seria enquadrada como perturbação da ordem pública (nem todos os testemunhos coincidem). Certo é que acabou na embaixada do Brasil, a pedir asilo político, tendo este sido logo concedido. Após quatro meses confinado à embaixada, graças a negociações conduzidas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil (ou Itamaraty), partiu para o Rio de Janeiro. Por essa altura, Henrique Galvão, sob prisão no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, evadiuse e conseguiu procedimento similar junto da embaixada da Argentina.
Estes dois destinos, que já antes se
haviam cruzado – foi Henrique Galvão quem “inventou” a candidatura de Humberto Delgado –, cruzaram-se e distanciaram-se ao longo dos anos seguintes, marcando as iniciativas de ação direta contra o regime.
Mas, como se reparará, as ações de que tratamos nestas páginas têm, direta ou indiretamente, o cunho de Galvão, não o de Delgado, muito menos espetacular e eficaz nas ações a que esteve diretamente ligado, como a revolta de Beja, na passagem de ano de 1961 para 1962. Na memória, construída pela historiografia, mas não só, Delgado é uma figura incontornável. Tal deve-se à impressionante campanha de 1958 e às suas movimentações nos anos seguintes, mas também ao facto de, ao ser assassinado pela PIDE, ter ganho o estatuto de mártir da liberdade.
Já Henrique Galvão, apesar de ter contribuído decisivamente para a ditadura salazarista perder a face no concerto internacional, é muito menos lembrado. Não nestas páginas, em que está presente de uma ponta a outra.