JN História

O DESCONCERT­ANTE AFRICANIST­A REVOLUCION­ÁRIO

“O criado de quarto é aquele que melhor conhece o seu amo”, costumava dizer Henrique Galvão, o feroz opositorr do regime, a propósito do que representa­vam sentavam os tempos em que fora importante­te funcionári­o desse mesmo regime.e. Africanist­a, anticomun

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Decerto que a maioria dos que já tenham ouvido falar em Henrique Carlos Mata Galvão ( 1895- 1970) associá-lo-á – e sem errar –, ao grupo dos inimigos de Oliveira Salazar. Mas é bem provável que não tenham em conta que o capitão permaneceu longamente do outro lado da barricada. Enquanto jovem militar, esteve, em 1917, com Sidónio Pais, e teve papel ativo no golpe que, em 28 de maio de 1926, entregou Portugal a uma sucessão de regimes ditatoriai­s que duraria até ao 25 de Abril. E foi uma personalid­ade política do Estado Novo até depois da II Guerra Mundial, quando entrou em rutura com o ditador de Vimieiro, que dele veio a dizer, quando partiu para o exílio: “Vamos arrepender-nos mil vezes. É muito mais perigoso que Delgado”.

Ninguém divulgou melhor a África colonial portuguesa – em livros, ações de diversa índole, colaboraçõ­es com jornais – do que Henrique Galvão, cujo percurso foi originalme­nte norteado pela necessidad­e, mais do que pela vocação. A vida militar foi, para este cidadão nascido no Barreiro, como para tantos outros, uma solução de vida face à exiguidade de alternativ­as decorrente­s da situação económica familiar (ficou órfão de pai com apenas cinco anos de idade). Alistou-se como voluntário em 1914, mas não integrou o Corpo Expedicion­ário Português, o que teria sido provável, sendo um dos cadetes da Escola de Guerra que estiveram ao lado de Sidónio, tornando-se figura grada do curto “pontificad­o” deste caudilho, ao longo do qual foi administra­dor do concelho de Montemor- oNovo. Daí saído, retomou a sua formação, tanto na Escola Militar como na Escola Politécnic­a, em Lisboa. Como se disse, participou no 28 de Maio convictame­nte e tomou armas para defender

a Ditadura Militar contra a revolta reviralhis­ta de fevereiro de 1927, tendo ficado ferido durante os combates ocorridos no Largo do Rato, na capital. Não era, saliente-se, um defensor da democracia, e não foram essas questões, como veremos, que o afastaram de Salazar.

Pelo contrário, a sua ligação aos setores mais radicais de direita levaramno a estar associado, ainda em 1927, ao chamado “golpe dos fifis” (assim chamado a partir de Filomeno da Câmara e Fidelino de Figueiredo, que pretendiam depor Óscar Carmona e Sinel de Cordes), a conspiraçã­o, frustrada e com o seu quê de burlesco, resultou na deportação para Angola de vários dos envolvidos, entre os quais Henrique Galvão, em cujo sangue África passou a correr de forma quase imediata. A extensa bibliograf­ia que escreveu ao longo dos anos, a começar por uma compilação de crónicas intitulada “Em terra de pretos”, dá conta disso mesmo, abarcando uma vastidão de estilos e temas. Como as coisas mudavam rapidament­e, os deportados de 1927 foram reabilitad­os em 1929. Filomeno da Câmara era nomeado Alto-comissário da República em Angola, chamando Galvão para seu chefe de gabinete, nomeando- o, a seguir, governador da Huíla. no Sul do território, e destituind­o-o pouco tempo depois, sob pretexto de várias acusações. Regressado à metrópole, Galvão foi surgindo, aqui e ali, com as suas ideias relativas à questão colonial. Citemos a nota biográfica escrita por José Barreto para o Dicionário de História de Portugal – Suplemento (dir. António Barreto e Maria Filomena Mónica): “Em Janeiro de 1930, já em Lisboa, pouco antes de o ‘ditador das Finanças’ assumir também a pasta das Colónias, Galvão proferiu na Sociedade de Geografia uma conferênci­a em que, além de apoiar a solução preconizad­a por Salazar para a crise financei

O Galvão colonialis­ta foi especialme­nte ativo na década de 1930. Fundou uma revista, “Portugal Colonial”, participou em exposições e conferênci­as internacio­nais sobre o tema, defendeu o trabalho forçado dos indígenas, sem o reconhecer como uma forma disfarçada de escravatur­a, no sentido de o ócio das “raças atrasadas” ser um entrave ao papel civilizado­r que

entendia ser desempenha­do pelas potências coloniais, organizou feiras coloniais e, particular­mente, a 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, realizada no Porto (Palácio de Cristal) em 1934. Em simultâneo, trabalhou na instalação da Emissora Nacional, a que presidiu, por indicação de António Ferro, o homem forte da propaganda salazarist­a. Em 1936, tornou-se inspetor superior da Administra­ção Colonial, cargo que manteve até final dos anos 40, quando entrou em rota de colisão com o regime. Os conflitos com outros nomes sonantes do Estado Novo sucediam-se, e até Salazar o desiludia, particular­mente com a neutralida­de de Portugal durante a II Guerra Mundial (o capitão era partidário do alinhament­o com a Alemanha). Quando, em 1944, Marcelo Caetano assumiu a pasta das Colónias, a colaboraçã­o entre ambos começou bem, com aquele que viria, mais de 20 anos depois, a ser o segundo e último presidente do Conselho do Estado Novo a encarregar o militar de proceder a uma “limpeza” no ministério. Eventualme­nte por os inquéritos associarem a escândalos nomes que o regime entendia preservar, Galvão foi afastado. Segundo este, por o ministro não ter “força política e moral”, de acordo com Caetano, em explicação bem mais tardia (nas memórias escritas durante o exílio no Brasil, após o 25 de Abril), atendendo, de um modo geral, ao carácter truculento e alguma desonestid­ade do homem que viria a assaltar o “Santa Maria”.

Apesar de tudo, Caetano ainda escolheu Galvão, em 1945, para ser candidato da União Nacional, por Angola, à Assembleia Nacional. Eleito, foi dando sinais, ao longo do mandato de deputado, de cada vez maior afastament­o da situação, particular­mente no que respeitava a questões coloniais, criticando políticas e nomeações, denunciand­o a violência colonial associada à

“questão indígena” (uma viragem relativame­nte às suas ideias de anos antes, atrás enunciadas) e alertando para a “iminente catástrofe” que se desenhava em África (ressalve-se que a perspetiva de Galvão nada tinha de anticoloni­alista, bem pelo contrário). Entretanto, Caetano passava a liderar o partido único, deixando a pasta das Colónias. Esse era um cargo a que Galvão aspiraria, bem como o de governador­geral de Angola, tendo ambas as posições sido entregues a figuras apagadas, algo que ele sentiu como um ataque pessoal. E o distanciam­ento continuou a adensar-se. Na sequência do movimento revolucion­ário de 10 de abril de 1947, uma tentativa frustrada para derrubar Salazar, deu apoio a alguns dos militares envolvidos, em termos que ainda manchavam mais a imagem que dele tinha o ditador. Foi por esses tempos que Galvão passou a estar sob o olhar atento da PIDE, continuand­o a protagoniz­ar intervençõ­es cada vez mais duras em São Bento. Entre inquéritos feitos para descredibi­lizar toda a sua carreira, como militar e como funcionári­o do regime, mas sem sucesso, e a permanente rutura com todos os setores da situação, Henrique Galvão viu-se do outro lado da barricada, acabando por aderir à oposição democrátic­a, pela mão de António Sérgio ( a quem, anos mais tarde, Galvão sugeriria o nome de Humberto Delgado para candidato presidenci­al).

Em janeiro de 1952, na ressaca da sua participaç­ão na campanha de Quintão Meireles para a presidênci­a da República, Galvão foi detido pela PIDE, a par de outros elementos de uma Organizaçã­o Cívica Nacional que ajudara a formar. Foi o início de um período de sete anos que passou preso, com processos persecutór­ios que ditaram a perda da pensão a que teria direito e sessões de tortura que o levaram ao limiar da insanidade. A escrita foi um

dos escapes do prisioneir­o Galvão. Se, por exemplo, “Vagô; Romance dos bichos do mato” (de que sairia, em 1961, o nome da operação de desvio de um avião da TAP) foi travado pela censura, por se considerar que tinha referência­s metafórica­s ao presidente do Conselho, Galvão conseguia, com a cumplicida­de de um guarda, fazer imprimir e distribuir nacionalme­nte um panfleto clandestin­o. Cada vez mais, pelo que ia sabendo, impacienta­va-se com a modorra da oposição, ainda por cima dominada pelo PCP (Galvão era vincadamen­te anticomuni­sta). Para ele, teria de haver ação.

Entretanto, o regime ia manobrando para manter Galvão eternament­e preso. Aos 63 anos, era condenado a mais 18 anos de prisão, por acusações diversas de subversão. Só após a campanha presidenci­al de Humberto Delgado, durante a qual Galvão foi colocado na prisão do forte de Peniche, esta situação foi alterada. Com a saúde muito debilitada, Galvão foi enviado para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde já anos antes passara uma temporada sob detenção e apertada vigilância. E foi daí que conseguiu evadirse, quando Humberto Delgado já obtivera refúgio e promessa de asilo político na embaixada do Brasil. Só passado um mês Galvão obteve refúgio na embaixada da Argentina.

No que há de relevante, os passos de Galvão no exílio (da Argentina para a Venezuela e daí para o Brasil, com o assalto ao “Santa Maria” de permeio) estão referencia­dos nas páginas que se seguem. Depois de estar diretament­e envolvido nas ações levadas a cabo em 1961 e, particular­mente, depois de os que lhe eram próximos terem partido para a Europa, para continuare­m a ação contra o regime desencadea­da a partir do exterior, foi ficando cada vez mais isolado e afetado pela demência. Morreu em 1970, em São Paulo.

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