O TRIUNFO DA LIBERDADE IBERDADE NAS ÁGUAS INTERNACIONAIS
Nunca a comunidade internacional se apercebera verdadeiramente do problema da ditadura, em Portugal, até ao assalto ao paquete “Santa Maria”, em 1961. O que era visto com alguma tolerância passou a ser contestado, e a decisão das potências aliadas de não
De como o paquete “Santa Maria” se fez, temporariamente, “Santa Liberdade”, colocando nas bocas do mundo a luta contra as ditaduras ibéricas, marcando o início de uma série de ações espetaculares contra o Estado Novo e desencadeando acontecimentos que vieram a provocar a desagregação do regime, tratarão as linhas que se seguem. Mas será curioso começar por dizer que a “Operação Dulcineia”, levada a cabo em janeiro de 1961 por um comando luso-espanhol, resultou, na aparência, da junção de esforços de dois antigos rostos do regime, Humberto Delgado e Henrique Galvão, transformados nos mais perseguidos opositores: Delgado veio a ser assassinado pela PIDE, em 1965, Galvão morreu no exílio, tendo no currículo a condenação a uma soma de 59 anos de prisão.
Os dois cruzaram-se muito antes de coincidirem no objetivo de derrubar Salazar. Ainda Delgado era um importante servidor do regime, já Galvão deixara de o ser. Quando Galvão foi preso, em 1952, depois de transferido para Peniche, em 1957, e noutras ocasiões, Delgado foi o único oficial de alta patente que o visitou. E recebeu do detido, quando o visitou em Peniche, o desafio de se candidatar a presidente da República, que, como é sabido, aceitou.
Henrique Galvão foi a figura cimeira do que, quase parecendo uma aventura de heróis românticos – não obstante ter resultado na morte de um oficial do navio –, acabou por ter fortes repercussões internacionais, não apenas pelo mediatismo da operação, mas também pela resistência de supostos aliados de Salazar a interceder por forma a capturar o paquete pirateado. E ainda, segundo algumas opiniões, esta ação terá contribuído para acelerar os
acontecimentos que, em Angola, levaram à eclosão da Guerra Colonial, consabidamente o mais decisivo dos fatores que levaram à irreversível decadência do regime.
Atrás dissemos que o assalto ao “Santa Maria” resultou de uma aparente junção de esforços, e noutras passagens deste trabalho ficará claro que Humberto Delgado nada teve a ver com o planeamento da operação. Há visões contraditórias, em muitos casos resultantes da memória de intervenientes em todos estes processos, pelo que terão sempre de ser encaradas com precauções. Todavia, não será deslocado invocar uma máxima do inimigo de ambos, Oliveira Salazar: “Em política, o que parece é”. E Delgado legitimou a ação de Galvão na Venezuela, aparentando uma tutela política que servia os seus propósitos. Na sequência do processo eleitoral de 1958, o “general sem medo” entendeu sempre ter conquistado o estatuto de líder oposicionista, embora tal ideia não fosse consensual no heterogéneo universo a que se chamava oposição. Mas foi assim que Delgado agiu desde que chegou ao Brasil, em abril de 1959, encetando contactos com os setores oposicionistas ali presentes (e noutros países da América Latina), bem como com Emilio Herrera Linares, líder do governo espanhol no exílio.
Delgado terá tentado chamar o capitão para junto de si, mas o governo brasileiro recusou-se a conceder-lhe asilo, quando ele estava em Buenos Aires, onde chegara ido de Lisboa. Entretanto, estabelecera- se na Venezuela, país para onde fora convidado por opositores aí exilados e que considerava reunir melhores condições para, a partir de lá, desenvolver ações contra o salazarismo. Como veio a ser o desvio do “Santa Maria”, com o objetivo operacional de rumar a Fernando Pó (uma ilha ao largo dos Camarões que era, então, possessão espanhola e é hoje o maior território insular da Guiné Equatorial, sendo designada Bioko), tomar
aí de assalto um vaso de guerra e rumar com ele a Luanda. Angola seria o ponto de partida para a deposição das ditaduras ibéricas. Mas estamos a avançar muito. Teremos de retratar antes as oposições exiladas e a forma como se chegou ao DRIL, Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação.
O DRIL foi, digamos assim, a base institucional da Operação Dulcineia, batizada com o nome dado por Miguel de Cervantes à amada de D. Quixote e que, por aí, se tornou sinónimo de “amada”, no caso a tão amada Liberdade. Contextualizando, há que ter em conta que a América Latina, mais do que um que um destino preferencial da emigração, era o refúgio dos que se tornavam perseguidos na consequência das convulsões políticas ibéricas, sendo o Brasil, no caso português, a primeira escolha. Veja-se o que escreve a historiadora Heloisa Paulo: “O Brasil sempre foi o destino preferencial da emigração portuguesa e o refúgio de muitos dissidentes dos diversos governos de Portugal: no período do conservadorismo de D. Miguel, acolhe os liberais; quando da República, serve de local de exílio para os emigrados políticos monárquicos. A partir do advento da ditadura em Portugal, o território brasileiro passa a receber os opositores ao regime, que são acolhidos pelos seus compatriotas e companheiros de ideais políticos, mas são olhados com desconfiança pelos membros conservadores da colónia”.
Ao longo dos anos, no século XX, as mudanças políticas no Brasil foram permitindo, ou dificultando, a expressão dos oposicionistas portugueses e a realização de ações de diversa índole por parte destes. E mesmo quando ainda só se adivinhava a queda do Estado Novo Brasileiro, liderado por Getúlio Vargas, que veio a ocorrer no início de 1946, houve um incremento da atividade dos exilados. Por exemplo, em abril de 1945 surgiu uma estrutura designada Comité Português Anti- Fascista, que juntava gente de fações políticas muito distintas, unida pela oposição a Salazar. As mudanças políticas no Brasil também vieram a ser importantes para determinar o desfecho do assalto ao “Santa Maria”, como veremos.
Humberto Delgado, que após as eleições de 1958 manteve ação política e criou o Movimento Nacional Independente (MNI), acabou rapidamente
por ser afastado da Força Aérea e por ficar sujeito à alçada da polícia política, o que o levou a procurar e receber refúgio na embaixada do Brasil em Lisboa, em 12 de janeiro de 1959. Só em abril, ao cabo de um complexo período negocial, foi autorizado a deixar o país e a atravessar o Atlântico rumo ao Rio de Janeiro. E aí começou logo, como atrás se referiu, por contactar esse heterogéneo mundo da oposição no exílio, com a pretensão de unificar o combate contra Salazar. O general nunca viria a conseguir essa união, mas o primeiro momento fez com que se associasse ( mesmo que de forma simbólica) aos propósitos de Galvão, que, estando em Caracas por a influência de Salazar junto do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira ter inviabilizado a sua fixação no Brasil, passou a ter o estatuto de representante do MNI em território venezuelano. Foi nessa condição que negociou com os grupos de exilados espanhóis, encontrando abertura por parte da União de Combatentes Espanhóis, liderada por José Fernández Vázquez (que usava o nome Jorge de Sotomayor), um capitão de Marinha republicano que estivera na Resistência francesa após uma passagem por Portugal, tendo sido preso pelos nazis e estado em regime de trabalhos forçados no campo de extermínio de Auschwitz, na Polónia. A união das duas forças resultou no DRIL.
Galvão e Sotomayor eram, portanto, os chefes operacionais que cada um dos lados (português e espanhol) designou para a operação a desenvolver. O alvo não estava à partida definido como sendo o paquete português, mas os objetivos, que já resumimos, foram ganhando forma. Tomando um navio, o comando revoltoso cruzaria o Atlântico Sul rumo a Fernando Pó, onde se apossaria de material de guerra espanhol ( um navio, pelo menos). Daí o destino poderia ser S. Tomé, ali bem perto, ou Luanda, onde os revoltosos tencionavam estabelecer um governo revolucionário, que em tese seria apoiado por um levantamento da população branca. Galvão, um africanista com larga experiência de Angola, tinha essa convicção e, ainda, a perspetiva de que a revolta facilmente alastraria a Moçambique e daí à metrópole. A ação poderia ser levada a cabo por um grupo relativamente reduzido, o que era desejável atendendo à escassez de meios financeiros que pudessem suportar outras formas de luta, mas teria o caráter audacioso e espetacular pretendido para que os olhos do mundo se virassem para o problema das ditaduras ibéricas.
O plano gizado por Galvão não foi à partida consensual. Não só houve adiamentos de vária ordem, até se chegar à ação em 22 de janeiro de 1961, como a escolha do navio a apresar, em função do pavilhão deste, não era pacífica. Ao selecionarem o “Santa Maria”, uma das jóias de luxo da marinha mercante portuguesa, deram à fação lusa da conspiração o protagonismo político, que os espanhóis também gostariam de ter do seu lado. De facto, se para algum dos países ibéricos os holofotes internacionais ficaram apontados, o que era um dos objetivos da missão, foi para Portugal e para o regime chefiado por Oliveira Salazar.
Todos os meses o paquete fazia escala no porto venezuelano de La Guaira, de onde rumava a Miami. Foi aí que,
em 20 de janeiro, embarcou a maior parte dos elementos que formavam o grupo. Galvão seguiu de avião para Curaçao, onde o navio faria uma primeira escala, embarcando aí clandestinamente. Na noite de 21 para 22 de janeiro, o comando luso-espanhol, formado por duas dezenas de pessoas, tomou de assalto o navio, ocupando pontos estratégicos. Divididos em dois grupos, um às ordens de Sotomayor (os espanhóis), outro comandado por Galvão (os portugueses e dois ou três elementos espanhóis), asseguraram objetivos que, por discrepâncias dos relatos, não podem ser definidos com clareza (sala das máquinas, cabinas dos oficiais, sala de rádio…). Tal não se aplica à ponte de comando do navio, que, como concordam todos os relatos, foi tomada pelo comando espanhol. E aí ocorreram disparos, de que resultou a morte de um oficial, João José Nascimento Costa, o único membro da tripulação que tentou travar os assaltantes. Dois outros oficiais ficaram feridos.
Tentar descrever exaustivamente o que foram aqueles dias a bordo do “Santa Liberdade” é, em termos historiográficos, uma eventual impossibilidade. Sendo vários os registos memorialísticos disponíveis, as discrepâncias entre eles são notórias, não apenas em questões de pormenor, mas na forma como toda a leitura dos acontecimentos condiciona a definição de protagonistas, hierarquias, tomadas de decisões… Isso é particularmente notório quando são cotejados os relatos escritos de Henrique Galvão e de Jorge de Sotomayor, exercício que Heloisa Paulo faz num artigo intitulado “1961: O assalto do Santa Maria e o desmoronar do regime salazarista em Portugal”. Vejase quando se referem um ao outro. Enquanto Galvão tem referências simpáticas a respeito do espanhol, enquanto ex-oficial de Marinha, o que, segundo a autora, traduzirá uma forma de o português chamar a si o protagonismo político da operação e resumir o espanhol a uma condição operacional, Sotomayor refere- se recorrentemente a Galvão em tom e termos depreciativos, o que terá feito com o intuito de atacar em sentido contrário (claro que a escolha de um navio português não foi bem digerida pelos espanhóis).
Quem também escreveu um registo memorialista em que todas estas peripécias estão descritas ( dois volumes sob o título “Andanças para a Liberdade”) foi Camilo Mortágua, que aos 16 anos foi como emigrante para a Venezuela e aí veio a desenvolver a sua consciência política – e a veia de homem de ação –, vindo a tornar-se um dos operacionais mais próximos de Galvão. Dele fica também o depoimento dado à JN História para esta edição, que pode ser lido no fecho deste dossiê.
Nesse depoimento encontramos, também, a leitura dos acontecimentos que não oferecem grandes dúvidas, designadamente no que respeita ao êxito que foi a enorme visibilidade internacional da operação – logo da situação política para a qual essa mesma operação alertava – e o facto de as potências com as quais Salazar contava se terem recusado a tomar de assalto o paquete português, pondo fim àquilo que a propaganda portuguesa tentava enquadrar como um mero ato de pirataria ou crime de delito comum. A ritualização nacionalista imprimida ao funeral do oficial morto fez, também,
parte desse esforço, em desespero de causa, de tentar minimizar o impacto do assalto através da desqualificação dos que o perpetraram.
Os objetivos operacionais acabaram por ser postos de parte quando várias circunstâncias os tornaram inexequíveis. Desde logo, quando o navio foi avistado e, consequentemente, intercetado ( não abordado, note- se) pela Marinha americana. Fatores como um atraso na hora de início do assalto ou a decisão de deixar um dos feridos em Santa Lucia, nas Antilhas, contribuíram para tornar impossível a continuidade da viagem rumo à costa de África, que dependia de uma deslocação furtiva, rápida e sem sobressaltos. Daí que a propaganda anti- regime, que se enquadrava também nos objetivos, tenha passado a ser uma prioridade a partir do momento em que a localização do “Santa Maria” foi conhecida.
Em alto mar, enquanto os assaltantes tentavam ainda perceber que destino teriam, o “Santa Maria” foi recebendo repórteres desejosos de contar ao mundo aquela ação absolutamente inaudita. As comunicações, via rádio, eram uma autoestrada para a propaganda. O impacto de tudo aquilo ultrapassava em muito as expetativas dos envolvidos. E uma mudança de regime no Brasil ditaria o resto: definitivamente, o governo de Lisboa não veria satisfeito o desejo de ver o navio apresado e os assaltantes detidos.
Juscelino Kubitschek de Oliveira, cujo governo havia negado asilo político a Henrique Galvão, deixara o poder, sendo este assumido, enquanto o “Santa Liberdade” vogava pelo Atlântico, por Jânio Quadros, que representava uma mudança radical do posicionamento do Brasil. Quadros visitara Caracas em abril de 1960 e aí mantivera um encontro com dirigentes do DRIL. Claro que, nessa altura, a Operação Dulcineia estava ainda longe de ter forma. De modo nenhum, mais de um ano antes, alguém poderia afirmar que ia assaltar o paquete português. Mas com a operação em curso, ao perceberem que o objetivo operacional estava posto de parte e sabendo que a posse de Jânio Quadros ocorreria em 2 de fevereiro, parece claro que retardaram a entrega do navio até esse momento, para terem a garantia de obter asilo político no Brasil.