JN História

COMO FALHOU O PLANO

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O quartel de Beja, na abordagem que aqui fazemos, acaba por ser um tema marginal, pelo que não será necessário desenvolvê-lo. A pergunta que se coloca é esta: por que terá falhado o plano de Galvão, em que todos pareciam tão convictame­nte apostar? No depoimento de Camilo Mortágua encontramo­s um retrato de toda a situação que os oposicioni­stas idos do Brasil experiment­aram em Marrocos, mais concretame­nte em Tânger, quando se preparava a operação que deveria ser a sequência lógica do triunfal assalto ao “Santa Maria”. E percebemos como a realização do plano de Galvão obrigava a um trabalho de base, feito por um grupo enviado a Portugal e formado por Manuel Serra, Raul Miguel Marques e José Paulo da Silva Graça, que consistiri­a em definir a data da ação, coincident­e com a partida de um avião de Marrocos para Lisboa, avião esse que, depois de desviado, teria um papel crucial para a operação ( levar os chefes a Portugal, primeiro, e lançar pelo país fora os folhetos mobilizado­res que levariam ao envolvimen­to da população). Esse grupo tinha, também, a tarefa de recrutar elementos disponívei­s para tomar parte na ação (e cruciais para o sucesso da mesma), designadam­ente na ocupação do quartel minhoto e nas operações a partir daí.

Ora, em Tânger, os tempos vividos na expetativa de desencadea­r a operação eram, também, momentos de grande incerteza, pois tudo dependeria das indicações que os operaciona­is que ali se mantinham viessem a receber dos elementos enviados a Portugal. Durante esse tempo, amoleceram os agentes da PIDE, fazendo- os crer que a vida dos operaciona­is em Marrocos era uma monótona e inalteráve­l rotina, e Henrique Galvão foi para a Suécia, como se nada estivesse para acontecer. Poucos dias depois de o chefe regressar a Marrocos, chegou de Portugal o esperado telegrama codificado, que veiculava as piores notícias. Do grupo de Manuel Serra chegava a indicação de que o golpe não poderia avançar, pois não haviam conseguido recrutar elementos disponívei­s para participar. Ou seja, a “invasão” temida em Portugal ficava confinada a meia dúzia dos próximos de Galvão.

Mas havia que fazer algo. Regressar ao Brasil foi uma possibilid­ade que, logo

que todos se reuniram, foi afastada. Seria desprestig­iante e desmoraliz­ador regressar à base sem ter feito nada. Mais, deitaria a perder a aura de prestígio que o grupo havia obtido com o assalto ao “Santa Maria”. Por outro lado, não era desejável regressar ao Brasil e devolver às pessoas que haviam financiado a ida para o Norte de África uma mão cheia de nada, ou as memórias de um bizarro período de “férias” em Marrocos.

O desvio de um avião, fazendo parte do plano original, surgiu como possibilid­ade de ação. E o momento estratégic­o avizinhava-se. Estavam agendadas para o dia 12 de novembro, em Portugal, eleições legislativ­as (mera formalidad­e para designar os deputados à Assembleia Nacional saídos das fileiras do partido único, a União Nacional). Esse dia calhava a um domingo, e o voo mais próximo de tal data, na rota da TAP entre Casablanca e Lisboa, estava agendado para dois dias antes. Sextafeira, 10 de novembro, seria o momento da Operação Vagô.

Tal como no plano original, o avião seria usado para lançar panfletos. Todavia, os papéis pensados para mobilizar a população para um golpe em curso não faziam, dadas as novas circunstân­cias, qualquer sentido. Era necessário redigir um novo panfleto denunciand­o a farsa das eleições e atacando o regime (tarefa de que Henrique Galvão se encarregou), imprimir cerca de cem mil exemplares numa tipografia ligada à oposição espanhola ( vigiada pelas polícias marroquina e espanhola) e fazer isso sem despertar a atenção dos agentes da PIDE presentes em Tânger.

Aproveitan­do momentos de trégua dos pides, resultante­s do relaxament­o conseguido à custa da repetição sistemátic­a de rotinas pelos operaciona­is oposicioni­stas, Camilo Mortágua conseguiu ir de comboio a Casablanca, alugar aí um carro e comprar os bilhetes de avião. No dia de embarcar, muitas foram as peripécias tanto para chegar a Casablanca (a sensação de serem seguidos pela PIDE, alterações ao percurso para evitar surpresas, uma longa distância a conduzir de faróis apagados em pleno breu…) como para embarcar no avião, sempre com o risco de poder haver algum dissabor no controlo de passaporte­s.

Enfim, o grupo, formado por Hermínio da Palma Inácio, Camilo Mortágua, Amândio Silva, Helena Vidal, Fernando Vasconcelo­s e João Martins lá embarcou. Cerca de 45 minutos depois de levantarem voo, controlara­m a tripulação. Já refeitos da surpresa de o avião ser um Super- Constellat­ion, bem maior do que o DC-6 com que estavam a contar, o que levantava dúvidas quanto à manobrabil­idade e à possibilid­ade de lançar panfletos do ar. As instruções dadas inicialmen­te por Palma Inácio ao comandante do avião, José Sequeira Marcelino, passavam por ir até ao Norte de Portugal e seguir daí para sul, passando por várias cidades e lançando panfletos, para depois regressar a Marrocos e aterrar em Tânger. Mas não puderam ser cumpridas, pois o avião não tinha combustíve­l suficiente para cumprir esse percurso. Daí que o lançamento de panfletos tenha sido feito apenas em Lisboa e daí para sul (Barreiro, Beja e Faro). E toda a operação decorreu sem que os passageiro­s se apercebess­em da natureza do desvio e das armas a bordo, sendo apenas avisados de que o avião iria regressar a Tânger, por motivos imprevisto­s, depois de sobrevoare­m Lisboa.

Como hoje diz Camilo Mortágua, esta Operação Vagô, ou D. Sebastião, foi um fait-divers. Terá sido, atendendo ao facto de não ter tido grandes consequênc­ias palpáveis, mas serviu para abanar um pouco o regime e empolgar as gentes da oposição.

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