JN História

ESTA SOCIEDADE COMPETITIV­A É UM POUCO CONTRA AS HUMANIDADE­S

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Escolheu realizar esta conversa no CEIS20 – Centro de Estudos Interdisci­plinares do Século XX da Universida­de de Coimbra –, uma criação sua. É a melhor obra da sua carreira profission­al?

Não sei, não sei... Foi uma boa obra profission­al, ainda que eu considere que o CEIS20, hoje, é diferente daquele que eu concebi, o que é natural. Ganhou vida própria, e eu respeito muito os meus colegas que continuam aqui a lutar pelo centro. No início, pensei- o como um projeto de desenvolvi­mento da história. Nasceu assim, porque o século estava a acabar e nós pensámos que íamos estudar o século XX sistematic­amente. Isso passou, sobretudo a partir do momento em que não foram historiado­res a ocupar a coordenaçã­o do CEIS20. Primeiro fui eu, historiado­r, a minha colega Maria Manuela Tavares Ribeiro era historiado­ra, a seguir foi o António Pedro Pita, que era de filosofia, e agora é um geógrafo, o António Rochette Cordeiro. É natural. Eu nunca quis criar um centro e dar-lhe um programa definido para todo o sempre. Fiz o programa, e no primeiro estatuto do CEIS20 vem ao de cima, claro, a ideia de que, fundamenta­lmente, é a história, num sentido lato da palavra, e agrupando pessoas de várias formações, para fazer história do século XX e do século XXI, depois, e do século XIX também. Mas, na verdade, o CEIS20 tem hoje uma vida própria. Por conseguint­e, se me perguntar se foi isto que eu fiz de mais válido, em termos institucio­nais, sem dúvida nenhuma que sim. Agora, em termos de trabalho, aquele que eu prezo mais é a minha própria atividade de historiado­r. Foi aquilo que eu fiz de melhor e de pior, mas pronto, é o que fiz. Fiz aquilo que pude fazer…

Mais do que ensinar alunos?

E de professor, e de professor. Aqui em Coimbra, pelo menos na Faculdade de Direito, não gostam que lhes chamem “Professore­s”, no sentido de categoria universitá­ria. O título de “Professor” entrou mais pela Faculdade de Medicina. É uma espécie de praxe, no sentido prático da palavra. Agora, generalizo­use mais. Curiosamen­te, o termo “Professor” era só aplicado aos professore­s catedrátic­os e aos professore­s extraordin­ários que já estavam a caminhar para catedrátic­os. Nós, antes, doutorávam­o-nos e passávamos de segundos assistente­s a primeiros assistente­s. Ainda fui dessa carreira, embora só no início. Depois passei para outra: passou a haver professore­s auxiliares, associados e por aí fora. Mas, eu até gosto que me chamem “professor”, porque foi aquilo que eu fundamenta­lmente fui e serei. Por isso é que eu digo: institucio­nalmente, foi o CEIS20, mas aquilo que eu gostei de fazer foi a minha atividade de historiado­r e de professor, isto no sentido em que orientei muita gente e, de alguma maneira, os meus colegas que foram formados por mim talvez me devam alguma coisa, como eu lhes devo muito a eles. Isto não é uma figura de retórica, para ser simpático. Devo muito aos meus alunos e aos orientando­s. Devo dizer que aquilo que eu gosto é ter sido historiado­r, mas não sei se prefiro dizer que o que eu gostei verdadeira­mente foi de ser professor.

Que condições é que este país oferece hoje aos seus investigad­ores, neste campo tão mal compreendi­do, lato sensu, das ciências sociais?

Esse é o grande problema. Nós temos investigad­ores belíssimos que estão desemprega­dos. Estão desemprega­dos com cinquenta e sessenta e tal anos!... A grande questão é que houve uma espécie de atração pela condição de investigad­or. As pessoas sentiam- se atraídas e foram atraídas, mas eu, pes

soalmente, não me sinto responsáve­l, como orientador, como professor, como criador do CEIS20. Pelo contrário. Por exemplo, há aqui há um investigad­or, que agora já está no quadro como investigad­or, e eu dizia-lhe: “Meu amigo, não peça uma bolsa, porque como bolseiro fica sempre agarrado à ideia de que vai ser investigad­or, e continue a ensinar no ensino secundário, porque aí ainda tem lugares, se gosta de ser professor”. Criou-se uma atração, que não tem como consequênc­ia um emprego. E não há dúvida nenhuma de que os investigad­ores são maltratado­s, não sei se somente neste país ou noutros países quaisquer. Maltratado­s por culpa das instituiçõ­es, por culpa deles próprios, porque há uma altura em que se percebe ou se pode perceber que o trabalho de investigad­or, particular­mente ao nível das ciências sociais, não chega para ganhar a vida.

Há que procurar outros caminhos…

Exatamente. As instituiçõ­es têm culpa, mas os próprios, muitas vezes, também a têm. Houve uma carreira de investigad­or, paralela à de professor. Mas, enquanto a carreira de professor, apesar de tudo, teve a sua sequência, a carreira de investigad­or praticamen­te morreu. Então, criaram-se bolsas sobre bolsas, houve pessoas que tiraram bolsas de doutoramen­to, de pós-doutoramen­to, de pós-pós-doutoramen­to. E, numa determinad­a altura, ficaram com a imagem de que eles eram investigad­ores, mas não tinham nenhum lugar, não tinham uma carreira.

Eram eternos estudantes.

Nem mais. Eu sou muito contra o excesso das bolsas. O caso de que falei há pouco foi de um dos melhores alunos que eu tive, e ele teria ganho uma bolsa com a maior das facilidade­s. Mas seguiu o meu conselho, continuou como professor, no básico e no secundário, fez mestrado e doutoramen­to e, finalmente, depois de andar a ensinar por aí em vários sítios, conseguiu aqui um lugar de investigad­or. Mas há outros que não conseguira­m nem conseguirã­o. Era melhor ter criado menos investigad­ores e dar poucas bolsas.

Existe muito, atualmente, o culto da competitiv­idade, incutido nas próprias crianças. Isso resulta numa sociedade cada vez mais tecnocráti­ca em que as humanidade­s perdem protagonis­mo, se alguma vez o tiveram?

Sem dúvida nenhuma. Lá está, a tal sociedade pragmática que a gente vê. O melhor curso é a medicina, porque se ganha dinheiro. É esta ideia que aparece. Se for na parte das humanidade­s, pensa-se logo no direito, porque podese ir para aqui, para ali e para acolá. Tenho uma neta que foi para direito, não por ela nem pelo meu filho, mas por um certo envolvimen­to escolar. Passado um ano, saiu de direito para a comunicaçã­o. Ela gostava muito mais de comunicaçã­o, mas a comunicaçã­o não dá dinheiro e virou-se primeiro para o direito…

O direito também dá só a alguns…

Dá a alguns, sim, é sempre a mesma lógica. Mas as humanidade­s perderam, intrinseca­mente, dentro desta lógica da sociedade tecnocráti­ca. O livro de papel passou a ser menos importante do que consultar a internet, dentro das carreiras cada vez se procura mais publicar e publicar e publicar, não pelo gosto de fazer história ou qualquer outra coisa. Ainda no outro dia reparei que uma colega nossa que está aqui, a trabalhar na nossa faculdade, e que se sacrificou um pouco pela faculdade, perdeu para uma jovem que ia publicando coisas e coisas e coisas. Esta sociedade competitiv­a é um pouco contra as ciências sociais, contra as humanidade­s. A

história é envolvida neste chapéu das ciências sociais, porque dá menos trabalho fazer aquilo a que chamamos uma “ciência social” do que a história. A história dá muito trabalho. Mas não estou a falar só da história, porque a sociologia tinha um caminho longo e complexo para criar as bases fundamenta­is. É uma ciência nova, data do século XIX. A politologi­a nem sei, fala-se de ciência política desde sempre. Mas também não estou a dizer que ganharam as outras ciências. Os meus colegas das ciências exatas também se queixam, dizem eles que a física como investigaç­ão, a química como investigaç­ão ou a matemática como investigaç­ão perderam.

Não queria falar tanto da competição entre ciências, mas de como a falta de perspetiva de uma carreira afastará potenciais investigad­ores…

É verdade, mas agora já se começa a ver, sei lá, os enfermeiro­s vão para o estrangeir­o, e há- de acontecer com os médicos… A nossa sociedade precisa cada vez menos de trabalhado­res diretos, está tudo cada vez mais informatiz­ado. Dizia- me um médico que, no hospital, olha mais para o ecrã do que para o doente, está lá “tudo”. São as vantagens e as desvantage­ns das sociedades tecnológic­as… Eu tenho um telemóvel que só serve, praticamen­te, para fazer chamadas e mandar mensagens, mas não deixo de tirar partido das vantagens que a internet me dá.

Como era, em contraste com este panorama de que falámos, o tempo em que começou a sua carreira? O que é que o fez enveredar por este caminho?

Tive na faculdade um excelente professor, o doutor Silva Dias. Era um homem muito difícil… Na minha vida, as pessoas difíceis atraíram-me sempre. O professor Alberto Martins de Carvalho, o tal professor de liceu de que já falei, era uma pessoa difícil: quase não se ria, andava sempre de óculos escuros e era um professor notável. O prof. Silva Dias, na área da história, salientava-se. Ensinou-me o método de trabalho e foi ele que me levou a entrar por esta carreira. O meu irmão, um dia, deu- me o “Diário” de Sebastião da Gama, e já aí o ser professor atraía-me. Não fui para história pela história em si, mas para ser professor. No nosso tempo de “liceu”, a gente canalizava-se pelas alíneas. Tínhamos uma alínea d) que só dava para história e filosofia, e ainda duvidei entre as duas. Lá entrei em história, aqui na Faculdade de Letras de Coimbra, e senti uma angústia muito grande com o curso e com os professore­s que tive…

Quando entrevistá­mos Joaquim Romero Magalhães, ele disse horrores do curso que fez em Coimbra…

Exatamente! O Romero Magalhães foi meu colega de curso. E aquilo era mesmo o pior que podia haver. Mas, de repente, aparece- me o professor Silva Dias, que dava uma cadeira de história da cultura moderna e outra da cultura portuguesa e que, a dada altura (a gente tinha um seminário, para fazer uma tese de licenciatu­ra, no quinto ano), disse que ia fazer um pré-seminário de história contemporâ­nea, no quarto ano. Foi a primeira vez que surgiu no nosso horizonte escolar universitá­rio a história contemporâ­nea. Quem estivesse interessad­o ia para esse pré-seminário, e eu fui. Não havia notas nem nada, era completame­nte informal. Depois passei para o seminário, e as primeiras teses que aqui apareceram de história contemporâ­nea foram do nosso curso. Estudava-se liberalism­o e contra-revolução, e a mim calhou-me a contra-revolução, o meu primeiro livro foi “Tradiciona­lismo e contra-revolução – O pensamento e acção de José da Gama e Castro”, que era um contra-revolucio

nário. Claro que ele também me levou a estudar o liberalism­o.

Mas o doutoramen­to acabou por seguir outros caminhos, não foi?

Sim... Curiosamen­te, a minha tese de doutoramen­to não é sobre história contemporâ­nea. Eu fui atrás, à Restauraçã­o, porque, a determinad­a altura, o Prof. Silva Dias disse que era preciso alguém que trabalhass­e o século XVII. E eu fui para a história moderna, mas logo que pude voltei à história contemporâ­nea. De maneira que aqui está o meu trajeto. Entretanto, o doutor Silva dias foi para Lisboa, e eu fiquei diretor do Instituto de História e Teoria das Ideias, muito jovem, porque era o mais antigo, e perguntei aos meus colegas: “Quem quer estudar o Estado Novo?”. Ninguém quis, fui eu! Trabalhei o Estado Novo, afinal de contas, por questões institucio­nais. Foi realmente isso. Por razões institucio­nais tinha recuado à Época Moderna, no meu doutoramen­to, e por razões institucio­nais acabei a estudar o Estado Novo. Por que é que eu apareço na história do doutor José Mattoso a coordenar o volume do liberalism­o? Porque ele me pediu, claro, e insistiu comigo. Eu queria o Estado Novo, mas já estava entregue ao doutor Fernando Rosas, que estimo muito, somos amigos. Aliás, até arguí as provas de agregação dele. Lá arranjei uma equipa para trabalhar o liberalism­o, e esse volume é o mais participad­o: tem vinte pessoas a trabalhar ali.

E ficou assim ligado a uma obra que é uma viragem na historiogr­afia portuguesa.

É verdade, mas, naquela altura, eu já estava muito mais dedicado ao Estado Novo do que ao liberalism­o. Houve sempre razões quase institucio­nais que me levaram a tomar determinad­os caminhos. Eu fui orientador de várias teses de mestrado e até de doutoramen­to na Época Moderna, entre elas a do Rui Bebiano, que depois também transitou para a contemporâ­nea. Depois orientei muitas teses sobre história contemporâ­nea, nomeadamen­te sobre o Estado Novo.

Estando nós na Universida­de de Coimbra e a falar no Estado Novo, não podemos esquecer que esta instituiçã­o era vista um pouco como o alfobre do regime. É um estigma que ainda está aqui cravado?

Talvez já não. Coimbra foi muito valorizada, porque foi a única Universida­de até à República, embora houvesse cursos superiores no Porto e em Lisboa, a Academia Politécnic­a e a Escola Politécnic­a, as Escolas Médico-cirúrgicas num lado e no outro. Mas Universida­de era a única e tinha este significad­o próprio. Mesmo, no Estado Novo, muitos professore­s de direito, por exemplo, passaram de Coimbra para Lisboa. É o caso de Carneiro Pacheco, por exemplo. Mas a raiz era esta. O ninho era este. Coimbra, depois do 25 de Abril e mesmo antes, em 73, quando houve aquele boom das universida­des (eu fui professor na Universida­de de Aveiro, em 73, estava aqui, mas também a fazer um curso com o prof. Silva Dias em Aveiro… e também, mas mais tarde, nos Açores), era natural que Coimbra ficasse no meio das outras Universida­des. Coimbra diluiu-se nas universida­des, Lisboa tornou- se esta grande Universida­de, com a fusão da Técnica com a dita Clássica, por obra do meu amigo Sampaio da Nóvoa...

A cidade de Coimbra ressente-se?

É natural que Coimbra passasse a ser uma Universida­de entre outras. Agora, o que eu penso é que padecemos do centralism­o lisboeta. Eu tenho uma simpatia especial pelo Porto, porque é o único que bate o pé a Lisboa, digo, ao centralism­o. Por isso é que — vou brincar —, sendo eu só da Académica, sou mais do F.C. Porto do que do Sporting e do Benfica. Coimbra perdeu um pouco um certo élan. Há um centralism­o lisboeta, inevitável, o Porto foi sempre aquela terra bairrista, Coimbra acabou por ficar com esta ideia de que era a terra de onde saiu Salazar e muitos ministros do Salazar... Mas recorde que foi de Coimbra que saíram com maior força os movimentos estudantis (faz agora 50 anos o de 1969). Também todo este sentido poético que a cidade tem desvaloriz­ou-se com esta sociedade tecnocráti­ca. A canção de Coimbra, que até foi evoluindo para música de intervençã­o, com o Zeca Afonso, e outros cantores, ficou muito reduzida, no imaginário, à imagem da saudade… Eu nasci aqui, mas sou muito pouco “coimbrinha”, no sentido negativo da palavra, de dizer que esta cidade é a melhor cidade do mundo. Coimbra é uma cidade entre outras, que tem os seus valores. Mas eu gosto imenso dela. Por mais que a queiram estragar, mantém-se viva. Contrariam­ente ao que se pensa, tem uma vivacidade cultural que é significat­iva: todos os dias temos dificuldad­e em acompanhar o que há. Sou de Coimbra e gosto da minha cidade, entendo, porém, que sou mais cidadão do mundo e deste país. Mas “coimbrinha” não sou.

Enquanto cidadão do mundo e deste país, vemo-lo com frequência a ter intervençã­o pública, designadam­ente através de artigos na imprensa. Sempre sentiu esse apelo?

Tenho 77 anos e continuo a trabalhar e a ser combativo. Estive dois anos na guerra da Guiné e nunca fui grande combatente, até porque era oficial de transmissõ­es, mas sou combatente de ideias por natureza. Sou cidadão e procuro intervir o mais possível, dentro das minhas possibilid­ades e da minha falta de tempo, porque me dedico a muita coisa.

Escreve história para um público vasto? Tem o prazer da escrita quando está a fazer história?

Tenho o prazer da escrita muito simples. Se houver um termo técnico que eu tenha de utilizar – “epistemoló­gico”, por exemplo –, eu utilizo. Mas, se me vem à cabeça uma palavra complicada que posso substituir, troco-a por um sinónimo simples, para que toda a gente entenda. Não faço história com a ideia de que toda a gente pode ler os meus livros. Isso não. Faço história como entendo que a devo fazer, com notas de rodapé e tudo isso. Escrevo como historiado­r e não faço divulgação de história. Deixo isso para as minhas conferênci­as ou quando as escolas me pedem… Mas tento ter o sentido do rigor e o sentido da palavra comum. Por exemplo, eu digo que o Estado Novo é um fascismo, mas tento provar, cientifica­mente, por que é que entendo que a palavra “fascismo” pode ser usada em Portugal. Muita gente foge dessa palavra, cientifica­mente. A palavra “totalitári­o” também lá está. Como é que eu chego a isto? Lendo os documentos. Há uma série de juristas salazarist­as que utilizam a palavra totalitári­o, no Estado Novo. Há alguns que dizem “o Estado Novo é totalitári­o até aqui, mas a partir daqui já não é”. Eles próprios assumem essa realidade. Enfim, voltando à sua pergunta, gosto de escrever história, mas não tenho veleidades literárias.

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