TEMA DE CAPA
Martírio de jesuítas à sombra da guerra religiosa do século XVI
Extensos são os martirológios em que se relatam violentas mortes de padres jesuítas, nos séculos XVI e XVII, tombados ao serviço da fé. Evoca-se aqui um dos mais notórios incidentes, em que 40 missionários portugueses foram assassinados por corsários calvinistas, no tempo das guerras religiosas
No dia 17 de julho de 2017, a homilia da paróquia de Ramalde, no Porto, celebrou “a memória do Bem-aventurado Inácio de Azevedo e seus companheiros de missão, martirizados por corsários calvinistas por serem propagadores do verdadeiro Evangelho e filhos da Santa Igreja Romana”.
Esse acontecimento está quase a fazer 450 anos e teve lugar em pleno oceano Atlântico. Evoca-se neste artigo, com base numa crónica da Companhia de Jesus, que anda publicada.
Os novos apóstolos
Religiosos intelectuais de bela escrita e palavra fácil, os jesuítas entregaram-se a um projeto espiritual que abarcava o mundo, e as partes, próximas e remotas, que constituíam o império português eram bons lugares para o edificarem.
Nasceram em Trento e abraçaram com entusiasmo o espírito evangelizador preconizado pelo Concílio, que decorreu entre 1545 e 1563. Meteram-se ao caminho e embarcaram nos navios com soldados e emigrantes, partilhando sonhos e inquietações e aceitando com resignação as dificuldades, as privações e o sacrifício. Foi uma escolha. Que não se discute aqui, nem se interpreta. Apenas se constata.
À sua maneira, abraçaram uma conceção universalista do mundo. Universalista porque nela cabiam todos os homens, em Cristo e sob a égide de Roma e do Papa. Universalista porque trabalhava ativamente sobre as sociedades, não excluindo ninguém, antes considerando todos os grupos que as compunham, chegando-se a eles pela palavra e pelo ensino; ao contrário das outras congregações religiosas, não construíam conventos, mas preferiam fundar colégios, e os seus templos eram autênticas praças públicas que convocavam à audição das suas pregações. Falavam para a gente e procuravam compreender a gente exortando-a às boas práticas e exercícios espirituais e, claro, convertê-la, quando isso se impunha. Chegavam-se a ela, misturavam-se com ela onde quer que fosse: nos Himalaias, no Japão, na China, em África ou no Brasil. Chamavam-lhes apóstolos, e era assim mesmo que eles se sentiam e se assumiam.
Fizeram-se místicos e influentes. E despertaram paixões. As mesmas que os tornaram poderosos e praticamente os destruíram, três séculos depois de terem nascido; fizeram-se “Companhia”; companhia de Jesus, bem entendido, e Eduardo Lourenço definiu-a como “uma das mais espectaculares e polémicas aventuras espirituais que o mundo moderno conheceu”.
Nesse tempo de ambientes e sentimentos exacerbados, nessa época de descoberta do mundo, a motivação que elegeram foi a “causa de Deus”. Por ela militaram e por ela, tantas vezes, caminharam para o martírio. Porque no martírio entendiam imitar Cristo. E, assim, era na entrega da própria vida que encontravam a palma da sua glória. Não exatamente da sua glória, mas da glória divina.
Houve muitos mártires na história desta organização religiosa. Nos séculos XVI e XVII abundaram estes episódios trágicos, repetidos à exaustão na copiosa literatura da irmandade, dada à estampa na Época Moderna. Outra vez: coroas de glória, que iam criando a hagiografia da Companhia, prestigia
vam os padres e tinham o condão de atrair às suas hostes hordas de novos e empolgados noviços desejosos de encontrar destino igual. Os mártires do Japão, sucessivamente desde a década de 1540 e até meados do século XVII. Ou os mártires do Paraguai. Ou os do Brasil. É destes últimos que falarei aqui.
A importância do Brasil
“Relação da gloriosa morte do Padre Inácio de Azevedo da Companhia de Jesus e seus companheiros, que foram mortos pelos hereges no ano de 1570 indo para o Brasil”. Assim se nomeia o relato dos chamados “Mártires do Brasil”, que integra o manuscrito N.º 554 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, publicado em 1942 sob o título “Memorial de várias cartas e cousas de edificação dos da Companhia de Jesus”. Seguirei de perto esta narrativa e, com o calvário dos Jesuítas em pano de fundo, tentarei extrair dela assuntos relativos à navegação e construção de interesses europeus no Atlântico: a navegação, os portos, as mercadorias, a pirataria, a competição.
É o que vale o episódio de Inácio de Azevedo e dos seus irmãos para a história daquele oceano. Assim mesmo: contado à maneira das tragédias gregas, onde todos os indícios apontam para o fim inevitável e fatal. E é por esse caminho que sigo. Aquele que nos mostra que se vivia, então, a certeza da importância do Brasil para um reino que até ali assentara a sua fortuna no Oriente, embora este se transformasse, cada vez mais, num palco de ambições pessoais e num sorvedouro de fundos do estado e de vidas portuguesas. Ideia de decadência, profeti
zada pelos poetas, e que fez despontar em muitos espíritos a convicção de que o futuro estava não na Índia, mas no outro lado do Atlântico.
Na história do Padre Inácio não há coincidências. Se o apóstolo tudo fez, em Roma e na Corte, para lhe aprovarem a missão em terras de Vera Cruz, onde pretendia fundar “muitos colégios da Companhia”, não ia para lá às escuras. Azevedo nascera e crescera numa cidade, o Porto, que com os restantes portos vizinhos estava, então, a descobrir o negócio atlântico, no qual pontificava, sobre todos os outros, o do Brasil; o Brasil do corante vermelho extraído da madeira que lhe deu o nome, do algodão e do açúcar e de tudo o que girava em seu redor, como o tráfico de escravos, a circulação de capitais e os jogos de interesses nas maiores praças económicas da Europa. Acostumara-se a ver fazer navios na praia de Miragaia, a vê-los partir e chegar das paragens atlânticas em cada vez maior número. Em 1566 embarcara num deles e travara conhecimento com a terra de Vera Cruz. E encantou-se com ela, ficando com a certeza de que seria ali que cumpriria o seu apostolado. De regresso a Portugal e à Europa, logo tratou de tornar o sonho realidade.
O sacerdote percebia como os negócios cresciam e os mercadores prosperavam, como se começavam a esboçar novos mundos e, com eles, novos horizontes de evangelização. Não por acaso, para além do Rei, “que muito folgava em gastar nessa obra”, naquela que podemos interpretar como uma deferência dos cronistas jesuítas para com Coroa tão pouco amiga de abrir os cordões à bolsa, Azevedo pudera contar com o dinheiro de “homens ricos”,
que de bom grado o ajudaram, tanto por convicção como investindo numa segurança que nem a todos valeu no futuro. Porque, na sua maioria, estes construtores do Atlântico eram cristãos-novos, e a relação que mantiveram com os jesuítas é algo que merece ser mais bem investigado.
Em 1569, Inácio de Azevedo garantira tudo aquilo de que precisava para o seu projeto. Dinheiro da Coroa e dos patronos mercadores, um navio para o levar, licenças do Papa Pio V, mais indulgência plenária em letra de forma, “para ir servir a Deus no Brasil”. Mas levava na bagagem ferramentas muito mais importantes, espirituais, indispensáveis para a obra que o esperava entre os gentios: relíquias que começavam com uma “cabeça das Onze Mil Virgens”, passavam por “ossos e braços de santos” e terminavam num “lenho da Cruz”, Agnus Dei, imagens e crucifixos, retábulos e muitas outras peças “que não tinham preço”. No entanto, nenhuma destas alfaias valia mais do que um retábulo da Virgem que o nosso padre tudo fez para possuir. Um retábulo muito especial e bem conhecido dos historiadores da Arte: a Virgem de São Lucas, “que foi coisa muito para estimar”, executado por um dos mais “insignes pintores que então havia em Roma”. Tal peça tinha de ser partilhada, que é como quem diz reproduzida, e oferecida a várias instituições dignas de a possuírem. Para tal, Azevedo fizera-se acompanhar de um irmão aragonês (João de Maiorga), “excelente pintor”, que enquanto esteve com ele em Lisboa à espera de embarque produziu quatro retratos “muito bem tirados”, um para o Brasil, outro para o Colégio de Coimbra, outro para o de Évora e o
último para o de Santo Antão, em Lisboa. O original ficaria, a pedido da rainha, na Casa de São Roque, também em Lisboa, onde os irmãos planearam a maior parte da viagem.
Não quero perder muito mais tempo com os preparativos desta empresa religiosa, que foram intensos quanto ao adestramento do corpo e do espírito dos padres, e constituem um bom exemplo da organização das práticas missionárias da congregação na Época Moderna. Direi apenas que, entre teólogos, artistas acabados de formar, “capazes de ler humanidades e artes”, e irmãos recentemente admitidos na congregação, juntaram-se mais de setenta pessoas desejosas de acompanhar Inácio de Azevedo ao Brasil e “abraçar a cruz e os muitos trabalhos que lá os esperavam”. Para alguns seria a última viagem da sua vida. Da sua vida terrena, bem entendido, que, como repetidamente afirmavam, pouco lhes importava.
Entretanto, em Lisboa, manifestavase um rebate de peste. A maior do século, uma das mais mortíferas da história desta epidemia. Inácio e os seus – como todos aqueles que tinham condi
Para alguns seria a última viagem da sua vida. Da sua vida terrena, bem entendido, que, como repetidamente afirmavam, pouco lhes importava
ções materiais para o fazer – abandonaram a capital e procuraram ares mais sadios na Quinta de Vale de Rosal, ainda existente, na Charneca de Caparica, concelho de Almada. Entre o Colégio de Santo Antão e Vale de Rosal, os jesuítas ficaram cinco meses. Cinco meses de impaciência, à espera do navio que os haveria de levar ao Brasil, e que tardava em chegar do Porto.
Os Jesuítas e a história do Atlântico A partir daqui, cruzo o episódio dos jesuítas com a evolução do mundo atlântico no início da Época Moderna. Um Atlântico que, com os navios e mercadores ibéricos, integrava e enriquecia o processo de globalização que então se iniciava, passando a ser um espaço onde se jogavam muitos interesses: controlo de rotas de navegação; controlo de áreas económicas na costa africana, Ilhas e Américas, concorrência entre os reinos europeus e afirmação do seu poder.
Ao contrário do que acontecia até aí na Rota do Cabo, ou da Índia, a navegação no Atlântico era livre para os agentes marítimos nacionais. Que, embora gostassem de não ter concorrentes, não conseguiam evitar que as suas rotas fossem percorridas por navios de diversas nacionalidades, apesar de as coroas de Portugal e Castela tentarem impedi-lo através de armadas de patrulhamento, cuja principal missão era vigiar, principalmente, o movimento em redor das Ilhas, onde era assídua a presença de intrusos em busca dos navios ibéricos que as demandavam, como escala ou destino das suas viagens.
Azevedo fretara uma nau para levar a comunidade ao Brasil. Contratara o
serviço na sua cidade natal, o Porto, reservando metade do navio, o que é bastante significativo, pois neste tempo era habitual repartir o espaço das embarcações por dezenas de pequenos e grandes mercadores. Esperava a chegada do navio em Lisboa a tempo de seguir viagem integrado na armada do novo governador, D. Luís de Vasconcelos, logo, mais protegido.
Como foi assinalado, a nau tardava em chegar a Lisboa. Adiante explicarei porquê e por que era tão importante para a missão. Os padres desesperavam e rogavam a Deus pela sua arribada; de tal forma, que chegaram a incluí-la nas preces que faziam durante os exercícios espirituais a que se dedicaram como preparação para as privações que os esperavam no sertão brasileiro. A 15 dias da partida, e sem notícias do navio, estavam todos “bem magoados e sentidos, mas conformes à vontade de Deus”, já resignados com o facto de que não viajariam “na desejada nau do Porto”, mas antes iriam distribuídos pelas restantes embarcações. Enganavam-se. Quando já repartiam a matalotagem (“o fato”) e se aprestavam a subir a bordo, entrou no Tejo a nau do Porto. A notícia alvoroçou os jesuítas, e nenhum escondia o contentamento que lhe ia no espírito. Mas podemos interrogar a natureza desse sentimento: alegria porque finalmente chegava o navio no qual haviam determinado ir ao Brasil? Ou porque chegava, enfim, a nave que os conduziria ao martírio? Ouça o leitor as palavras do cronista. E julgue-as: “Davam graças a Deus pela mercê que lhes fizera por lhes trazer aquela nau ainda a tempo que pudessem ir nela para o Brasil com tanta alegria; e tanto era o desejo desta nau que parece que já nas suas almas adivinhavam o que somente Deus sabia e determinava: que nesta nau haviam de navegar para o Céu e não para o Brasil”.
Um navio feito Colégio
Cheguemos agora à nau. Já sabemos que era do Porto e ali fora fretada. Chamava-se “Santiago” e não era a primeira vez que viajava para o Brasil. Por que estavam os padres tão desejosos da sua chegada? Porque, no Porto, Inácio de Azevedo havia solicitado ao armador profundas modificações no navio, de forma a servir os propósitos da viagem da congregação.
Temos por costume ver os navios como estruturas imutáveis que, uma vez saídos do estaleiro, mantinham as mesmas linhas até ao dia em que naufragavam ou, pura e simplesmente, chegavam ao fim da sua vida útil, sendo então abatidos ao serviço. Não era assim! Mudavam as velas consoante as rotas que seguiam, adaptavam a estrutura para receber artilharia ou retirá-la quando o percurso não justificava irem armados, transformavam constantemente os espaços adaptando-os à carga que levavam, nesta ou naquela viagem. Neste caso, os carpinteiros do estaleiro tiveram muito trabalho para responder aos pedidos do padre Inácio. Aquilo que ele solicitou acabou por transformar a embarcação – ou grande parte dela – num autêntico “colégio tão bem ordenado” como se fosse em terra. O espaço por ele fretado teria de ser mudado para responder ao quotidiano dos jesuítas e “assim se fez, porque como tinha fretada a metade daquela nau, e toda, do mastro até à popa levava por sua debaixo de tolda e debaixo
de coberta onde tinha mandado fazer seu dormitório com câmaras de um lado e de outro; de ao pé do mastro até à câmara do leme ficava livre um espaço semelhante a um corredor, que era o refeitório; e tinha ali mandado pôr uma mesa de uma só tábua, tão comprida que tomava toda esta área de ao pé do mastro até à popa; esta tábua levantava-se e baixava-se com um engenho de cordas sempre que era necessário”. E até um sino seu colocaram – havia sempre um sino nos navios – para despertar os irmãos, chamá-los às refeições e às lições. Mais ainda. Pois se ali não faltavam “todos os ofícios ordinários, penitências, culpas e disciplinas”, também não faltavam “cozinheiro, refeitoreiro, enfermeiro, boticário e sacristão”. Na véspera da partida, a nau ainda sofreu mais alguns ajustes. Mal entraram no navio – e tal estaria, decerto, combinado – Inácio tomou posse do fogão da nau e mandou-lhe fazer um “repartimento” de tábuas, “de maneira que ficou fechado do lado de fora para os da nau, e aberto da parte de dentro para os Jesuítas”. Sem surpresa, os padres tornaram-se os cozinheiros ao serviço de todos quantos seguiam a bordo. E outros irmãos, que sabiam coser, também se afadigaram no conserto das velas.
A narrativa dá-nos mais uma informação importante relativamente aos ritmos da navegação. Se é certo que os jesuítas embarcaram, tiveram ainda de esperar pela partida já acomodados no navio, pois havia que terminar o apresto de todas as embarcações e esperar maré favorável. E assim se confirmou: “Ao cabo de dez dias em frente a São Jorge e Santa Catarina, deu-lhes Deus o bom tempo que desejavam”. E logo se fizeram ao mar sete naus e uma caravela, na companhia do governador. Este, D. Luís de Vasconcelos, seguia numa nau da Índia, “grande e formosa”, a capitânia da expedição, “que levava o farol e a bandeira na gávea”, que os restantes deviam seguir. A nau “Santiago” era a segunda no comando (sota-capitânia) significando com isso que se tratava de navio de bom porte e bem apetrechado, sabendo-se que levava artilharia e pelo menos 30 homens aptos a combater, o que não era mau para um navio mercante daquele período.
Acrescente-se mais um dado a esta armada, que tinha como primeira escala a Ilha da Madeira. Entre as naus ia uma chamada A nau dos Órfãos, precisamente por “levar muitos meninos que ficaram órfãos e desamparados no tempo da peste, os quais El Rei mandava que levassem ao Brasil e amparassem lá para povoarem a terra”. Habitualmente, fala-se dos degredados e do seu peso no povoamento deste território; aqui, obtemos um elemento precioso sobre esta história de construção de um novo espaço atlântico.
Não faltavam crianças para encher esse navio; e justificar-lhe o batismo informal. Iniciada em junho de 1569, a peste foi a mais devastadora que a cidade de Lisboa conheceu. O povo chamou-lhe a “Peste Grande”, e os físicos e boticários dedicaram-lhe vários escritos, contendo “advertências para se evitar a peste”. Durou até à primavera do ano seguinte – nas vésperas da expedição – e terá matado várias dezenas de milhares de pessoas. Fala-se em 60 mil vítimas! As instituições responderam como puderam a esse flagelo, devendo assinalar-se, de qualquer forma, a rapidez e o modo prático, para a época, com que lidaram com o caso. As mortandades deixavam ao abandono centenas de crianças e jovens, que eram expeditamente arrebanhados pelos conhecidos “pais dos meninos” (oficiais camarários nomeados para tomar conta dos órfãos) e metidos nos barcos que estivessem para partir, esperandose que sobrevivessem e ajudassem a povoar os lugares do ultramar.
A caminho da Madeira, os padres fizeram do navio um modelo de devoção. Faziam sempre, tentando chamar os rudes homens do mar àquilo que entendiam ser exemplares comportamentos cristãos, trocando a leitura de autos e outras obras profanas por literatura doutrinária e realizando todo o tipo de cerimónias religiosas, incluindo missas, procissões e outras festas da Igreja, com altares armados no alto do castelo da popa, decorados com as imagens e ornamentos que levavam.
Os negócios das Ilhas
A nau demorou-se quase um mês na Madeira, e os jesuítas foram-se revezando nas visitas ao recém-fundado Colégio do Funchal. Dessa ilha, a armada do governador seguiria diretamente para o Brasil. Mas a nau “Santiago”, não. À semelhança do que acontecia com tantas outras naus portuguesas que frequentavam esta rota, o navio tinha prevista outra escala (a principal) na Ilha de Palma, nas Canárias, “porque ali haveria de descarregar boa parte da carga que levava e tornar-se a carregar para o Brasil”.
Trata-se de uma história de cooperação entre os agentes e espaços ibéricos no oceano, que persistiu, independentemente dos contextos de amizade
ou confronto e rivalidades políticas que pautaram as relações entre os dois reinos. Raro era o navio que não escalasse nas Canárias antes de descer o Atlântico. A navegação entre os dois arquipélagos era fácil, mas não isenta de problemas, sobretudo porque naquela altura “andava o mar muito perigoso de corsários”. Independentemente disso, o mestre decidiu cumprir o rumo que tinha planeado. Apesar das dúvidas que o inquietavam, verbalizadas em algumas conversas sobre o caso, Inácio de Azevedo optou por seguir com os seus no navio; porém, antes da decisão final reuniu os irmãos, avisando-os do “grande perigo e quão grande dificuldade havia em passar dali a Palma porque aquele mar comummente e por aquele tempo estava muito infestado de ladrões franceses e hereges, e naquele ano andava o mar coalhado deles; e por isso que todos haviam de ir preparados para darem a vida por amor de Deus”. Aceitaram todos esse destino “com grande ânimo para morrerem”, à exceção de quatro, que pediram licença para sair da nau e ficar em terra e que, de acordo com o autor do relato, não permaneceram muito mais tempo na Companhia. Porque nesta, segundo o seu parecer, não havia lugar para quem não desprezasse os temores perante os inimigos e cumprisse somente a vontade de Deus.
De resto, ao longo da viagem, Inácio de Azevedo vaticinava repetidamente o fim às mãos “de uns franceses que nos cortassem as cabeças”. Podia ser apenas um mau-agouro mas o inimigo era certo e de todos conhecido.
Um dia, Francisco I, rei de França (1494-1547), com ironia, pediu que lhe mostrassem o “testamento de Adão”, que o excluía da partilha do mundo a descobrir, decidida por portugueses e castelhanos em Tordesilhas, curiosamente um tratado celebrado no ano em que nasceu. Com isso, declaradamente desafiava as potências ibéricas no Atlântico, fornecendo o incentivo que faltava aos aventureiros franceses dos portos da Normandia e da Bretanha, que de imediato se fizeram à vela, dando caça a todos os navios portugueses e castelhanos com que se cruzavam. Foram tantos os ataques e tantas as presas que certas zonas do oceano (as Berlengas, o Cabo de São Vicente e todos os mares adjacentes às Ilhas) se tornaram cenários de uma persistente guerra marítima que, entre assaltos de corsários e piratas, mais ou menos cruéis, tomadias de navios e tripulações e consequentes represálias, deu origem, até, à criação de tribunais de presas e a embaixadas que tiveram grande influência na evolução das relações internacionais.
Embora o pico dos ataques já tivesse passado, a complicada situação do reino de França, dividido entre a Reforma luterana e calvinista e a obediência a Roma, facilitava a rebeldia de alguns portos, como La Rochelle, bastião dos protestantes franceses (huguenotes), cujos armadores escolhiam caminhos que lhes permitissem aventurar-se no mar à cata de presas. Jaques Soria era um deles (Jacques de Sores, na verdade, mas mantém-se a grafia usada ao longo do documento). Vinha, precisamente, de La Rochelle e andava no encalço da melhor: o navio do novo governador do Brasil.
Voltemos a bordo da “Santiago”. Depois de sete dias de viagem até Palma, a nau chegou a Tazacorte e ali esperou
tempo para dar a volta à ilha e demandar o porto de Santa Cruz. Os portugueses foram recebidos por um “fidalgo flamengo muito rico” que ali vivia. E a ocasião foi de muito celebrar, pois descobriu-se que Inácio de Azevedo fora amigo de infância desse homem, chamado Melchor de Monteverde y Pruss. Mas, neste tempo, os caminhos do Atlântico eram tudo menos fortuitos: a família Monteverde tivera casa no Porto, e os pais de Inácio e de Melchor eram amigos. Não sabemos quantos anos estes flamengos viveram no Norte de Portugal, mas sabemos que os seus negócios obedeceram ao padrão que suportou esta primeira economia atlântica: relacionamento entre portos. Os Monteverde negociaram, entre outros, no Porto, Lisboa e Sevilha, antes de avançarem para as Canárias onde, naquele lugar de Tazacorte, foram dos primeiros a impulsionar a cultura do açúcar. Uma das coisas de que precisavam era de escravos para trabalhar nos engenhos, e foi, igualmente, pelos portos portugueses, e pelas relações destes com os mercados africanos, designadamente Cabo Verde, que se abasteceram. Finalmente, a promoção dos contactos inter-ilhas e, neste caso, articulando os interesses atlânticos de Portugal e Castela. Monteverde, de resto, serviu aos jesuítas várias merendas de “coisas doces da ilha da Madeira”.
Os piratas fazedores de mártires Aproxima-se o capítulo final desta história trágico-marítima. Apesar de insistentemente desaconselhado pelo amigo a viajar por mar para Santa Cruz, e de ter chegado a convencer-se, Azevedo mudou de ideias e tornou a embarcar, convencido que de todo o mal
A divisão, em França, entre a Reforma luterana e calvinista e a obediência a Roma facilitava a rebeldia de portos como La Rochelle, bastião dos protestantes
que os franceses pudessem fazer “era nada”. Monteverde sabia do que falava. Tal como previra, rodear a ilha demorou muito tempo. Ao quinto dia, e com o destino a cerca de duas, três léguas, a gente da nau foi sobressaltada com o grito do marinheiro que vigiava na gávea, avisando que se aproximava uma vela grande, e logo mais quatro menores. Era um sábado, dia 15 de julho de 1570.
Ainda se acreditou que se tratava da armada do governador. Mas não era. O destino reservava-lhes encontro com Jaques Soria, “um famoso corsário, capitão da Rainha de Navarra (Joana III, mulher do duque de Vandôme), o qual professava ser capital inimigo dos católicos”. E, como se não bastasse, era pirata experiente e conhecedor daquelas paragens: “Muito antigo neste ofício – escrevia o cronista – porque fora já em outro tempo sota-capitão de Pé de Pau quando saqueou a Ilha de Palma”. Era a sina das gentes das Ilhas. Viver em constante desassossego. Recolher as pratas das igrejas (fala-se disto neste episódio) e os bens mais fáceis de levar a cada rebate dos sinos, e refugiar-se nos montes, de onde viam os corsários desembarcar, roubar o que pudessem, cativar os mais incautos e voltar ao mar.
Além de experiente, Soria vinha bem equipado. Capitaneava um galeão, que também tinha que contar; porque não eram só os ibéricos que construíam bons navios. Chamava-se “Príncipe” e era um híbrido, porque “fora feito de uma nau levantisca veneziana a modo de galeão”. Aos jesuítas que seguiam na “Santiago” parecia uma torre; aos homens do mar talvez não tanto, mas, indiscutivelmente,
para um navio que infundia respeito. Apesar disso, os marinheiros portugueses não se encolheram. Pelo contrário, dispuseram-se imediatamente para a luta, desenganando-se de que teriam o auxílio dos jesuítas pois estes recusavam-se a brandir outra arma que não fosse a palavra (de Deus). Ainda assim, tentaram. À vista do perigo, o capitão falou com o padre Inácio, pedindo-lhe os irmãos mais fortes (“os mais bem dispostos”) para lutarem a seu lado; inutilmente; os jesuítas não o fariam. Alguns (que até se haviam mostrado dispostos a combater) voluntariaram-se para andar entre eles animando-os a defender a Fé Católica e a Igreja de Roma durante a refrega. No momento, é provável que os mareantes preferissem defender coisas mais comezinhas, como a vida, a carga e a nau. Tinham, porém, consciência de que dificilmente o conseguiriam. E, provavelmente, também não os animaria muito o discurso que ouviram o padre Inácio dirigir aos companheiros, garantindo-lhes; “Hoje, este dia, havemos de ir povoar um colégio no Céu”. E os primeiros a cumprir esse destino foram precisamente os que ficaram no convés, que viriam a ser trespassados e abatidos um a um pelos piratas.
À pressa, a nau “Santiago” foi modificada pela última vez pois os homens “desmancharam logo o refeitório dos padres, para nunca mais tornarem a comer nele, para assestarem a artilharia e terem desimpedida a serventia dela”.
O confronto teve tudo aquilo que esperaríamos ver num velho filme de aventuras: piratas assustadores, abalroamentos, fogo de canhões, abordagens, fuzilaria, e muita luta corpo a corcom espadas e lanças. À boa maneira mediterrânica, o galeão francês investiu contra a nau para a abalroar, com o duplo objectivo de a fender ou danificar o mais possível e possibilitar a abordagem, que era a finalidade principal dos combates no mar (apesar da artilharia) em toda a era da navegação à vela. Ao mesmo tempo, descarregou as suas peças para neutralizar a artilharia portuguesa (“para amainar a nossa artilharia”), mas não o conseguiu à primeira; pelo contrário. Chegando-se à nau, levou com todo o fogo que ela tinha, “que lhe matou um bom golpe de gente”. Precipitadamente, o patrão do galeão e dois franceses, bem armados, saltaram a bordo e correram toda a xareta (os bordos da parte de cima do convés) até à popa, lutando com quem se cruzavam até que foram mortos pelo mestre, piloto e calafate, e os corpos lançados ao mar. Pagariam caro por esta pequena vitória pois o capitão francês haveria de vingar a morte do seu oficial, mandando degolar piloto e calafate e lamentando que o mestre tivesse morrido durante o assalto, escapando ao castigo que lhe tinha reservado.
Da segunda vez, a abordagem foi bem-sucedida. E os portugueses, “mal armados, com capas e espadas e com algumas rodelas e lanças” tiveram de se haver com 50 franceses bem equipados com “espadas, lanças e muitas espingardas”.
O combate foi duríssimo e prolongou-se por várias horas. Jaques Soria assistiria do galeão, e os restantes navios franceses nem sequer chegaram a participar.
Lutavam os marinheiros e berravam os jesuítas designados para os animar, à cabeça dos quais estava o padre Ináolhavam cio, empunhando o quadro da Virgem, que levantava incessantemente mostrando-o “aos hereges franceses”. Os restantes companheiros ficaram debaixo da coberta, numa cabina, rezando e esperando pela morte que, já o sabemos, tinham por certa. E não se enganaram.
A partir daí, é uma sucessão de mortes de apóstolos que o anónimo autor da narrativa (que lhe foi ditada em primeira mão pelo irmão João Sanches, o único padre que os franceses deixaram vivo, porque era moço e sabia cozinhar) descreve uma por uma, pintando, como quadro de fundo, um cenário de fuzilaria, cutiladas e berros de combatentes.
A morte que mais impressionou, ponto central de todo o relato, foi, como não podia deixar de ser, a de Inácio de Azevedo: “Em todo este tempo o padre Inácio de Azevedo não cessava, no meio da peleja, de dar claro e manifesto testemunho da sua fé, estando sempre fixo no mesmo lugar e evidente a todos os inimigos, onde todos os hereges o viam e ouviam e lhe viam também a imagem da Virgem gloriosa Nossa Senhora que tinha nas mãos; a qual ele mostrava como insígnia de sua confissão e somente com ela sem nenhumas outras armas […] continuadamente gritando que andavam errados e que a verdadeira fé era a da Igreja Romana […] e aos nossos esforçava que defendessem a Fé Católica e morressem como bons cristãos […]. Os hereges andavam já muito raivosos e com vontade de chegar a ele. E estando assim berrando um deles, livre dos nossos, arremeteu a ele e lhe descarregou uma cutilada pela cabeça e lhe acertou bem pelo meio, com tanta fúria, que lhe fenpo
deu a cabeça até lhe aparecerem os miolos; a qual ele esperou tão firme e constante, sem afastar corpo nem cabeça como se estivera ali pregado. E logo após esta cutilada lhe deu três ou quatro estocadas com as quais no mesmo lugar caiu sem nunca dele se afastar passo até cair”. Morreria na cabina, abraçado aos irmãos que em baixo ficaram, entre “grandes choros”. Os franceses lançariam o seu corpo ao mar. Fizeram o mesmo aos restantes Jesuítas, atirando-os vivos, mortos ou moribundos. No total, foram 39 padres ao mar acompanhando o irmão Inácio; um deles nem sequer era jesuíta: os franceses confundiram-no e ele deixou-se ir, juntando o seu destino aos irmãos que ganhou com esse sacrifício.
Foi, em conclusão, um episódio bastante violento e elevou as vítimas à categoria de mártires da Igreja, em geral, e da Companhia, em particular. Um episódio violento, de uma crueldade que só tem explicação no contexto das guerras religiosas que abriram profundas feridas na Europa dos séculos XVI e XVII e demoraram a cicatrizar. Dois anos depois deste episódio começavam em Paris as matanças da noite de São Bartolomeu, perpetradas pelos católicos franceses. Curiosamente, entre os homens do mar as coisas correram de forma muito mais tranquila. Apesar da luta, e com exceção dos portugueses que foram executados em castigo pela morte do patrão francês morto no primeiro assalto, depois do combate os franceses e os nossos conviviam como homens que partilhavam uma profissão, anseios e problemas: “e foi coisa notável que aos outros que não tinham por padres nunca os fizeram dar à bomba [depois de tomada a nau per
cebeu-se que ela estava em risco de afundar e metia água] mas antes os tratavam sempre depois da peleja como companheiros e amigos, e parecia que ganhavam perdões em aperrearem os da Companhia”.
Enfim, depois do combate, dos muitos castigos dados aos religiosos e da sua morte, depois de destruídas as relíquias e atirada ao mar a imagem da Virgem, depois de repartidas algumas peças mais ricas entre as quais “uma agulha de marear com uma Santa Maria Madalena pintada no espelho”, a nau “Santiago”, que fora colégio de jesuítas, tornou-se navio corsário. Andou cinco meses “pela costa de Portugal, Algarve e Galiza”, tempo durante o qual tomou quatro navios portugueses e seis de outras nacionalidades. No fim do ano, entrou com as presas que restavam e a armada de Soria em La Rochelle, onde a rainha de Navarra se inteirou do sucedido, censurando, ao que parece, o comportamento violento do seu capitão. Mas também o tempo do navio chegava ao fim. Desgastada de tantas viagens e dos combates que travou como pirata naqueles cinco meses, daria de si quando estava ancorada naquele porto huguenote, não sem antes reservar uma última surpresa aos seus captores: em lugar de um barril de ouro que o piloto do navio, para tentar salvar a vida, revelara que se guardava ao pé do mastro grande, Joana de Navarra, que para tal subira à embarcação, encontrou apenas um barril com pratos de estanho que os padres levavam para o Colégio do Brasil. Logo depois abriu-se-lhe o casco e a nau afundou. Não há notícia de que alguma vez tenha sido encontrada.