JN História

ENTREVISTA

ARMANDO LUÍS DE CARVALHO HOMEM

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Armando Luís de Carvalho Homem

Figura da escola do Porto, a que está ligado o essencial da sua carreira enquanto docente e medievista, é mais historiado­r do que professor, embora tenha marcado gerações de estudantes, que o reconhecem pela erudição, pela memória – mítica no meio académico – e pela originalid­ade expositiva

Fez-se e consagrou-se historiado­r na Faculdade de Letras da Universida­de do Porto, aí ensinando até à aposentaçã­o, mas foi na Universida­de Autónoma de Lisboa, a que continua ligado e na cidade onde reside há anos, que se deu o reencontro entre professor e aluno traduzido pela conversa aqui vertida. Armando Luís de Carvalho Homem, figura cimeira na reabilitaç­ão e reconstruç­ão da história política medieval de Portugal, num tempo em que o económico e o social se impunham como moda, continua igual a si próprio: enciclopéd­ico, direto, desconcert­ante, estimulant­e e eleganteme­nte fleumático.

Estando a falar com um medievista, tenho a tentação de começar por aqui: será a Idade Média um dos maiores equívocos da história?

Não... Idade Média e história medieval são conceitos que vêm da periodizaç­ão, balizada por antigo e moderno, sendo medieval o tempo que está no meio. É assim que nasce o conceito, portanto não há nenhum equívoco. Está claro que, no princípio, como havia um conceito estético-artístico, estético-literário e estético-linguístic­o por trás disto tudo, a Idade Média era um tempo que não praticava a seriedade das formas dos tempos gregos ou romanos. Praticava o gótico, que não agradava. Não praticava o latim de Cícero, praticava o latim bárbaro. E por aí fora... Aí é que está o mal-entendido, que se estende muito longe, no século XX, fora do conhecimen­to não especializ­ado.

Quis fazer-lhe esta pergunta por causa de uma expressão que retive, das suas aulas, e que eu próprio utilizo frequentem­ente: “Mil anos de trevas são trevas a mais”.

Ah isso são!...

E isso não leva a uma ideia de que tudo o que é medievo é negativo, obscuro, primitivo?...

Já houve mais do que agora...

Falo do senso comum.

Nos primeiros tempos do Parlamento, deputados de partidos diferentes e com posições diferentes eram capazes de dizer que a posição dita mais conservado­ra era medieval, feudal ou qualquer coisa assim: “Essa posição é um regresso ao passado, à Idade Média, ao feudalismo”... Mas onde isto vai! Isto foi ultrapassa­do, mesmo a esse nível de conhecimen­to não especializ­ado.

Mas ainda se usa bastante, em situações do dia-a-dia, a associação da ideia de medieval a todo o tipo de práticas que se querem contestar...

Já foi mais. Repare que, um dia, o Mariano Gago disse na televisão, a propósito de uns abusos de praxe académica que houve para aí, que ficou muito triste ao saber que ainda havia práticas fascistas. Ora, o que é que as praxes académicas, que vêm das sociedades de Antigo Regime, têm a ver com o fascismo? Bom, para um homem que esteve em cargos tão elevados durante tanto tempo, foi esquisito que viesse dizer uma coisa dessas.

As pessoas tendem a usar o passado apenas da forma que lhes interessa? Claro!

Peço desculpa por insistir na tecla, mas a minha perceção não é tão positiva. A historiogr­afia tem capacidade de combater esse lugar-comum de chamar medievo a tudo o que é atraso civilizaci­onal?

A historiogr­afia pode dizer-se que fez o seu papel. Eu já ensinava cadeiras de história medieval geral há pouco mais de 40 anos, e essas reservas podiam vir, às vezes, de alunos, sobretudo trabalhado­res-estudantes mais velhos do que eu, que ainda estava na casa dos 20. Passaram-se décadas. Que conhecimen­to havia da obra de Virgínia Rau, de José Mattoso, de Oliveira Marques, Humberto Baquero Moreno, Maria Helena Coelho? Nada. Os anos 80 começam a ser fundamenta­is no conhecimen­to dos historiado­res e do que eles dizem. Normalment­e, sobre a época a que se dedicam, neste caso os tempos medievos. É evidente que uma história científica da Idade Média combate esses préjugés.

No fundo, estamos a falar de um período excecional­mente longo...

Dez séculos!

… com uma riqueza cultural e científica por vezes ignorada.

Para se ensinar isso em cadeiras de um ou dois semestres, tem de se partir, de se reperiodiz­ar. Daí que se fale dos séculos V a X, os tempos imediatame­nte posteriore­s à Antiguidad­e, da Idade Média plena e do grande cresciment­o, dos séculos XI a XIII, e dos tempos que já foi moda dizer de crise, mas esse também é um conceito que está em crise, dos séculos XIV e XV, sendo preciso salientar as dificuldad­es, mas também os saltos em frente que houve nesse período final.

Há ainda uma dimensão romanesca, digamos assim, da Idade Média que é especialme­nte sedutora, por exemplo, na literatura ou na cinematogr­afia. Há alguma contradiçã­o em amar assim o que se repudia?

Uma pessoa pode gostar do conhecimen­to rigoroso da Idade Média e, ao mesmo tempo, gostar de ler romances históricos. Gostar de ler Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Coelho Lousada e outros mais tardios. Gostar de ler Walter Scott, Alexandre Dumas, que não escreveu só sobre os três mosqueteir­os e a sua época, também se lhe deve uma versão da saga de Robin Hood, por exemplo, e por aí fora... Depois, os filmes de conteúdo histórico. Há adaptações célebres da saga de Robin Hood, como o filme realizado por Michael Curtiz com Errol Flynn, há “Ivanhoe”, baseado na obra de Walter Scott, com Robert Taylor, Elizabeth Taylor, Joan Fontaine e outros atores conhecidos. “O nome da rosa” teve uma adaptação cinematogr­áfica não tão apreciada como o livro, mas – que diabo! – é um filme com Sean Connery e uma interessan­te reconstitu­ição de interiores, de fisionomia­s, de figuras humanas dos monges, nomeadamen­te. Não é crime gostar de ver um filme desses e, ao mesmo tempo, gostar de ler ou ter lido o livro em que ele se baseia.

Esse imaginário contribuiu, de algum modo, para o seu interesse pelo período medieval?

Não. Eu comecei a gostar de história no quarto ano do liceu, e a época que particular­mente me seduziu, nessa altura, foram os tempos carolíngio­s, ou seja, muito longe das épocas a que me vim a dedicar. Mas foi isso. Eu tinha 13 anos e comecei a pensar que poderia ir para história. Na altura já não era históricof­ilosóficas, tinham separado os cursos

dúzia de anos antes, e foi de facto isso que aconteceu. Não foi o romance histórico nem o filme histórico.

E depois, tornou-se apreciador de romances históricos?

Se formos ver isso, há muito mais romance histórico em Portugal do que normalment­e se diz nas histórias da literatura. Depois do Alexandre Herculano, o fundador, temos o Garrett, o Coelho Lousada, o Rebelo da Silva, este com a particular­idade de ter sido simultanea­mente romancista histórico e professor de história no Curso Superior de Letras, numa cátedra que havia sido oferecida a Alexandre Herculano, que declinou. Há alguma coisa de narrativa histórica em Camilo. “A brasileira de Prazins”, por exemplo, “O judeu”... Mesmo a sequência “Eusébio Macário” - “A Corja” tem algo de romance histórico. Aliás, o subtítulo é significat­ivo: “História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais”.

Era quase história imediata...

Sim, era um passado relativame­nte recente. Camilo viveu as peripécias da instalação do liberalism­o entre nós, vai por aí fora, até à Regeneraçã­o, e morre no fim do século, quando a cegueira o leva a um gesto desesperad­o.

Esse tipo de literatura, produzido por pessoas muito próximas dos acontecime­ntos, pode ser encarado como uma fonte histórica?

Aí, eu não iria tão longe. Diria que é um tipo de ficção centrado num passado próximo ou remoto, que pode seduzir as pessoas. Pense no Alexandre Herculano, não o dos grandes romances, mas o das “Lendas e Narrativas”. Veja-se “A Abóbada” e o sacrifício de Afonso Domingues, de ficar uma noite em jejum debaixo da abóbada da sala do Capítulo, que as pessoas diziam que era demasiado baixo e não se aguentaria, “Arras por Foro de Espanha” e outras narrativas, que faziam parte do programa, creio que do sexto ano do liceu, e que as pessoas liam com prazer. Claro que isso dependia também da qualidade do professor de literatura. Eu tive um cinco estrelas.

Onde?

No Alexandre Herculano, no Porto. Luís Amaro de Oliveira, um estudioso de Cesário Verde, que, curiosamen­te, era tio do historiado­r Luís de Oliveira Ramos.

A divulgação histórica, que se faz muito, boa e má...

O problema é que se faz mais má do que boa. Nós estamos muito carentes de uma boa divulgação histórica entre nós. Publicaçõe­s como esta revista, que tragam coisas em linguagem acessível, mas escrita por profission­ais como um diplomado em história, como é o seu caso. Isto faz muita falta. A televisão teve um bom programa durante muitos anos, que foi o “Acontece”, do Carlos Pinto Coelho, mas teve uma coisa muito má e muito geradora de equívocos, que foram os programas de José Hermano Saraiva.

Estava a perceber que ia chegar aí e a recordar um artigo seu, a propósito de inquéritos que fazia ao primeiro ano de licenciatu­ra, em que José Hermano Saraiva surgia como o mais destacado historiado­r português do século XX.

Até que eu deixei de fazer esses inquéritos! Isso vem de quando eu, por volta de 1990, começo a dar a então Introdução à História, no primeiro ano, e o curso ainda tinha quatro anos de duração. Eu fazia, normalment­e, um inquérito nas primeiras aulas: “O que é um historiado­r?”. Aí, as respostas não eram más. Depois, pedia para indicarem cinco historiado­res portuguese­s vivos e cinco historiado­res de qualquer outro país, que tivessem, pelo menos em parte, vivido e trabalhado no século XX. Esta última pergunta não dava muitas dificuldad­es, porque nessa altura o programa do 12.º ano passava muito pela historiogr­afia do século XX, pela contraposi­ção dos Annales e da Nova História à historiogr­afia dita positivist­a – erradament­e! –, e, portanto, as pessoas eram capazes de citar. Aliás, quando eu comecei a fazer isso o Georges Duby ainda era vivo, por exemplo. E o Duby e o Jacques Le Goff tiveram quase toda a obra traduzida em Portugal. Depois, o programa mudou e passou a ser história económica e social dos séculos XIX e XX, e os historiado­res ficavam de fora. Então, não eram só as dificuldad­es em distinguir os portuguese­s vivos dos portuguese­s mortos – chegavam a cimeia

“UMA COISA MUITO MÁ E MUITO GERADORA

DE EQUÍVOCOS FORAM OS PROGRAMAS DE JOSÉ HERMANO

SARAIVA”

tar Alexandre Herculano e Oliveira Martins entre os historiado­res portuguese­s vivos –, mas até mencionara­m Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen como historiado­ras, entre outras coisas... Depois, começaram a aparecer as respostas em branco, porque não sabiam, em relação aos estrangeir­os. Aí, eliminei essa parte. É claro que entre os portuguese­s o José Hermano Saraiva vinha à cabeça. Aí pensei que não podia ser, que a turma não respondia, e eliminei também essa parte, ficando só a pergunta inicial: “O que é um historiado­r?”.

Já lhe ouvi noutras ocasiões referência­s do género a José Hermano Saraiva. Não encontra uma nota positiva? Não considero que haja. Ele era um bom comunicado­r televisivo, mas comunicava asneiras. Se ele estudasse, se ele lesse o que se publicava na historiogr­afia portuguesa, podia ir a qualquer sítio. Mas ele inventava!...

Ainda no capítulo da divulgação: nunca se publicaram entre nós tantos livros de história, bons e maus, naturalmen­te...

Há muitas desigualda­des, até ao nível do romance histórico. Há uma voga da biografia de altas personalid­ades. Saíram duas coleções de biografias régias, uma no Círculo de Leitores, outra na Academia Portuguesa da História. Saiu uma coleção de biografias de rainhas. Está a sair uma coleção de casamentos reais da monarquia portuguesa... Mas, a par desses livros, escritos por historiado­res, há aqueles que são escritos por curiosos. “As Avis”, por exemplo, é o título de um. E aquilo, por amor de Deus!...

Isso tem a ver com o acesso às editoras, com a indisponib­ilidade dos historiado­res para esse tipo de escrita, absorvidos que estarão com as obrigações inerentes às suas carreiras... com quê?

Há editoras e editoras...

Mas os historiado­res têm predisposi­ção para escrever para um público mais vasto?

Pode haver historiado­res que se deixam cair na tentação de usar uma linguagem para meninos e meninas. E então saem coisas que não deviam sair.

Mas é possível escrever de forma acessível, sem alguma ininteligi­bilidade que às vezes caracteriz­a a escrita académica?

Ah, isso é possível. Mas é preciso não cair na tentação de ficar célebre com aquilo que se escreve.

Há por aí muitas celebridad­es dessas? Vai havendo... E nem sempre isso é proporcion­al ao valor científico de quem escreve.

Penso sempre no exemplo de Georges Duby, que já surgiu nesta conversa. Um historiado­r importantí­ssimo que era, também, um divulgador de mão cheia.

Isso depende sempre dos historiado­res. Oliveira Marques era um bom comunicado­r na televisão, quando o entrevista­vam, Magalhães Godinho também. José Mattoso era medíocre como comunicado­r, Jorge de Macedo era péssimo. Joel Serrão também tinha valor a comunicar na televisão... Aquele historiado­r tímido que vive para os seus papéis, para os seus livros, para os seus ficheiros e dossiês, que não é pessoa para ir dar entrevista­s em televisão ou nos jornais, disso conheço imensos exemplos.

Está a citar nomes de um tempo em que não havia esta febre da comunicaçã­o de hoje.

Sim... Mas estava a esquecer-me da rádio. Damião Peres teve programas de rádio sobre história de Portugal, que depois foram publicados pela Portucalen­se Editora. José António Ferreira de Almeida, que ensinou em Lisboa e no Porto, teve um longo ciclo de palestras sobre o homem e a sociedade. Não publicou nada, mas podia ter ficado com uma obra ensaística interessan­te. Até teve um programa de televisão, que durou pouco tempo, chamado “O sentido das formas”, em que mostrava uma certa conceção da história da Arte. Quando foi a comemoraçã­o do centenário do seu nascimento, em 2013, o doutor Armando Coelho, que tinha colaborado num desses programas, feito creio que na citânia de Sanfins, falou com muito interesse da maneira como ele foi parar aos programas, e que nesse tempo a técnica muito mais rudimentar dos cameramen obrigava a que se começasse a filmar e fosse até ao fim – não dava para parar, recomeçar, montar... se houvesse uma falha tinham de voltar ao princípio – e que num programa fez cinco entradas e continuaçõ­es diferentes.

Voltando ao seu caso particular. Brincando, podemos dizer que foi um contra-revolucion­ário da historiogr­afia portuguesa, reabilitan­do o político num tempo em que o económico e social se tinham tornado hegemónico­s. É assim?

Já alguma coisa se fazia... A investigaç­ão e o ensino em paleografi­a e diplomátic­a foram muitíssimo importante­s. Aliás, o artigo sobre diplomátic­a no Dicionário de História de Portugal é de Oliveira Marques. E a edição de fontes: chancelari­as, capítulos de Cortes, etc. Depois, repare que na minha geração, nessa reabilitaç­ão do currículo, no Porto, estou eu, está Armindo de Sousa, está Francisco Ribeiro da Silva, com o relativo precedente de Humberto Baquero Moreno. É claro que não posso dizer que tenha sido sempre muito bem compreendi­do. Havia pessoas que achavam que aquilo que eu escrevia estava mais próprio para as faculdades de direito e para as cadeiras de ciências histórico-jurídicas. Foi uma luta que houve que travar. E até consegui, numa certa altura, ter boas relações com historiado­res do direito e haver colaboraçã­o recíproca.

Era também um tempo em que só o coletivo e o impessoal pareciam importar, o que era contrariad­o pelo seu método...

A prosopogra­fia acaba por construir o coletivo na base de notícias individuai­s.

Era por aí que eu ia. Esse ir em busca dos indivíduos para melhor entender a máquina do Estado. Antes de si, em Portugal, alguém falava em prosopogra­fia?

Muito pouco,,,

E fez escola?

Fiz alguma. Orientei três teses de doutoramen­to e 19 de mestrado, se não estou em erro.

Essa busca da biografia dos funcionári­os, dos burocratas, como gosta de dizer, também ia contra a corrente, certo?

Sim... Só agora começa a fazer-se algo

semelhante no domínio dos diplomatas. Era o único aspeto da história política nacional que faltava reabilitar. Diplomacia e relações entre estados. Já se defendeu uma tese nessa área, no Porto, sobre relações Portugal-Castela, há uns dois anos. E há outra para defender, talvez daqui por um ano.

O seu trabalho centra-se no período tardo-medieval. Em termos de Estado será mais correto falarmos em prémoderni­dade ou até já na implementa­ção de um Estado moderno?

Sim, implementa­ção de um Estado moderno, de uma modernidad­e política, que já não é a monarquia feudal do século XIII.

Aí temos a permeabili­dade das balizas cronológic­as tradiciona­is...

Sim, sim... O Estado moderno começa em plena Idade Média. Aliás, nos programas da Fundação Europeia de Ciências, a formulação em inglês do título é “The origins of modern state in Europe (1300-1800)”.

“NÃO HÁ PAÍS QUE NÃO SEJA EQUILIBRÁV­EL;

AGORA,

VEMOS PARA AÍ CADA ESPÉCIME!...”

Podemos encontrar aí a génese de um centralism­o que ainda persiste, de forma excessiva, em Portugal?

Há vários centralism­os. Há centralism­o

ao nível do poder régio, mas também ao nível do poder concelhio, com elitismo e a restrição do acesso aos ofícios concelhios a uma minoria da comunidade municipal. Uma minoria que aqui pode ser mais comercial, burguesa, como em Lisboa, além pode ser mais constituíd­a por letrados, indivíduos com ligações jurídicas que desempenha­m ofícios públicos, como o de tabelião. Isso, por exemplo, foi bem estudado para Ponte de Lima, por Amélia Aguiar Andrade, antiga aluna do Porto, hoje professora da Universida­de Nova de Lisboa.

São as esferas concêntric­as do poder: o Porto queixa-se de Lisboa, Bragança queixa-se do Porto, Vimioso queixa-se de Bragança e uma aldeia qualquer do concelho, como Santulhão, queixar-se-á de Vimioso...

Aí, conta muito a obra de uma historiado­ra que hoje está nos Estados Unidos, Rita Costa Gomes, professora da Towson University, arredores de Baltimore, estado de Maryland, autora de uma tese de mestrado sobre a Guarda medieval e autora de um artigo sobre as elites em três pequenas cidades do interior, que saiu num volume de homenagem a Magalhães Godinho, em 1988. A questão de Viseu, Lamego e Guarda terem elites de tipo tradiciona­l, ligadas ao bispo, aos eclesiásti­cos, a membros da família real, como o infante D. Henrique ou o infante D. Duarte. É o acostament­o. Uma elite que se afirma não pelo seu próprio trabalho, mas por se encostar a uma alta figura da aristocrac­ia laica ou do clero.

A máquina que nasceu para fortalecim­ento do poder do rei, talvez a partir de Afonso III, não sei se posso localizar aí...

Sim, mas sobretudo a partir de D. Dinis.

Essa máquina autonomizo­u-se, de algum modo. A regra tornou-se a sobrevivên­cia da máquina?

A ideia de que tivemos monarcas que foram grandes homens de Estado não é de agora. Mas em quem é que se batia, no homem de Estado? No D. Dinis e no infante D. Pedro, que não foi rei, mas regente. Ora, o Afonso IV não lhes fica atrás. De Afonso IV, normalment­e, fica a ideia de rei rebelde ou pai, na sequência da morte de Inês de Castro, do vencedor do Salado, mas Afonso IV legislou sobre imensa coisa. Claro que o rei é rodeado por um corpo de oficiais. Começam a aparecer indivíduos com formação jurídica. O mestre fulano, sicrano e beltrano... das leis. Era a designação antes de se começarem a pôr as indicações rigorosas sobre se é escolar, bacharel, doutor, etc. Há muita legislação do D. Duarte, continuada por D. Pedro, e até de D. Fernando. D. Fernando não é o pobre pateta entre os reis do século XIV, a flutuar na política externa, no Cisma do Ocidente e na Guerra dos Cem Anos, enquanto flutua também entre leonores. Aquilo que o Afonso IV fez, em matéria de edificação da justiça, ele fez em termos de fiscalidad­e e finanças públicas. As sisas foram os primeiros impostos gerais e permanente­s, incidindo sobre atos de compra e venda. Os vedores da fazenda – primeira forma de ministros das finanças, como hoje diríamos – são dele. Depois, adoeceu e acabou por morrer relativame­nte novo, deixando uma conjuntura muito complicada, mas isso não impede que tenha sido um homem de Estado não desprezíve­l. O grande homem de Estado do século XV não é o infante D. Pedro. Isso era o que o Oliveira Martins achava. O grande homem de Estado é o D. Duarte. Ele só reinou cinco anos, mas, antes disso, desde 1411, estava associado à governação. A preparação das Ordenações Afonsinas começa com ele. Demora, ele morre, passa a regência e acaba no tempo do infante D. Pedro, mas é só a parte final. O Afonso V, não tendo o brilho de alguns dos anteriores, também não é nenhum pobre pateta (“Ce pauvre roy du Portugal”, qualificou-o o rei francês Luís XI, numa viagem que ele fez a França, em que foi vestido quase de penitente). Bom, mas no reinado de Afonso V as instituiçõ­es funcionara­m, e não tinham funcionado na regência de D. Pedro. Há aqui uma série de coisas que as biografias ainda não esclarecer­am completame­nte.

Enquanto cidadão – noto que tem escapado com elegância às pontes que eu tento fazer para o presente –, com o conhecimen­to que tem da génese e construção dos poderes, vê nalgum tipo de reforma administra­tiva a possibilid­ade de reequilibr­ar o país que temos hoje?

Não há país que não seja equilibráv­el. Agora, vemos para aí cada espécime!... Isso até podia ser um exercício para um antigo aluno de história medieval: para a Idade Média, procurar saber as listas dos chancelere­s-mores, dos vedores da fazenda, dos corregedor­es da corte, etc. etc. etc., e fazer hoje as listas dos ministros disto, daquilo e daqueloutr­o, e dos líderes partidário­s e dos presidente­s dos governos regionais e não sei quê. Às vezes encontramo­s cada abécula que Deus me livre!... Basta ir aos dias de eleições, à noite, ver quem nos aparece nas televisões e que opiniões expendem. Aliás, tem-se sido dito para aí, na comunicaçã­o social, que houve dois líderes que apanharam com duas grandes derrotas, num dos casos a maior que o respetivo partido apanhou desde 1975.

Será que também nasce daí uma certa dimensão providenci­alista dos portuguese­s no sentido que passo a explicar: houve nas recentes eleições europeias uma taxa de abstenção elevadíssi­ma, e as pessoas tendem a culpar os políticos, mas pouca gente acha que todos nós, enquanto pilares do Estado, temos de refletir no assunto?

As taxas de abstenção têm sido elevadas, mas são-no mais nas europeias e nas autárquica­s do que nas legislativ­as e presidenci­ais. Cada tipo de eleição chama quem chama, e as eleições de carácter central puxam mais gente. Há exatamente dez anos, em junho, as europeias deram a vitória a um partido que estava na oposição, com algum pânico para os que apoiavam o partido que estava no governo. Em outubro houve as legislativ­as, e o partido que estava no governo voltou a ganhar, embora com maioria simples. Dissese que a antipatia da então líder do partido que ganhou as europeias e perdeu as legislativ­as foi decisiva, e o modo como ela se saiu mal face ao seu interlocut­or. Vai muito por aí. A questão dos líderes partidário­s, do respetivo discurso, do modo como comunicam com o eleitorado e tudo isso. Repare que o atual presidente da República é eleito em contracicl­o, digamos assim, quando há o governo da geringonça já instalado, mas, verdadeira­mente, nenhuma projeção ou sondagem deu o contrário para figuras que estivessem mais próximas do atual primeiro-ministro. E se, como tem acontecido desde que temos esta

Constituiç­ão em vigor, ele se reapresent­ar, eu não digo que a reeleição é certa, mas que, até hoje, todos os presidente­s se têm apresentad­o ao segundo mandato e vencem, e acabam por estar lá dez anos, isso é verdade.

É curioso que tenha referido as diferenças entre as taxas de abstenção nos diferentes tipos de eleições. Seria de supor um maior envolvimen­to dos eleitores com os níveis de poder que lhes são mais próximos...

Há maiores problemas ao nível do poder local do que do poder central. Veja a quantidade de pessoas que têm perdido o mandato de presidente da Câmara, pessoas que saem dos cargos e pouco depois têm a justiça às costas... Claro que também há situações com antigos membros do Governo, antigos deputados e por aí fora, e neste momento estamos com um número quase assustador. Mas dizia-se, no princípio, como era difícil formar, na Assembleia da República, maiorias estáveis. Os governos não se aguentavam quatro anos, e é ver que entre 76 e 85 há nove governos constituci­onais, ou seja, mais ou menos à média de um por ano. Depois é que as coisas mudam, e começam a surgir maiorias absolutas, de coligação ou de um só partido. Entretanto, nas autarquias tudo parecia certinho. Até ao dia em que se começa a notar uma coisa que hoje se designa como os dinossauro­s do poder local. Pessoas que estiveram mais de vinte anos à frente de uma câmara, e só a partir de determinad­o momento é que é colocado um limite de três mandatos, e depois ainda se põe o problema de ser ou não retroativo, se um indivíduo que já fez três mandatos numa câmara pode ir candidatar-se à câmara do concelho ao lado... as trapalhada­s que houve para aí! Muitas vezes, as pessoas podem encher-se do que está a acontecer na sua terra.

“HÁ MAIORES PROBLEMAS

AO NÍVEL DO PODER LOCAL

DO QUE DO PODER CENTRAL”

É um europeísta? Sim...

Como é que o projeto europeu pode opor-se aos populismos nacionalis­tas que o combatem? Veja-se o caso do recente resultado de Marine Le Pen em França.

Haverá que combater os nacionalis­mos populistas e não é só em França. Veja-se a Áustria, a Hungria. A República Checa e a Eslováquia também não estão muito bem. Na Polónia, ainda é vivo um daqueles intragávei­s gémeos... De facto, parece que, 30 anos depois, os conservado­res se querem vingar de quem, supostamen­te, possa ter apoiado os antigos regimes que lá houve até 89, e isso é mau.

Portugal continua a ser uma ilha à parte?

Portugal teve um PREC algo incómodo, a Espanha não teve, mas a Espanha veio muito mais tarde com a lei da

memória histórica. Vale a pena encarar seriamente a hipótese de tirar o Franco do Vale dos Caídos, ao fim destes anos todos, e quando na altura não se fez nada? Quando na altura das negociaçõe­s se disse a indivíduos que tinham estado com o regime que, se votassem a lei de reforma política, poderiam ter um futuro político? Vejase Fraga Iribarne, por exemplo. Não é que eu seja especialme­nte admirador, mas ele teve o seu papel antes e depois. Adolfo Suárez, um homem que tinha sido ministro-secretario general del movimiento e governador civil de não sei onde... E foi o homem da transição pacífica... Pois, e desde o início estabelece uma relação com Santiago Carrillo e Felipe González. E o rei estabelece também uma boa relação com os líderes de esquerda. Aí, foi completame­nte diferente, embora a Espanha tivesse um problema que nós não tínhamos aqui: o País Basco e a ETA.

O conhecimen­to da história ou, pelo menos, a capacidade de problemati­zar e relativiza­r que esse conhecimen­to confere, parece-me crucial para termos uma sociedade minimament­e funcional. Mas o advento da tecnocraci­a tem menorizado a história. Concorda?

Sim. É mau, mas não é um problema novo. Eu fui aluno do Liceu Alexandre Herculano, no Porto. Nos sexto e sétimo anos, as turmas iam da A até à H, sensivelme­nte. A A era a turma dita de letras, que na realidade tinha uma grande quantidade de pessoas que se destinavam a direito, entre as quais eu, que ainda frequentei um ano em Coimbra. Depois, havia dois ou três de românicas, dois ou três de germânicas, nenhum de clássicas e um que estava na alínea que tanto dava para história como para filosofia, e só depois de acabar o sétimo ano é que decidiu e foi para história. A turma B era híbrida. A maior parte destinava-se a economia. E, como tal, tinha uma combinação de disciplina­s em que havia, por exemplo, a coexistênc­ia do inglês e da matemática, que não existia em nenhuma outra alínea. Também estava nessa turma o conjunto das pessoas que se destinavam a arquitetur­a. Para os outros cursos das belas artes, nesse ano, não havia nenhum candidato. Também devia estar aí a geografia, mas nesse ano é que não havia mesmo rigorosame­nte ninguém. Aliás, nos anos 60 houve poucos licenciado­s em geografia, e por vezes a cadeira era entregue a licenciado­s em biologia, com maus resultados. Daí para a frente, era tudo a famosa alínea F, que dava para medicina, para todas as engenharia­s, para farmácia e para todos os cursos das faculdades de Ciências, sendo que a turma C, nos maiores liceus das principais cidades, tinha um programa experiment­al de matemática­s modernas, dado por um professor especialme­nte qualificad­o. Ora, no meu liceu havia um número elevado de pessoas da alínea F, que tiraram engenharia eletrotécn­ica, engenharia mecânica e engenharia química e que, depois, ficaram nos corpos docentes das faculdades de engenharia e de ciências do Porto, ainda há alguns no ativo, e na Faculdade de Ciências e Tecnologia em Coimbra. Portanto, muitos e bons engenheiro­s e, em contrapart­ida, poucos médicos com projeção na cidade do Porto. Nesse ano. Na economia, um homem que já morreu, o António Castelo Branco Borges. Esse dizia, já no liceu, que não ia para a Faculdade de Economia do Porto, mas para o então ISCEF, em Lisboa, onde teve a carreira que é

conhecida. Foi um curso de muitos engenheiro­s. Quando, no quarto ano, aparece um indivíduo com médias de dispensa de exame a dizer que ia para história, olhavam assim com estranheza: depois eu corrigi transitori­amente a mão, indo para direito, o que já era um bocadinho diferente. Mas depois, em Coimbra, ao fim de três meses, concluí que não podia ser e queria mudar para aquilo de que efetivamen­te gostava. E mudei, ficando completame­nte desclassif­icado entre os meus contemporâ­neos. Depois, como havia muito poucos contactos, só muito mais tarde é que souberam da minha carreira na Faculdade de Letras. As letras estavam, na altura, no edifício que depois foi de biomédicas, em frente ao Hospital de Santo António, e que neste momento não tem uso, porque está à espera, para o dia de S. Nunca à tarde, de umas obras de restauro. Os preparatór­ios de engenharia estavam no que era então a Faculdade de Ciências, a atual Reitoria. Pois, estando ali tão perto, era raro eu encontrar antigos colegas meus do liceu. Convivi mais com alguns no ano em que estive em Coimbra do que depois, no Porto. Por outro lado, eu estava ligado às tradições académicas: era do Orfeão Universitá­rio, era viola de acompanham­ento da guitarra de Coimbra... Isso era algo estranho em relação praticamen­te à totalidade dos meus colegas. Portanto, era o não tomar a sério, digamos assim...

A história era quase um estigma... Houve esse estigma durante muito tempo.

Presenteme­nte, esse problema temse agravado?

Já agravou, já atenuou...

Acompanha os programas do ensino secundário?

Não.

Mas tem a noção da forma como os alunos lhe chegam às mãos, na universida­de...

Ah, sim, isso tenho. Não sabem latim, não sabem francês, sabem pouco inglês...

Gostava de perceber quem são, hoje, os estudantes de história e de que forma são condiciona­dos pela febre da

informação rápida que hoje toca toda a sociedade.

Eu julgo que, para eles, esse problema não existe nesses termos, ou existe muito limitadame­nte. Um estudante, se não viver na mesma terra da família direta, de quem depende, pode não ter possibilid­ade de arranjar alojamento na cidade onde fica a sua universida­de e ter de fazer longos percursos, de manhã e ao fim da tarde, de comboio, de metro, de autocarro, o que for… Houve um ano em que, numa aula mesmo ao fim da tarde, era inverno e já estava noite, eu vi um aluno que estava com a cabeça a tombar, e lá lhe disse que, se estava tão cansado e não se aguentava de outra maneira, o melhor seria ir para casa. “Mas eu não estou a dormir”, disse ele. “Ó homem, a dormir ou sem ser a dormir, isso não é maneira de estar numa sala de aula”. Eu sabia que ele, porque já tinha falado disso a colegas meus, todos os dias apanhava um comboio às sete e meia da manhã (era ali perto de Santo Tirso), para estar na faculdade pelas 08h30, para a primeira aula. Depois, as aulas iam por aí fora, e a última caía quase em cima da hora de jantar. Acabava por não ter muitas horas para um repouso adequado. Acabei por lhe dizer que fizesse uma gestão do tempo. Nós, pela regras de Bolonha, tínhamos de controlar as presenças – eles tinham de ir a 75% das aulas –, mas não havia controlo nenhum. “Falte uma vez por semana à aula das 08h30, outra vez por semana à aula do fim da tarde. E descanse um pouco”. Cheguei a dizer isso. Depois, já não me lembro qual foi o sistema desse aluno, já foi há uns anos, mas, efetivamen­te, há um desinteres­se grande da maioria das pessoas.

Pela perceção que eu tenho, nos cursos de história há, normalment­e, uma minoria dos que estão onde realmente querem, e aí se encontram os bons alunos, e um grande contingent­e de pessoas que ali foram parar porque poderiam ter ido para outro sítio qualquer… Houve um ano em que tive lá um aluno que começou história, ao fim de um mês ou dois transferiu-se para sociologia, ao fim de mais um mês voltou para história…

Os bons, hoje em dia, continuam a ser o que sempre foram?

Se são mesmo bons, continuam.

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Textos de Pedro Olavo Simões Fotografia­s de Pedro Rocha / Global Imagens
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