HISTÓRIAS SOLTAS
O antessemitismo e a Noite de Cristal
Em novembro de 1938, os pogroms levados a cabo na Alemanha e na Áustria, não se enquadrando ainda no que veio a ser o Holocausto, deram aos nazis a certeza de que poderiam seguir o caminho de terror que haviam delineado
Sinagoga de Eberswalde , em Berlim, em chamas no decurso dos incidentes da Kristallnacht
Dizer que a chamada Noite de Cristal (Kristallnacht no original alemão) marcou o início do Holocausto não é rigoroso, atendendo a que a expressão – ou o termo iídiche Shoah, significando “calamidade”, usado preferencialmente pelos judeus – se reporta ao processo de extermínio sistematizado de todo um povo, do qual só se pode falar a partir do verão de 1941. Ora, os pogroms (termo que se tornou sinónimo de atos de violência em massa contra a população judaica, embora na génese possa reportar-se a outros grupos étnicos ou religiosos) ocorridos em 9 (ou de 8 a 10) de novembro de 1938 na Alemanha e na Áustria, unidas pela Anschluss (unidas pela união, passe o pleonasmo), não se inseriam ainda nesse processo, mas foram a demonstração de que os nazis, como qualquer regime de raiz populista, tinha já criado o ambiente generalizado de antissemitismo que tornou possível o terror absoluto que se preparava, tanto por parte dos que o perpetraram ativamente como de todos os que o apoiaram, nem que apenas por terem olhado para o lado.
Mas é importante notar também, nesta espécie de preâmbulo, que nada de suave houve nos acontecimentos de novembro de 1938. A expressão “Noite de Cristal” surge em alusão à quantidade colosssal de vidros partidos espalhada pelas ruas da Alemanha, fossem de comércios propriedade de judeus, de sinagogas destruídas, de residências, de escolas, enfim, do que quer que fosse. E é uma expressão que muitos consideram como um meio de branqueamento. Cristal, de facto, remete mais depressa para os sapatos de Cinderela, para lustres em salões de baile ou copos de champanhe borbulhante, mas o que aqui está em causa é bem diferente: o assassínio de dezenas de pessoas, mais de 20 mil judeus detidos, lojas destruídas e saqueadas, locais de culto incendiados.
Mas a expressão suavizadora Kristallnacht simbolizava também, naquele tempo e naquele país, que a generalidade da população fechava os olhos e tornava-se cúmplice.
Rastilho acendido em Paris
Essa atitude da população alemã é central e ela voltaremos, claro, porque uma abordagem meramente descritiva mais não é do que uma fosca projeção da realidade de que a história tenta incessantemente aproximar-se. Mas, por comodidade e facilidade expositiva, a descrição dos acontecimentos e das suas causas imediatas (ou aparentes) é um ponto de partida necessário antes de nos abalançarmos a uma leitura mais ampla do que representaram e do que efetivamente os motivou.
Sendo que sem factos não se faz história, não poderemos deixar de referir o assassínio de Ernest vom Rath, em Paris, às mãos de um exilado judeu polaco, nascido na Alemanha, de seu nome Herschel Grynszpan. Mas há desde já que aconselhar cautela, pois dizer que esse acontecimento foi a causa dos pogroms de 9 de novembro de 1938 é tão redutor como, por exemplo, pensar que a Primeira Guerra Mundial se deveu à morte em Sarajevo de um arquiduque austríaco.
Ora, a presença de Grynszpan na capital francesa é significativa, na medida em que resulta das primeiras afirmações práticas do antissemitismo nazi. É claro que toda a doutrina antijudaica de Adolf Hitler estava perfeitamente expressa em “Mein Kampf” (“A minha luta”), escrito em 1924 (“O objetivo não é apenas a liberdade dos povos oprimidos pelo Judeu, mas o fim deste parasita entre as nações” é uma entre muitas citações possíveis), mas o processo de afirmação de Hitler (ler “A República de Weimar e a ascensão de Hitler”, in JN História N.º 18) exigia a construção de condições favoráveis à colocação em prática de determinados objetivos: em última análise, a guerra – o que veio a ser a Segunda Guerra Mundial – era a condição necessária à política de extermínio e limpeza étnica, aplicada não apenas aos judeus. Mesmo depois de Hitler chegar ao poder, em 1933, os nazis esperaram pela morte do presidente Paul von Hindenburg para deixar definitivamente cair a máscara. No caso dos judeus, expulsá-los de funções públicas, criar condições humilhantes para as crianças judias, na escola, e, subsequentemente, retirar-lhes a cidadania foram exemplos dos primeiros passos de uma política de segregação que assumiria contornos inimagináveis. E a presença de Grynszpan em Paris – retomemos o fio à meada – resultava da expulsão dos judeus pola
cos, no verão de 1938, incluindo entre eles os que tivessem nascido na Alemanha. Mas a perseguição não era exclusivamente nazi, pois a Polónia anunciou que retirava a cidadania aos judeus que tivessem estado fora por mais de cinco anos.
Mais de 12 mil judeus foram, assim, tornados apátridas e expulsos do país em 28 de outubro de 1938, sendo obrigados a deixar nesse mesmo dia as suas casas e bens, que revertiam para o Estado ou era apropriados pelos vizinhos, e despejados em campos ao longo da fronteira polaca. Herschel Grynszpan, um jovem de 17 anos que já vivia em Paris, em casa de um tio, recebeu um bilhete-postal dos pais e restante família, sabendo que estavam em tais condições, e, durante alguns dias, nele germinou o sentimento de revolta que o fez adquirir uma arma e dirigir-se à embaixada da Alemanha em Paris, no dia 7 de novembro. Verificando que o embaixador estava ausente, pediu para ser recebido por um diplomata qualquer. Calhou ser levado ao gabinete do terceiro secretário Ernest vom Rath,
que baleou no abdómen. O alemão veio a morrer dois dias depois.
Ironicamente, Vom Rath, diplomata de carreira, não era nazi. Estava, aliás, a ser investigado pela Gestapo por defender posições contrárias à ideologia nacional-socialista, opondo-se, designadamente, ao antissemitismo. Mas há também quem defenda que o crime não teve motivações políticas, antes passionais, resultando de um envolvimento sexual entre assassino e assassinado. Para o efeito, nada disso importava. Morto, Vom Rath serviu como gatilho para desencadear aquilo a que em vida se opunha.
Goebbels dá carta branca
Baleado a 7 de novembro, o diplomata morreu dois dias mais tarde. A história que se conta é que, num jantar que reunia as cúpulas nazis, quando chegou a notícia, Hitler saiu sem dizer palavra, e foi Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazi, quem usou da palavra para dizer que o Führer decidira que o partido (ou o Estado, pois já se confundiam) não promoveria qualquer tipo de manifestação para reagir ao assassínio de Vom Rath, mas que eventuais demonstrações espontâneas que viessem a ocorrer não seriam reprimidas. As “demonstrações” não se fizeram esperar.
Ao longo da “Noite de Cristal” – que foram duas noites –, multidões andaram à solta na Alemanha alargada (já incluindo a Áustria e ainda os territórios da Sudetolândia, retirados à Checoslováquia), semeando o terror entre a população judia. O número de mortos terá rondado a centena, muitos mais foram os feridos. E cerca de 30 mil pessoas foram presas e enviadas para campos de concentração. Entre mil e duas mil sinagogas foram incendiadas, cerca de 7500 estabelecimentos propriedade de judeus foram destruídos e saqueados, cemitérios e escolas judaicos foram vandalizados. Suicídios e violações também fizeram parte do balanço.
A evidência de que as ditas demonstrações não foram espontâneas é simples, atendendo a que foram levadas a cabo – ou espoletadas – pelas SA (Sturmabteilung) a força paramilitar do Partido Nacional-Socialista, e pela Juventude Hitleriana. A comunicação feita por Goebbels, garantindo que as supostas ações de retaliação pela morte de
Vom Rath não seriam reprimidas, mais não era do que carta branca para um efeito pretendido e conseguido, sequência lógica da teia persecutória que vinha sendo urdida contra os judeus e prenúncio de tudo o que estaria para vir. Naturalmente, a população também aderiu à vaga de violência lançada pelos nazis, destruindo e saqueando, e isso era algo que a cúpula dirigente nazi também pretendia avaliar. Até que ponto estava já enraizada a ideia dos judeus enquanto inimigo da nação alemã. Claro que havia cidadãos alemães chocados com a inaudita e generalizada expressão de ódio que a Kristallnacht representou, mas aquele não era o tempo deles.
De vítimas a culpados
Mesmo entre as cúpulas do Partido Nazi, os pogroms não eram necessariamente bem vistos, por razões estratégicas e não humanitárias, bem entendido. O exemplo mais claro disso é o de Heinrich Himmler, o Reichsfuhrer-SS, que criticou a impulsividade megalómana de Goebbels, acusando-o de desencadear a operação num contexto diplomático particularmente delicado. Recorde-se que, pouco antes, em 29 de setembro, as potências europeias haviam firmado o Acordo de Munique (ver JN História N.º 19), que constituía um falso passo em direção à paz. Do lado das potências ocidentais – ler França e Reino Unido –, o acordo ficou gravado na memória como uma ignominiosa traição à Checoslováquia, resultando na validação da anexação da Sudetolândia pela Alemanha. Do lado dos nazis, a guerra era um objetivo e não uma contingência. E o pacto, embora abrisse caminho à preparação da guerra, retardava um pouco o seu início. Ora, tudo o que a isso estava ligado dava forma à tal situação diplomática delicada de que Himmler falava. Mas seria mesmo assim?
Como já aludimos, não é razoável sugerir que uma liderança como a de Hitler, naquele momento de crescendo e de praparação para a guerra, fosse permeável a voluntarismos imponderados dos seus quadros. Vale a pena ler o que a esse propósito escreve o historiador Gerhard L. Weinberg, hoje cidadão americano, mas um judeu alemão que, em criança, viveu estes acontecimentos: “Podemos ver, em especial no diário publicado de Joseph Goebbels, como Hitler discutia os seus planos com o próprio Goebbels e outros, mas mantinha-se frequentemente na sombra. Tudo o que corresse bem poderia, posteriormente, ser atribuído à sua brilhante liderança; qualquer coisa que corresse mal poderia ser atribuída a subordinados que não haviam entendido os verdadeiros desejos do Führer”.
Ora, a Noite de Cristal revelou-se crucial na preparação da guerra por parte da Alemanha, mas mais numa perspetiva de gestão de crise do que de estratégia planeada em todos os seus aspetos. Isto porque, como veremos, se serviu como forma de avaliar a aceitação da política racial, não era a melhor maneira de canalizar para o Reich todos os recursos de que este necessitava. Logo depois dos tumultos, Hermann Göring, que tinha a seu cargo a coordenação económica – e, bem entendido, o programa de rearmamento e militarização da Alemanha –, tomou as rédeas de uma reunião de altos dirigentes nazis, em que estavam também Goebbels, Reinhard Heydrich ou Walter Funk, entre outros. No encontro,
realizado logo após os tumultos, Göring fez eco de uma carta escrita por ordem de Hitler, determinando que a “questão judaica” tinha de ser coordenada e resolvida “de uma vez por todas”, fosse de que forma fosse.
A questão económica era prioritária em relação ao programa ideológico/racial, num momento em que já se começava a programar a invasão da Polónia, que, em setembro do ano seguinte, veio a marcar o início da Segunda Guerra Mundial. Mas uma não eliminava o outro, claro. Todavia, os acontecimentos de 9 de novembro obrigavam a agir. Pogroms furiosos, resultando na destruição do património de judeus (em lojas, armazéns, etc.), eram contraproducentes, do ponto de vista dos nazis, não só porque se perdiam os bens de consumo envolvidos, mas também porque os prejuízos seriam cobertos pelas companhias de seguros. Ora, o que Göring preparava ao expor esses assuntos, e que veio a suceder, era o cada vez maior esvaziamento de direitos dos judeus, a começar, de forma muito pragmática, pela perda do direito a indemnizações pagas pelas seguradoras alemãs. Como? Declarando os judeus responsáveis pelos acontecimentos da dita Noite de Cristal, responsabilizando-os legal e financeiramente por todos os danos: uma multa de mil milhões de marcos pela morte de Ernest vom Rath foi aplicada a toda a população judia, e os cerca de seis milhões de marcos pagos pelas seguradoras, por vidros partidos durante os tumultos, reverteram diretamente para o Estado.
Paralelamente, toda a legislação antijudaica que vinha sendo desenvolvida conheceu ali um novo e decisivo impulso. Os judeus tinham de entregar todos os metais preciosos que possuíssem ao Estado, aqueles que haviam sido dispensados da função pública viram as suas pensões drasticamente reduzidas, valores como arte, ações ou outros títulos propriedade de judeus passaram a só poder ser alienados pelo Estado, os judeus foram remetidos para zonas específicas das cidades e impedidos de possuir pombos-correios, viram as suas cartas de condução apreendidas, tal como os aparelhos de rádio, foram sujeitos a recolher obrigatório, excluídos das leis que protegiam os proprietários, impedidos de possuir armas de fogo ou munições. A Kristallnacht, fosse ou não
imponderada, revelava-se assim uma oportunidade para a arianização da economia e da sociedade alemãs.
Porquê naquele momento
Dissemos atrás que o Holocausto é algo de que se pode falar, segundo a maior parte das opiniões, a partir de 1941, ou seja, quando arrancou o extermínio sistematizado e em massa de judeus, a “solução final”. Mas também que o contexto anti-semítico estava desenhado havia muito, particularmente no doutrinário “Mein kampf”, o que suscita algumas reservas na hora de assinalar a Noite de Cristal como o princípio do Holocausto, algo em que, todavia, também coincidem muitas opiniões. Como sempre, em história, em cada certeza do género (conquanto fundamentada e logicamente discernida) há uma ou outra ponta de razão. Por aqui, importa, para já, deixar uma outra nota de contextualização. Quando os pogroms de novembro de 1938 são levados a cabo e, consequentemente, há um avolumar significativo das leis antissemitas na Alemanha, outras medidas de “purificação” estavam já sobre a mesa. Mas Hitler refreara, estrategicamente, os ímpetos de médicos e da chamada ciência racial que preconizavam a eugenia e, paralelamente, o lançamento de um programa de eliminação das pessoas portadoras de deficiência. Por que é que ele o fazia? Porque, como nota Gerhard L. Weinberg, o ditador tinha consciência de que tais políticas só podiam ser levadas a cabo em contexto de guerra e, tendo ele a intenção firme de iniciar várias guerras, sabia que era uma questão de tempo. Não muito. Aliás, na primeira alocução pública que fez logo após a Noite de Cristal, em 10 de novembro, indicou logo o caminho da guerra. Não obstante, o “programa de eutanásia” começou logo a ser preparado, e as primeiras execuções nesse âmbito terão ocorrido no verão de 1939, ou seja, ainda antes da invasão da Polónia.
A “questão judaica” era de outra natureza. Não só pelas motivações económicas, mas também pelo facto de envolver uma população muito maior (cerca de 300 mil pessoas na Alemanha e todas as que se lhes juntassem por via da ocupação de territórios) e, implicitamente, poder encontrar resistência por parte da população, mesmo estan
do a retórica anti-semita posta em prática desde os anos 20. A aceitação por parte da população civil era crucial, o que percebemos bem recuando apenas alguns anos, até ao fim da Primeira Guerra Mundial, para notar que a derrota, na Alemanha, foi amplamente explicada com o insucesso na chamada frente doméstica, mesmo que isso não corresponda propriamente à verdade.
E é aí que teremos de enquadrar a Noite de Cristal. Parece extremamente redutor considerar que os pogroms de novembro de 1938 resultaram apenas de um impulso tresloucado e voluntarista de Joseph Goebbels, mesmo sabendo nós que o ministro da Propaganda é, no imaginário que a posteridade guardou, a figura de topo da hierarquia nazi mais facilmente associada à ideia de insanidade mental. A verdade é que Hitler e os seus precisavam, mesmo que já tivessem traçado o rumo que viriam a seguir – a busca da hegemonia política e racial (entenda-se o conceito à luz dos que o defendiam) –, de avaliar o grau de aceitação conseguido. O dia 9 de novembro foi esclarecedor: os incidentes foram constestados no estrangeiro, o que era irrelevante para o regime alemão, mas dentro de fronteiras eram aceites com indiferente naturalidade; mesmo havendo vozes erguendo-se contra a violência, não havia qualquer indicação de oposição concertada à política nazi.
Resumindo, a Kristallnacht, mesmo não sendo o arranque da Shoah, teve um papel decisivo para o genocídio que foi desencadeado menos de três anos depois. E faz sentido falar em Noite de Cristal, nos tais lustres de aristocráticos salões de baile (ou ballsäle, estamos na Alemanha) e nos sapatos da gata borralheira? A expressão foi inventada por um dirigente nazi, Walter Funk, na reunião a que atrás nos referimos, aludindo à enorme quantidade de vidros partidos. Já o sabíamos. Mas essa é uma questão polémica, que entronca na eventual intenção de a expressão servir para branquear o terror vivido na Alemanha, entre 8 e 10 de novembro de 1938. Há quem prefira referir-se aos “pogroms de novembro”, mas também quem conteste essa ideia, por retirar o cunho estritamente alemão e dar aos eventos uma dimensão generalista que não se deseja. Não será essa a mais relevante das questões.