Uma Andorra entre Trás-os-Montes e a Galiza
Apresentamos aqui, em pré-publicação, excertos de um capítulo de “Grandes Mistérios da História de Portugal”, livro de Fátima Mariano, historiadora e investigadora da Universidade Nova de Lisboa, dedicado a “episódios controversos, lendas e histórias reais desconhecidas”
Entre os séculos XII e XIX, existiu entre Trás-os-Montes (Portugal) e a Galiza (Espanha) um microestado independente designado de Couto Misto, que se regia por um modelo políticoadministrativo quase exclusivo. Durante 700 anos, os seus habitantes gozaram de certos direitos e privilégios de que as povoações dos reinos vizinhos nunca beneficiaram.
Elegiam as suas próprias autoridades judiciais, administrativas e governativas, e decidiam livremente se prestavam vassalagem à Coroa portuguesa ou à espanhola, ou a nenhuma das duas. Se cometessem um crime, podiam escolher o juiz por quem queriam ser julgados, e os perseguidos pela justiça dos reinos vizinhos que ali pedissem asilo não podiam ser presos, nem despojados dos seus haveres. Se tivesse sobrevivido até aos dias de hoje, o Couto Misto teria um estatuto semelhante ao do Principado de Andorra. A ascensão das narrativas nacionalistas, a partir da década de 30 do século XX, fez que a memória deste microestado se fosse perdendo. Mas com a restauração da democracia em Portugal e em Espanha, nos anos 70 e 80, respetivamente, começaram a surgir iniciativas que visam recuperar a memória desta “República esquecida”.
As origens
O Couto Misto ficava a cerca de 16 quilómetros de Ginzo de Limia (Espanha) e a 6 quilómetros de distância de Tourém (Portugal). O seu território, atualmente pertencente aos municípios espanhóis de Baltar e Calvos de Randín, ocupava uma área de cerca de 2685 hectares. Era constituído por três povoações – Santa Maria de Rubiás, Santiago de Rubiás e Meaus –,
que formavam um “triângulo imperfeito”, como explicava Francisco de Almada e Mendonça, corregedor e provedor da Comarca do Porto, num ofício enviado ao intendente-geral da Polícia, Pina Manique (1733-1805), em 7 de janeiro de 1786.
Ao longo dos 700 anos de existência, a sua população terá oscilado entre os 600 e os 1000 habitantes. Santa Maria de Rubiás era a localidade mais povoada; Santiago de Rubiás, a capital e o centro político-administrativo; Meaus, o centro económico e comercial.
Não há certezas quanto à época de fundação do Couto Misto. A maioria dos autores aponta para o século XII, por alturas do nascimento do Reino de Portugal, com a estabilização da fronteira entre Castela e o Condado Portucalense. O advogado Luiz Paulo Viveiros de Castro aponta o ano de 1187 como aquele em que foram outrês por foral de D. Sancho I (1154 -1211) os privilégios de que o Couto Misto gozou até à sua extinção, no século XIX. D. Afonso II (1185 1233), D. Afonso III (1210-1279), D. Dinis (1261-1325), D. João I (1357-1433) e D. Manuel I (1495-1521) confirmaram essas regalias.
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República entre monarquias
No livro Interesante Historieta del Coto Mixto, Delfim Modesto Brandão explica que, até 1836, o juiz dos coutos (incluindo o do Couto Misto) era nomeado pela Coroa portuguesa ao abrigo de um convénio assinado com Espanha. A partir desse ano, Portugal decide não cumprir o acordo e os povos mistos assumem essa responsabilidade. A eleição do juiz era feita normalmente no início do ano, num prado localizado a curta distância das aldeias, no qual se concentravam os representantes de cada família. Os candidatos apresentavam os seus programas de governo e o escolhido era nomeado por aclamação.
Até 1834, o juiz eleito tinha de ser confirmado pelo corregedor da Comarca de Bragança, ou por quem exercesse as suas funções. Os mandatos eram de três anos. Caso os eleitores considerassem que não estava a cumprir adequadamente as suas funções, poderiam ser convocadas eleições antes do final do mandato.
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Como assinalam alguns autores, o Couto Misto era uma democracia participativa, embora as mulheres não tivessem o direito de ser eleitas ou de se candidatar a qualquer cargo político. De qualquer forma, tratava-se de um modelo político-participativo avançado para a época, se tivermos em conta que o sufrágio universal masculino em Espanha foi aprovado em 1890 e o feminino em 1933, e que, em Portugal, o voto universal foi uma realidade apenas em 1974.
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Direitos e privilégios
Num ofício datado de 20 de março de 1858, o ministro de Portugal em Madrid, visconde de Soveral, escreve: “Estes povos (…) hão sido respeitados pelos Governos de Portugal e de Espanha, e deste modo têm atravessado séculos à sombra de antigos direitos feudais, sem obedecer a Lei de espécie alguma, ora são Portugueses ora Espanhóis, segundo as circunstâncias o exigem, outras vezes não são nem uma nem outra coisa”.
Ao longo de cerca de sete séculos, o Couto Misto gozou de direitos e privilégios exclusivos, dos quais nenhuma das povoações vizinhas (portuguesas ou espanholas) beneficiou durante tanto tempo. Talvez devido a essa proteção os seus habitantes nunca tenham visto necessidade de construir postos fronteiriços, formar um corpo de guardas ou um exército.
As suas três povoações ligavam-se ao concelho português de Tourém através de uma estrada com cerca de seis quilómetros de extensão, que atratorgados
vessava as paróquias galegas de Requiás e Randín. Estava delimitado com marcos de pedra e tinha vários símbolos, sobretudo cruzes. Nenhuma autoridade portuguesa ou espanhola podia apreender mercadorias ou deter alguém neste caminho privilegiado. Tratava-se de uma estrada neutra, sobre a qual nenhum dos dois Estados tinha jurisdição.
Em caso de guerra em Portugal ou em Espanha, os habitantes do Couto Misto consideravam-se automaticamente incluídos na administração do Estado que não estava em conflito. Não se consideravam súbditos de qualquer das duas Coroas, mas, quando casavam, o noivo erguia um copo de vinho em honra do monarca a quem naquele momento escolhia ser fiel, tornando-se assim português ou espanhol. A qualquer altura, no entanto, podia mudar de opinião.
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Economia
As principais atividades económicas às quais se dedicavam os habitantes do Couto Misto eram o comércio e a agropecuária. Ocupavam-se também da caça à lebre, perdiz e coelho, espécies abundantes naquele território de clima frio. Embora o Couto Misto se situasse numa zona montanhosa atravessada pelo rio Salas, as condições atmosféricas, a abundância de água e as características do solo permitiam a produção de vários tipos de culturas e a criação de gado, principalmente vacas, porcos e cavalos. Cultivava-se sobretudo centeio, trigo, milho, batatas e alguns legumes, cujos excedentes se vendiam nas feiras e mercados dos concelhos vizinhos. Plantava -se também tabaco com elevada quantidade de nicotina. No entanto, como os produtores não soubessem tratar convenientemente as suas folhas, ao ser fumado tinha um “sabor repugnante”, recorda Delfim Modesto Brandão na sua Interesante Historieta del Coto Mixto. Aqueles que não conseguiam fumá-lo consumiam tabaco espanhol, mas principalmente português, por ser de melhor qualidade e mais barato.
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A extinção do couto misto
O Couto Misto foi extinto na sequência da assinatura, em Lisboa, do Tratado de Limites pelos Estados português e espanhol, em 20 de setembro de 1864. Um acordo que visava dirimir algumas questões fronteiriças ainda pendentes. Como recorda a antropóloga Paula Godinho, no século XIX, a delimitação das fronteiras entre os Estados europeus tende a clarificar-se com a assinatura de acordos que pretendem afirmar a soberania nacional, salvaguardar a integridade territorial, combater o comércio clandestino e extinguir as povoações bipartidas ou tripartidas ou que gozavam de determinada autonomia, como era o caso do Couto Misto. No âmbito do Tratado de Lisboa, o território do Couto Misto passou a integrar Espanha, enquanto os povos promíscuos de Soutelinho, Cambedo e Lamadarcos passaram a pertencer ao Reino de Portugal. Tentava-se, assim, consolidar a paz e uniformizar direitos e deveres entre os povos raianos. [...]
O auto de entrega e posse, datado de 23 de junho de 1868, foi confiado ao representante da Coroa espanhola, D. Rafael Teixeira, pelo comissário português, Bernardo António Dias Pereira Magro, em Santiago de Rubiás, “cabeça do Couto Misto”. Aquando da entrega do território a Espanha, o microestado teria perto de 1000 habitantes e cerca de 250 casas. A localidade mais povoada era Santiago de Rubiás, com perto de 100 fogos; Meaus e Santa Maria de Rubiás teriam à volta de 70 e 80, respetivamente. Os residentes ainda tentaram evitar a extinção do Couto Misto. Segundo Paula Godinho, num requerimento dirigido ao monarca português em 2 de julho de 1862, 56 habitantes pediram a manutenção de todas as regalias e privilégios, comparando o Couto Misto a Andorra. Caso não fosse possível, pediam a integração no território português, “por assim convir aos mesmos, pela comunidade d’interesses, e antigas relações de convivência íntima con seus vizinhos de Portugal”