A PRIMEIRA “CONSTITUIÇÃO POLÍTICA” QUE VIGOROU EM PORTUGAL
“Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade, as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa (…) decretam a seguinte Constituição Política, a fim de segurar os direitos de cada um e o bem geral de todos os portugueses” – Com estas palavras preambulares, no dia 23 de setembro de 1822, as Cortes Constituintes consumavam o principal desígnio que lhes tinha sido traçado pelo movimento revolucionário de 24 de agosto de 1820: aprovar uma Constituição. Depois de adotado no Magno Congresso, o texto constitucional viria a ser jurado por D. João VI, no dia 1 de outubro, e depois pelas autoridades de todo o Reino, no dia 3 de novembro de 1822. Apesar da protocolar invocação divina, a “Nação Portuguesa”, através das Cortes eleitas, assumia ela mesma a sua autodeterminação constituinte e reconstituía-se em novos moldes quando à organização do poder político.
Com a aprovação da Constituição, Portugal alinhava, ainda que com décadas
de atraso, na revolução constitucionalista iniciada na independência americana (1776) e na revolução francesa (1789), visando estabelecer os traços essenciais do constitucionalismo moderno: soberania constituinte da nação ou do povo expressa numa constituição escrita; subordinação do poder político à Constituição e à lei; “governo representativo”, consubstanciado num parlamento diretamente eleito; separação de poderes, cabendo o poder legislativo ao parlamento; reconhecimento e proteção dos direitos individuais (liberdade, propriedade, etc.).
Das antigas “leis fundamentais” à Constituição como Lei Fundamental Nas auspiciosas palavras de um coevo correspondente do periódico “Borboleta Constitucional” (terça-feira, 12 de novembro de 1822), “estava escrito nos livros do destino que a heroica Nação portuguesa, acordando um dia do letargo em que jazia, procurasse sacudir de si as desgraças públicas que tanto a oprimiram! Estava reservada para as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes, da mesma Nação, a glória de fazer reviver, ampliar e refor
No longo percurso evocativo que temos vindo a cumprir, desde a Revolução Liberal de 24 de agosto de 1820, chegamos agora a uma meta fulcral, situada na aprovação, em 1822, da Constituição que veio a ficar conhecida como vintista. O que a caracterizava e como se chegou lá é o que se conta nestas páginas.
mar as Leis Fundamentais da Monarquia e restituir os seus cidadãos aos legítimos e políticos direitos de que se achavam esbulhados, dando-lhe uma Constituição Política”.
A ideia de “fazer reviver, ampliar e reformar as Leis Fundamentais da Monarquia” foi, seguramente, coligida a partir do próprio preâmbulo da Constituição e retomava o argumento político de que a revolução visava, essencialmente, restaurar (e atualizar) a antiga “constituição” do Reino, incluindo a representação em Cortes, que o absolutismo tinha ignorado. Trata-se, no entanto, de uma invocação enigmática e de difícil explicitação – em meados do século XVII, já Thomas Hobbes se queixava: “Nunca pude ver em nenhum autor o que uma Lei Fundamental significa” –, que coloca sérias dificuldades a uma definição cabal do que eram, bem como a uma determinação exata de quais eram as referidas Leis Fundamentais da monarquia portuguesa.
Não sendo este o momento e o local propícios para tratar assunto tão delicado, podemos adiantar que as Leis Fundamentais do Reino, oriundas do Antigo Regime, são de facto geralmente consideradas como o parente mais próximo das constituições normativas em sentido moderno. As primeiras referências às “Lois Fondamentales” surgiram em França, nas obras de Innocent Gentillet e de Théodore de Bèze, publicadas na década de 70 do século XVI. Ainda no final desse século, em Inglaterra, surgia a primeira referência expressa às “Fundamental Laws” inglesas, numa carta de Francis Bacon, datada de 8 de janeiro de 1596.
Em Portugal, as Leis Fundamentais do Reino andam associadas ao movimento revolucionário da Restauração da independência (iniciado em Lisboa, em 1 de dezembro de 1640), surgindo referidas pela primeira vez numa obra de Luís Marinho de Azevedo, “Exclamaciones Políticas, Jurídicas e Morales” (1645). Mas acabaram por ficar reduzidas às leis emanadas pelas Cortes de Lamego (circa 1143), pelas Cortes de Lisboa do ano de 1674 e pelas Cortes de Lisboa do ano de 1697, que só versavam sobre a sucessão da coroa e a regência ou tutoria em casos de menoridade ou incapacidade do rei. Consequentemente, a literatura política absolutista do século XVIII acabaria por lhes retirar quaisquer pretensões de limitação ao exercício do poder político (cortes, “direitos dos povos”, etc.), transformando-as em simples instrumento de legitimação do poder absoluto do rei e de justificação da “monarquia pura” ou “plena” como forma de Estado. Não será despiciendo que, no manifesto outorgado em 28 de março de 1832, o rei D. Miguel ainda as continuasse a invocar assiduamente como plausível suporte jusfundamental da sua causa absolutista, assim descartando a necessidade de uma constituição.
Todavia, na frase acima citada haveria que sublinhar não somente a ideia de “reviver” as antigas leis fundamentais, mas também a ideia de as “ampliar” e “reformar” (além de as codificar num único texto). E é justamente por isso que, nos artigos 27.º e 29.º, o texto constitucional venha utilizar a expressão “Lei Fundamental” e “leis fundamentais” para designar a própria Constituição, assim alterando o paradigma constitucional das Leis Fundamentais anteriormente vigentes, quer quanto ao seu âmbito quer quanto à sua substância, desde logo afastando o
próprio monarca do processo constituinte, o que não sucedera na formação das antigas “leis fundamentais”. Não é por acaso que, ainda hoje, algumas constituições têm a designação de “Lei Fundamental” (como é o caso da Alemanha) e que os constitucionalistas usam correntemente essa expressão como sinónima de Constituição.
O procedimento constituinte
A progressista teoria constitucional adotada pelo Vintismo concebia o rei como um órgão constituído e não constituinte, o qual, portanto, devia ser excluído de participar na elaboração do texto constitucional do país. Na prática, a erupção e hegemonia assumida pelo princípio da soberania da Nação fez com que o rei, D. João VI, fosse completamente excluído deste procedimento constituinte, até porque se opôs, enquanto pôde, à revolução constitucional.
Em suma, o texto originário de 1822 derivou de um procedimento constituinte democrático-representativo, exclusivamente levado a cabo por uma assembleia constituinte soberana, eleita ad hoc, com plenos poderes para elaborar e aprovar a Constituição, “sem dependência da sanção do rei” (art. 27.º da Constituição). De resto, como vimos em anterior artigo desta série, as próprias Cortes constituintes tinham sido convocadas pelos revolucionários de 1820 à revelia do rei (ausente no Rio de Janeiro) e da Regência de Lisboa, que tentaram reunir à pressa as Cortes tradicionais, convocando os “três estados do Reino”.
A abertura e instalação oficial das Cortes ocorreu no dia 26 de janeiro de 1821 (com uma sessão preparatória anterior, realizada no dia 24 de janeiro), na sala da livraria do Convento das Necessidades, apenas com a presença dos deputados da metrópole (na sessão oficial de abertura, no dia 26 de janeiro, estiveram presentes 74 deputados) que tinham sido eleitos em dezembro de 1820, uma vez que os deputados das ilhas adjacentes e dos domínios ultramarinos só posteriormente viriam a ser eleitos e integrados no Magno Congresso (ver o nosso artigo de junho de 2018, no N.º 14 da JN História).
Os trabalhos decorreram ininterruptamente e só cessaram no dia 4 de novembro de 1822, após o juramento da Constituição no país, com a dissolução das Cortes Constituintes, que deram lugar às Cortes ordinárias, entretanto eleitas. No curso destes dois anos de intensa atividade parlamentar, as Cortes não se limitaram à tarefa constituinte, tendo assumido praticamente todas as funções políticas, legislativas (e em parte judiciais) do Estado, colocando mesmo em causa a pedra de toque do constitucionalismo liberal – o princípio da separação de poderes –, o que lhe mereceu duras críticas, v. g., do “Correio Braziliense”: “Com estas noções vagas de poder infinito, achamos as Cortes ingerindo-se na parte executiva da administração e os particulares fazendo-lhes petições sobre toda a sorte de negócios grandes e pequenos”.
Centrando-nos, por ora, no labor que gerou a Constituição, o procedimento constituinte teve a particularidade de ter sido desenvolvido em três fases distintas: numa primeira fase, as Cortes aprovaram um texto constitucional interino; numa segunda fase, estabeleceram o projeto oficial da Constituição; e só depois, numa terceira fase, passaram à preparação do texto constitucional definitivo.
Fase 1: as Bases da Constituição Sabendo-se de antemão que o procedimento constituinte seria demorado, tornava-se impreterível preparar rapidamente um texto de cariz jusfundamental que vigorasse interinamente até à conclusão do texto constitucional definitivo. Depois de eleita a nova Regência, na 3.ª sessão parlamentar (29 de janeiro de 1821), Manuel Fernandes Tomás propôs “que se nomeasse uma comissão para formar as Bases da Constituição”, invocando duas ponderosas razões: (i) para se cumprir com o “primário objeto da reunião das Cortes”, passando as Bases a servir de constituição provisória e de documento de orientação para os trabalhos subsequentes das Cortes Constituintes; (ii) na eventualidade de “próxima chegada de el-rei ou de pessoa da sua real família, desde logo lhe deviam ser apresentadas aquelas Bases Constitucionais que estabelecessem o pacto entre a sua pessoa e o seu povo”.
A comissão redatorial de cinco membros ainda foi eleita nessa sessão do dia 29 de janeiro, através de uma votação por lista, ficando nomeados aqueles que obtiveram a pluralidade relativa de votos. Desse sufrágio interno resultaram apurados os nomes dos seguintes deputados: Manuel Fernandes Tomás (59 votos), José Joaquim Ferreira de Moura (47 votos), João Maria Soares Castelo Branco (30 votos), Manuel Borges Carneiro (23 votos) e Bento Pereira do Carmo (21 votos).
Passados apenas nove dias, em 7 de fevereiro, o deputado Pereira do Carmo anunciou que estavam prontas as Bases da Constituição e que, no dia seguinte, “teria a comissão a honra de as apresentar ao Congresso”. Efetivamente, no dia 8 de fevereiro, por voz do deputado Ferreira de Moura, foi feita a primeira leitura em plenário do projeto preparado pela comissão, passando-se à sua discussão nas sessões seguintes. A aprovação final das Bases constitucionais – estruturadas em 37 artigos que estabeleciam os princípios considerados “mais adequados para assegurar os direitos individuais do cidadão e estabelecer a organização e limites dos poderes públicos do Estado” – ocorreu em 9 de março de 1821. De facto, o texto compreendia duas “secções”, uma sobre os “direitos individuais do cidadão” e outra sobre a organização política da Nação.
No dia 29 desse mês de março, as Bases constitucionais foram juradas em todo o território de Portugal e Algarve e, no entendimento das Cortes, “foi só uma a voz de todas as autoridades eclesiásticas, civis e militares que soou em todo o Portugal e Algarves – juro as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa – disseram elas”. Houve, no entanto, algumas dissidências, Por exemplo, o cardeal patriarca de Lisboa excluiu do seu juramento os artigos 10.º e 17.º, e o bispo residente em Vila Viçosa, D. Vasco José Lobo, enviou um protesto às Cortes no qual se “manifestava bem a oposição daquele prelado ao sistema constitucional”. Para obstar a tais escusas e eventual alastramento, por decreto de 2 de abril, as Cortes determinaram drasticamente que “todo o português que recusa jurar, simplesmente e sem restrição alguma, a Constituição da Nação ou as suas Bases deixa de ser cidadão e deve sair imediatamente do território português”.
Assim teve início antecipado a nova era constitucional em Portugal.
Apesar da natureza vinculativa do novo texto e do apoio praticamente unânime manifestado no território da metrópole, a tarefa empreendida pela assembleia constituinte ficaria inconclusa enquanto o texto constitucional interino se não estendesse também aos domínios ultramarinos do império. Por isso, no dia 9 de maio, foi enviada pelas Cortes uma missiva dirigida ao Rei no Brasil, dando-lhe conta dos trabalhos entretanto desenvolvidos, anexando-lhe as Bases da Constituição impressas (para serem juradas) e os decretos até então publicados. Uma vez que, como suprarreferido, o monarca já tinha empreendido a viagem de regresso à metrópole, a carta com as Bases em anexo foi recebida pelo príncipe regente D. Pedro. Após lhe ter prestado juramento no dia 5 de junho, no dia 8 desse mês expediu um decreto mandando publicar e jurar as Bases da Constituição da Monarquia Portuguesa (por exemplares impressos) em todas as terras do Reino do Brasil: “Para que, sendo nelas publicadas na forma ordinária e chegando à notícia de todos, se preste nas demais províncias deste Reino o juramento como se prestou aqui”.
Curiosamente, D. João VI juraria as Bases constitucionais quase um mês depois de o seu filho-regente o ter feito no Brasil. Na realidade, tal como Fernandes Tomás tinha prognosticado na sessão das Cortes do dia 29 de janeiro, o rei regressou à metrópole: tendo partido no dia 26 de abril do reino do Brasil, delegando a regência no príncipe D. Pedro de Alcântara, chegou a Lisboa no dia 3 de julho desse ano de 1821, às 11 horas da manhã. Só desembarcou no dia seguinte, para assistir à missa de Te Deum na basílica da Estrela e depois se dirigir às Cortes (nas Necessidades), onde entrou pelas cinco da tarde, precedido das duas deputações que lhe haviam sido enviadas e dos oficiais da sua Corte que o tinham acompanhado na viagem de regresso. Subiu imediatamente ao trono que lhe estava destinado para dar início ao juramento solene das Bases constitucionais e, colocando a mão direita sob os Santos Evangelhos, proferiu as seguintes palavras, segundo a crónica da sessão:
“Eu, D. João VI, pela graça de Deus e pela Constituição Rei do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves juro aos Santos Evangelhos manter a religião católica apostólica romana; observar e fazer observar as Bases da Constituição decretadas pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa; e a Constituição que elas fizerem e ser em tudo fiel à mesma Nação. Ao que acrescentou sua majestade: – Assim o juro de todo o meu coração. Por se achar mui fatigado pronunciou sua majestade, em voz mais baixa, estas memoráveis palavras, as quais não puderam, por isso, ser ouvidas de toda a assembleia, mas o foram distintamente pelos senhores presidente e secretários e por alguns outros dos senhores deputados que ficavam mais próximos ao trono. O senhor presidente, informando o Congresso de tão atendível circunstância, representou a necessidade de ser mui expressamente consignada na ata, não só para constar a toda a Nação, mas para ser pública à Europa e ao mundo inteiro a espontânea e cordial adesão com que sua majestade se rende aos votos do povo português”.
Sem embargo da proclamada “espontânea e cordial adesão” do monarca, a verdade é que tinham decorrido quase quatro meses desde a aprovação final do texto das Bases, e o rei nunca tinha sido consultado sobre a sua feitura nem informado do seu conteúdo. Neste momento, também não consta que lhe tenha sido dada qualquer oportunidade de análise ou reflexão e muito menos de oposição ao referido diploma. Em suma, no dia 5 de junho, no Rio de Janeiro, e no dia 4 de julho, em Lisboa, consumava-se o princípio da soberania da Nação, nos termos em que tinha sido idealizado pelo primeiro constitucionalismo liberal português, afastando-se completamente o poder régio do procedimento constituinte. De resto, no próprio juramento, o monarca reconhecia que agora era rei de Portugal “por força da Constituição”, o que consubstanciava toda a revolução política que se acabara de consumar.
Não deixa de ser sintomática a passagem que ficou registada num periódico daquela época:
“Aprovam-se as Bases da Constituição, proclamam-se, juram-se e não lembra a ninguém o propor que se informe a el-rei de tão importante resolução. Será o Rei uma parte indiferente nisso a que chamam o novo pacto social? É o Rei uma pessoa que só deve ser informado desse ato orgânico do Governo do Reino pela mera leitura dos jornais públicos?”.
Mas a realidade é que, segundo o padrão liberal-representativo, a Constituição deveria resultar da manifestação unilateral da vontade da Nação, assente no poder de autodeterminação política do povo, ao invés das predecessoras Leis Fundamentais, que pressupunham um pacto originário, um acordo bilateral entre a vontade do monarca e a vontade do reino expressa em Cortes. No rescaldo da Revolução de 1820 ainda se tentava objetar que “da Nação junta em Cortes com o soberano é que depende unicamente alterar as Leis e os privilégios existentes” (“Gazeta de Lisboa”, 23 de setembro de 1820). Não obstante, nos termos do constitucionalismo liberal o povo passou a ser o titular único de um poder constituinte ilimitado, que continuou a exercer até ao final, na aprovação do texto constitucional definitivo.
No entanto, deve recordar-se que, desde o início, os revolucionários de
1820 autoimpuseram alguns limites ao poder constituinte, obrigando-se a respeitar a religião católica, a monarquia e a dinastia de Bragança, o que não encontrou nenhuma reserva nas Cortes Constituintes.
Fase 2: o projeto oficial de Constituição
Concluída a primeira etapa e aprovadas as Bases da Constituição, tornavase indispensável estabelecer um projeto constitucional que servisse de orientação e apoio para os consecutivos trabalhos constituintes das Cortes. Preparado pela mesma Comissão da Constituição, o projeto final foi apresentado e distribuído impresso aos deputados em sessão das Cortes de 25 de junho de 1821. É muito provável que neste projeto oficial se reflita o contributo dos vários projetos constitucionais que tinham sido enviados às Cortes por cidadãos interessados, plausivelmente versados em política e Direito público, que se predispuseram a dar o seu contributo para o texto da Constituição que se estava a preparar e, dessa forma, para o bem comum da Nação.
Pelo menos quatro desses projetos constitucionais privados foram vertidos para letra de imprensa: um anónimo, com o título “Instruções para as Cortes ou esboço para a Constituição”; e os outros três da autoria de: José Maria Dantas Pereira, com o título “Fantasias Constitucionais, seguidas por algumas reflexões da razão e da experiência publicadas por Lusitano Filantropo”; Manuel Gomes Quaresma de Sequeira, com o título “Projecto para a Constituição Portuguesa sobre as bases da Espanhola com notas ao mesmo projecto oferecido ao Soberano Congresso das Cortes Extraordinárias Constituintes por Manuel Gomes Quaresma de Sequeira”; Máximo Pinto da Fonseca Rangel, com o título “Projeto da Constituição Politica para a Nação Portugueza, offerecido às Cortes que se vão congregar em Janeiro de 1821”. Em versão manuscrita, chegou até aos nossos dias o projeto “Código Constitucional”, da autoria de Lucas de Sena, com a data de 16 de outubro de 1820.
As Cortes constituintes acusaram a oferta e registaram a receção de, pelo menos, dois desses projetos constitucionais impressos, que remeteram para análise à Comissão ad hoc das Bases da Constituição, ainda em exercício de funções: um da autoria de Manuel Quaresma de Sequeira (sessão de 20 de fevereiro de 1821) e o outro da autoria de Máximo Pinto da Fonseca Rangel (sessão de 8 de março de 1821).
Esta manifestação espontânea de “democracia participativa constituinte” foi bem acolhida e até estimulada pelas Cortes. Em sessão de 27 de junho, a propósito do projeto oficial apresentado dois dias antes, o deputado Pereira do Carmo, um dos redatores desse projeto, propunha: “(...) que ele se patenteasse à Nação, para que todos o vissem e examinassem mais de espaço e pudessem, com suas luzes, aumentar as luzes deste Congresso, que só tem por fim desempenhar bem e fielmente as altas funções de seu alto ministério. Este era o meio mais cabal de pormos em contribuição as luzes de todos os portugueses instruídos e de todos os sábios da Europa, para aperfeiçoarmos o nosso pacto social. E por isso, proponho que se mande imprimir um número suficiente de exemplares, os quais se ponham à venda nas lojas do Diário das Cortes pelo preço que
para as despesas do papel e impressão”. A proposta foi aprovada, ficando decidido que a Comissão do Diário mandasse imprimir e distribuir, como quisesse, os exemplares que lhe aprouvesse.
Fase 3: o texto final da Constituição Tendo presente e por bússola norteadora o referido projeto, numa terceira fase constituinte, as Cortes passaram à discussão e aprovação dos preceitos constitucionais que, reunidos num documento único, viriam a formar a primeira constituição portuguesa, a Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822.
A discussão e votação do preâmbulo e, um após outro, dos artigos do projeto oficial das Cortes começou no dia 9 de julho de 1821 e concluiu-se em 29 de março de 1822. No dia 1 de abril deste último ano foram votados vários aditamentos ao projeto originário. Nas sessões de 12 a 22 de agosto foi feita a revisão de todo o projeto e aditadas algumas emendas. De seguida, voltou à Comissão da Constituição, que emitiu novo parecer, o qual, por sua vez, foi discutido e aprovado pelas Cortes entre 31 de agosto e 2 de setembro de 1822. O texto originário da primeira Constituição portuguesa foi definitivamente aprovado no dia 23 de setembro. Conforme supradito, no dia 4 de novembro desse ano – dia seguinte ao do juramento constitucional em todo o reino – o presidente declarou as Cortes constituintes formalmente encerradas.
Nesse dia 4 de novembro, o governador da Relação do Porto dirigiu uma missiva ao Soberano Congresso, felicitando-o pela aprovação da Constituição Política da Nação Portuguesa, que considera um “código sagrado”; “Modelo de uma sabedoria que, segurando-nos a religião católica apostólica romana e a dinastia da sereníssima Casa de Bragança, de que é chefe o nosso adorado rei constitucional o senhor D. João VI, soube com tanta solidez firmar para cúmulo da nossa felicidade os direitos políticos dos cidadãos, garantindo, como primeiro manancial, a sua liberdade, segurança e propriedade; declarando muito privativamente a residência da soberania essencialmente em a Nação; e fazendo a necessária distinção dos três pobaste deres. Obra esta admirável em extremo e que a continuação dos séculos nunca destruirá, por ser fundada nos princípios da Justiça universal” (in “Borboleta Constitucional”, terça-feira: 12 de novembro de 1822).
Influências constitucionais estrangeiras
A principal fonte de inspiração da Constituição portuguesa de 1822 foi a Constituição espanhola de Cádis de 1812, surgida na sequência da guerra da independência contra os franceses. Mas houve influência também da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e das Constituições francesas de 1791, 1793 e 1795 – inspiradoras da Constituição de Cádis – que circularam em francês e em tradução portuguesa (consta que estariam em circulação cerca de 12 mil exemplares da Constituição francesa de 1791 traduzida para português!). Também a Constituição dos EUA circulou em tradução portuguesa e terá sido levada em conta pelas Cortes Constituintes.
Assim sendo, a nossa primeira Constituição acabaria por reter as principais ideias liberais oriundas da Amé
rica do Norte e de França, como sejam a soberania nacional, o regime representativo, a separação de poderes e o reconhecimento de um elenco de direitos e deveres individuais. Importa, no entanto, registar que a Constituição portuguesa de 1822, em várias matérias, alcançou a originalidade e estabeleceu diferenças substanciais em relação à sua principal fonte, a Constituição de Cádis.
Registem-se em especial duas delas. A primeira diz respeito ao enunciado dos direitos individuais, que na Constituição de 1822 integravam um capítulo próprio, colocado à cabeça do texto constitucional, e que na Constituição de Cádis estavam dispersos pelo texto constitucional. A segunda diferença diz respeito ao sistema eleitoral previsto para as cortes ordinárias subsequentes, que na Constituição portuguesa eram eleições diretas e na Constituição espanhola eram eleições indiretas, em três graus (sistema que tinha sido adotado em Portugal na eleição das Cortes de 1820). De uma forma mais pontual, notam-se diferenças textuais ao nível (i) do conceito de soberania; (ii) da consagração textual da independência dos três poderes do Estado; (iii) da atribuição da cotitularidade do poder executivo ao rei e aos secretários de Estado e ministros; (iv) do tratamento mais restritivo da pessoa do rei e das prerrogativas constitucionais que lhe são atribuídas; (v) do poder de veto legislativo do Rei.
Traços característicos da Constituição A Constituição de 1822 foi sistematizada em seis títulos (alguns subdivididos em capítulos) e 240 artigos. De salientar que o texto abre com o título reservado aos “direitos e deveres individuais dos portugueses” (primeiros 19 artigos), caso único do constitucionalismo português, uma vez que as cinco constituições seguintes elegerem para capítulo introdutório os “princípios fundamentais”.
A propósito da importância atribuída aos direitos individuais, são dignos de menção os seguintes aspetos: (i) reconhecimento dos direitos de liberdade, propriedade e segurança; (ii) explícito reconhecimento da liberdade de expressão e proibição da tortura; (iii) peso considerável dado às garantias de âmbito penal; (iv) distinção entre direitos individuais e “direitos da Nação” (estes relegados para o título II); (iv) ausência dos atuais direitos económicos, sociais e culturais, direitos esses que exigem prestações do Estado – sendo certo que os liberais preconizavam uma rígida separação entre o Estado e a sociedade –, embora não faltem alguns afloramentos embrionários (arts. 237.º, 238.º e 240.º); (v) conivência com a escravatura em mais de um preceito (arts. 21.º, IV, 35.º, VII e 37.º), contrariando assim as conceções cristãs e liberais que inspiraram a primeira Constituição portuguesa.
Para além da garantia e tutela dos direitos fundamentais, a Constituição consagrava, como princípios fundamentais, o princípio da igualdade perante a lei (art. 9.º), o princípio da soberania nacional (arts. 26.º e 27.º), o princípio representativo (arts. 26.º, 27.º, 32.º e 94.º), o princípio monárquico constitucional (art. 29.º), o princípio da separação de poderes (arts. 29.º e 30.º), o princípio democrático (arts. 26.º, 27.º e 121.º) e o princípio da supremacia da lei (art. 104.º).
Outro grande mérito constitucional do texto de 1822 foi o da regeneração política das antigas instituições, particularmente das Cortes gerais e do respetivo sistema eleitoral adotado. Para o efeito, o território do país foi dividido em 26 círculos eleitorais plurinominais, que elegiam um total de 102 deputados ordinários e outros tantos substitutos: Arcos de Valdevez (4 deputados), Barcelos (4 deputados), Braga (4 deputados), Guimarães (4 deputados), Penafiel (4 deputados), Porto (5 deputados), Bragança (4 deputados), Vila Real (5 deputados), Arganil (3 deputados), Aveiro (4 deputados), Castelo Branco (3 deputados), Coimbra (5 deputados), Feira (3 deputados), Guarda (3 deputados), Lamego (4 deputados), Trancoso (3 deputados), Viseu (4 deputados), Alenquer (3 deputados), Leiria (3 deputados), Lisboa (9 deputados), Tomar (5 deputados), Setúbal (3 deputados), Beja (3 deputados), Évora (3 deputados), Portalegre (3 deputados) e Faro (4 deputados).
O mapa eleitoral dos domínios ultramarinos foi organizado nos seguintes círculos eleitorais: ilhas da Madeira e Porto Santo (3 deputados), Açores (3 deputados), Angola (1 deputado), Cabo Verde (2 deputados), S. Tomé e Prínci
pe (1 deputado), Moçambique (1 deputado), Goa (1 deputado), Macau, Timor e Solor (1 deputado). Às Juntas Provisionais do Brasil foi dada a faculdade de formarem as suas próprias divisões eleitorais “segundo a melhor comodidade dos povos”, determinado a cabeça de cada divisão “atendendo à sua centralidade e importância”. Foram criadas 14 divisões eleitorais – Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Negro, Santa Catarina e S. Paulo –, para elegerem 39 deputados.
Pela primeira vez foram instituídas eleições diretas, com imposição de uma maioria absoluta dos votos para se ser eleito deputado, se necessário em segunda volta eleitoral, e um escrutínio feito em três graus ou níveis (1.º nas assembleias primárias; 2.º na Casa da Câmara do município; 3.º na Casa da Câmara cabeça da divisão eleitoral). O voto era único e semissecreto, realizado por lista plurinominal a entregar na respetiva mesa eleitoral – os eleitores deveriam levar escrito em lista “os nomes e ocupações das pessoas em quem votam para deputados”.
Uma das grandes novidades do novo sistema eleitoral de 1822 foi o recenseamento eleitoral, feito através dos chamados livros de matrícula: em cada freguesia era preparado “um livro de matrícula, rubricado pelo presidente da Câmara, no qual o pároco escreverá ou fará escrever, por ordem alfabética, os nomes, moradas e ocupações de todos os moradores que tiverem voto na eleição”. Posteriormente, os livros de matrícula eram verificados pela Câmara municipal e publicados dois meses antes da reunião das assembleias eleitorais para se poderem notar e emendar quaisquer ilegalidades.
As primeiras eleições legislativas portuguesas, para escolha dos deputados que iriam compor as primeiras Cortes ordinárias modernas ocorreram ainda antes da aprovação da Constituição, nos dias 18 de agosto (primeira volta) e 22 de setembro de 1822 (segunda volta). Mas a regeneração política também se fez sentir ao nível do poder local, com as eleições das primeiras câmaras municipais realizadas no dia 13 de outubro de 1822.
São os seguintes os traços fundamentais do sistema político vintista: (i) monocamaralismo – as Cortes passaram a ser constituídas por uma única Câmara de Deputados, eleitos popularmente, em vez dos antigos representantes dos três braços do reino; (ii) sistema de governo dualista ou “presidencialismo monárquico” – separação estrita entre o poder legislativo, competência das Cortes, e o poder executivo, a cargo do Rei (pois nem o Rei podia dissolver o parlamento, nem este podia demitir o governo); (iii) exclusiva responsabilidade política do governo perante o Rei e não perante as Cortes; (iv) veto suspensivo – o veto do rei sobre as leis das Cortes, ouvido o Conselho de Estado, era superável mediante reaprovação parlamentar, sem necessidade de maioria qualificada; (v) mandato representativo dos deputados, que representavam toda a Nação e não os seus círculos eleitorais.
Ao nível da organização territorial do Estado são de assinalar os seguintes pontos: (i) ainda se manteve o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, embora o Brasil já tivesse proclamado a independência unilateral à data da aprovação da Constituição; (ii)
preservou-se a autonomia local dos concelhos, que passaram a eleger diretamente os membros para a Câmara municipal, suplantando o sistema de eleição por “pelouros” instituído por D. João I no ano de 1391; (iii) no cumprimento do princípio da separação de poderes, foram retiradas ao poder judicial (juiz de fora ou ordinário) as antiquíssimas funções económicas e administrativas, que passam a pertencer à Câmara municipal.
Publicação e vigência da Constituição A versão oficial da Constituição, com as assinaturas autógrafas dos deputados constituintes que a assinaram, foi formalizada em dois manuscritos simultâneos: um destinado a ser arquivado na Torre do Tombo (onde ainda se preserva) e o outro a ser depositado no Arquivo das Cortes (em 1920 estava no Arquivo do Ministério Interno, encontrando-se hoje sob a custódia do Arquivo Histórico Parlamentar). De imediato foi impressa a primeira “edição nacional e oficial”, que teve de ser retirada de circulação, por omitir o art. 115.º, e numerar o art. 116.º como sendo o 115.º e assim sucessivamente.
A lacuna foi denunciada e submetida à apreciação parlamentar pelo deputado Bettencourt, em sessão do dia 17 de outubro de 1822, o qual pediu que sobre tão importante objeto se “decrete a providência necessária”. Os deputados secretários procederam ao cotejo do texto impresso da Constituição com o original depositado no Arquivo das Cortes e “acharam que nos ditos exemplares se numera em 115 o artigo 116 e que se deixou suprimido o artigo 115 do original”. Foi determinado que se fizesse nova edição corrigida e o Governo “ponha numa loja pública exemplares para serem trocados pelos outros”. Na cidade do Porto, a segunda edição completa e corrigida já estava disponível ao público em geral, pelo menos, desde o dia 8 de novembro de 1822 (aviso na “Borboleta Constitucional” de 8 de novembro de 1822).
A Constituição vintista teve dois períodos de vigência, ambos efémeros, um imediatamente subsequente à sua aprovação e outro a seguir à sua restauração decretada após a Revolução setembrista de 1836.
O primeiro período de vigência teve início em 23 de setembro de 1822, data da aprovação do texto constitucional pelas Cortes, e terminou logo no ano seguinte, em 3 de junho de 1823. Em protesto contra eventuais alterações à Constituição e modificações no sistema representativo instalado, as Cortes ordinárias suspenderam as sessões, no dia 2 de junho de 1823, e no dia seguinte o rei dissolveu-as de direito e revogou a Constituição de 1822.
O segundo período de vigência teve início a 10 de setembro de 1836, no seguimento da revolução “setembrista”, através do decreto da rainha D. Maria II que repôs em vigor a Constituição de 23 de setembro de 1822, mandando que se procedesse à imediata convocação das Cortes, e terminou a 4 de abril de 1838, por efeito da carta de lei de D. Maria II, promulgando a nova Constituição que tinha sido decretada no dia 20 de março de 1838 pelas Cortes, com o respetivo juramento régio no final.
Dado o escasso tempo de vigência, a Constituição de 1822 não chegou a ser revista, o que, aliás, só poderia ser feito passados quatro anos e por maioria de dois terços dos deputados, tendo as alterações de ser ratificadas na legislatura seguinte, por idêntica maioria.
Durante o segundo período de vigência interina ocorreu um curioso caso de veto legislativo por inconstitucionalidade: a rainha, D. Maria II, recusou a sanção régia a um decreto das Cortes Constituintes (decreto de 24 de agosto de 1837) por considerar que tal projeto de lei “destruiria, se fosse sancionado, os princípios estabelecidos na Constituição”. Este tem sido comummente considerado o primeiro caso de fiscalização da constitucionalidade em Portugal.
Balanço da Constituição de 1822
A revolta anticonstitucional da “Vilafrancada” fez com que, no dia 3 de junho de 1823, o rei dissolvesse as Cortes ordinárias e revogasse a Constituição de 1822, que, na visão de um crítico, tendo saído “essencialmente democrática e servilmente modelada pela Constituição espanhola, mais provocara antipatias do que simpatias no país” – palavras de Simão José da Luz Soriano (1808-1891). Apesar da vigência efémera, repartida pelos referidos dois curtos períodos (18221823 e 1836-1838) – que não permitiram que chegasse a ser verdadeiramente posta à prova, nomeadamente quanto ao papel do rei no governo e quanto à responsabilidade do Governo perante o Parlamento –, a Constituição de 1822 deixou a sua forte “pegada” liberal e democrática no constitucionalismo português.
O texto constitucional vintista estabeleceu, pela primeira vez, os pilares do Estado democrático-liberal em Portugal (direitos fundamentais, separação de poderes, “governo representativo” e subordinação do rei à Constituição e à lei parlamentar), incluindo alguns aspetos que só voltariam a ser positivados no texto da atual Constituição da República Portuguesa de 1976 – v.g., o sistema parlamentar unicamaralista e o recenseamento eleitoral oficioso, que foi implementado em Portugal pela lei eleitoral de 11 de julho de 1822, através dos chamados livros de matrícula, e constitucionalizado no texto de 1822 (art. 43.º).
Devemos ter em conta, no entanto, que a nova ordem constitucional já tinha começado efetivamente no dia 24 de agosto de 1820, no Porto: (i) quando os revolucionários expropriaram os poderes legislativo e executivo ao Rei e à regência de Lisboa; (ii) quando se procedeu à convocação e eleição das Cortes, sem distinção de classes, para fazerem a Constituição do país e exercerem o poder legislativo; (iii) quando se passaram a fruir as liberdades individuais, a começar pela liberdade de imprensa.
Durante o mandato das Cortes Constituintes (1821-1822) a nova ordem constitucional, provisoriamente ancorada nas Bases da Constituição, foi sendo implantada sem esperar pela Constituição definitiva, através: (i) do direito de petição dos cidadãos; (ii) do exercício de competências legislativas ordinárias pelas Cortes, decretando a liberdade de imprensa, a extinção da Inquisição, a redução dos privilégios da nobreza; (iii) da eleição antecipada das Cortes ordinárias, com base na lei eleitoral de 11 de julho de 1822; (iii) da eleição das câmaras municipais constitucionais, com base no decreto eleitoral de 20 de julho de 1822;, etc.
A Constituição nasceu da revolução e esta realizou-se plenamente na Constituição. E a herança da Constituição de 1822 perdura até hoje.