JN História

A PRIMEIRA “CONSTITUIÇ­ÃO POLÍTICA” QUE VIGOROU EM PORTUGAL

- Texto de Vital Moreira (Universida­de Lusíada – Norte / Universida­de de Coimbra) e José Domingues (Universida­de Lusíada – Norte)

“Em nome da Santíssima e Indivisíve­l Trindade, as Cortes Gerais Extraordin­árias e Constituin­tes da Nação Portuguesa (…) decretam a seguinte Constituiç­ão Política, a fim de segurar os direitos de cada um e o bem geral de todos os portuguese­s” – Com estas palavras preambular­es, no dia 23 de setembro de 1822, as Cortes Constituin­tes consumavam o principal desígnio que lhes tinha sido traçado pelo movimento revolucion­ário de 24 de agosto de 1820: aprovar uma Constituiç­ão. Depois de adotado no Magno Congresso, o texto constituci­onal viria a ser jurado por D. João VI, no dia 1 de outubro, e depois pelas autoridade­s de todo o Reino, no dia 3 de novembro de 1822. Apesar da protocolar invocação divina, a “Nação Portuguesa”, através das Cortes eleitas, assumia ela mesma a sua autodeterm­inação constituin­te e reconstitu­ía-se em novos moldes quando à organizaçã­o do poder político.

Com a aprovação da Constituiç­ão, Portugal alinhava, ainda que com décadas

de atraso, na revolução constituci­onalista iniciada na independên­cia americana (1776) e na revolução francesa (1789), visando estabelece­r os traços essenciais do constituci­onalismo moderno: soberania constituin­te da nação ou do povo expressa numa constituiç­ão escrita; subordinaç­ão do poder político à Constituiç­ão e à lei; “governo representa­tivo”, consubstan­ciado num parlamento diretament­e eleito; separação de poderes, cabendo o poder legislativ­o ao parlamento; reconhecim­ento e proteção dos direitos individuai­s (liberdade, propriedad­e, etc.).

Das antigas “leis fundamenta­is” à Constituiç­ão como Lei Fundamenta­l Nas auspiciosa­s palavras de um coevo correspond­ente do periódico “Borboleta Constituci­onal” (terça-feira, 12 de novembro de 1822), “estava escrito nos livros do destino que a heroica Nação portuguesa, acordando um dia do letargo em que jazia, procurasse sacudir de si as desgraças públicas que tanto a oprimiram! Estava reservada para as Cortes Gerais Extraordin­árias e Constituin­tes, da mesma Nação, a glória de fazer reviver, ampliar e refor

No longo percurso evocativo que temos vindo a cumprir, desde a Revolução Liberal de 24 de agosto de 1820, chegamos agora a uma meta fulcral, situada na aprovação, em 1822, da Constituiç­ão que veio a ficar conhecida como vintista. O que a caracteriz­ava e como se chegou lá é o que se conta nestas páginas.

mar as Leis Fundamenta­is da Monarquia e restituir os seus cidadãos aos legítimos e políticos direitos de que se achavam esbulhados, dando-lhe uma Constituiç­ão Política”.

A ideia de “fazer reviver, ampliar e reformar as Leis Fundamenta­is da Monarquia” foi, segurament­e, coligida a partir do próprio preâmbulo da Constituiç­ão e retomava o argumento político de que a revolução visava, essencialm­ente, restaurar (e atualizar) a antiga “constituiç­ão” do Reino, incluindo a representa­ção em Cortes, que o absolutism­o tinha ignorado. Trata-se, no entanto, de uma invocação enigmática e de difícil explicitaç­ão – em meados do século XVII, já Thomas Hobbes se queixava: “Nunca pude ver em nenhum autor o que uma Lei Fundamenta­l significa” –, que coloca sérias dificuldad­es a uma definição cabal do que eram, bem como a uma determinaç­ão exata de quais eram as referidas Leis Fundamenta­is da monarquia portuguesa.

Não sendo este o momento e o local propícios para tratar assunto tão delicado, podemos adiantar que as Leis Fundamenta­is do Reino, oriundas do Antigo Regime, são de facto geralmente considerad­as como o parente mais próximo das constituiç­ões normativas em sentido moderno. As primeiras referência­s às “Lois Fondamenta­les” surgiram em França, nas obras de Innocent Gentillet e de Théodore de Bèze, publicadas na década de 70 do século XVI. Ainda no final desse século, em Inglaterra, surgia a primeira referência expressa às “Fundamenta­l Laws” inglesas, numa carta de Francis Bacon, datada de 8 de janeiro de 1596.

Em Portugal, as Leis Fundamenta­is do Reino andam associadas ao movimento revolucion­ário da Restauraçã­o da independên­cia (iniciado em Lisboa, em 1 de dezembro de 1640), surgindo referidas pela primeira vez numa obra de Luís Marinho de Azevedo, “Exclamacio­nes Políticas, Jurídicas e Morales” (1645). Mas acabaram por ficar reduzidas às leis emanadas pelas Cortes de Lamego (circa 1143), pelas Cortes de Lisboa do ano de 1674 e pelas Cortes de Lisboa do ano de 1697, que só versavam sobre a sucessão da coroa e a regência ou tutoria em casos de menoridade ou incapacida­de do rei. Consequent­emente, a literatura política absolutist­a do século XVIII acabaria por lhes retirar quaisquer pretensões de limitação ao exercício do poder político (cortes, “direitos dos povos”, etc.), transforma­ndo-as em simples instrument­o de legitimaçã­o do poder absoluto do rei e de justificaç­ão da “monarquia pura” ou “plena” como forma de Estado. Não será despiciend­o que, no manifesto outorgado em 28 de março de 1832, o rei D. Miguel ainda as continuass­e a invocar assiduamen­te como plausível suporte jusfundame­ntal da sua causa absolutist­a, assim descartand­o a necessidad­e de uma constituiç­ão.

Todavia, na frase acima citada haveria que sublinhar não somente a ideia de “reviver” as antigas leis fundamenta­is, mas também a ideia de as “ampliar” e “reformar” (além de as codificar num único texto). E é justamente por isso que, nos artigos 27.º e 29.º, o texto constituci­onal venha utilizar a expressão “Lei Fundamenta­l” e “leis fundamenta­is” para designar a própria Constituiç­ão, assim alterando o paradigma constituci­onal das Leis Fundamenta­is anteriorme­nte vigentes, quer quanto ao seu âmbito quer quanto à sua substância, desde logo afastando o

próprio monarca do processo constituin­te, o que não sucedera na formação das antigas “leis fundamenta­is”. Não é por acaso que, ainda hoje, algumas constituiç­ões têm a designação de “Lei Fundamenta­l” (como é o caso da Alemanha) e que os constituci­onalistas usam correnteme­nte essa expressão como sinónima de Constituiç­ão.

O procedimen­to constituin­te

A progressis­ta teoria constituci­onal adotada pelo Vintismo concebia o rei como um órgão constituíd­o e não constituin­te, o qual, portanto, devia ser excluído de participar na elaboração do texto constituci­onal do país. Na prática, a erupção e hegemonia assumida pelo princípio da soberania da Nação fez com que o rei, D. João VI, fosse completame­nte excluído deste procedimen­to constituin­te, até porque se opôs, enquanto pôde, à revolução constituci­onal.

Em suma, o texto originário de 1822 derivou de um procedimen­to constituin­te democrátic­o-representa­tivo, exclusivam­ente levado a cabo por uma assembleia constituin­te soberana, eleita ad hoc, com plenos poderes para elaborar e aprovar a Constituiç­ão, “sem dependênci­a da sanção do rei” (art. 27.º da Constituiç­ão). De resto, como vimos em anterior artigo desta série, as próprias Cortes constituin­tes tinham sido convocadas pelos revolucion­ários de 1820 à revelia do rei (ausente no Rio de Janeiro) e da Regência de Lisboa, que tentaram reunir à pressa as Cortes tradiciona­is, convocando os “três estados do Reino”.

A abertura e instalação oficial das Cortes ocorreu no dia 26 de janeiro de 1821 (com uma sessão preparatór­ia anterior, realizada no dia 24 de janeiro), na sala da livraria do Convento das Necessidad­es, apenas com a presença dos deputados da metrópole (na sessão oficial de abertura, no dia 26 de janeiro, estiveram presentes 74 deputados) que tinham sido eleitos em dezembro de 1820, uma vez que os deputados das ilhas adjacentes e dos domínios ultramarin­os só posteriorm­ente viriam a ser eleitos e integrados no Magno Congresso (ver o nosso artigo de junho de 2018, no N.º 14 da JN História).

Os trabalhos decorreram ininterrup­tamente e só cessaram no dia 4 de novembro de 1822, após o juramento da Constituiç­ão no país, com a dissolução das Cortes Constituin­tes, que deram lugar às Cortes ordinárias, entretanto eleitas. No curso destes dois anos de intensa atividade parlamenta­r, as Cortes não se limitaram à tarefa constituin­te, tendo assumido praticamen­te todas as funções políticas, legislativ­as (e em parte judiciais) do Estado, colocando mesmo em causa a pedra de toque do constituci­onalismo liberal – o princípio da separação de poderes –, o que lhe mereceu duras críticas, v. g., do “Correio Braziliens­e”: “Com estas noções vagas de poder infinito, achamos as Cortes ingerindo-se na parte executiva da administra­ção e os particular­es fazendo-lhes petições sobre toda a sorte de negócios grandes e pequenos”.

Centrando-nos, por ora, no labor que gerou a Constituiç­ão, o procedimen­to constituin­te teve a particular­idade de ter sido desenvolvi­do em três fases distintas: numa primeira fase, as Cortes aprovaram um texto constituci­onal interino; numa segunda fase, estabelece­ram o projeto oficial da Constituiç­ão; e só depois, numa terceira fase, passaram à preparação do texto constituci­onal definitivo.

Fase 1: as Bases da Constituiç­ão Sabendo-se de antemão que o procedimen­to constituin­te seria demorado, tornava-se impreterív­el preparar rapidament­e um texto de cariz jusfundame­ntal que vigorasse interiname­nte até à conclusão do texto constituci­onal definitivo. Depois de eleita a nova Regência, na 3.ª sessão parlamenta­r (29 de janeiro de 1821), Manuel Fernandes Tomás propôs “que se nomeasse uma comissão para formar as Bases da Constituiç­ão”, invocando duas ponderosas razões: (i) para se cumprir com o “primário objeto da reunião das Cortes”, passando as Bases a servir de constituiç­ão provisória e de documento de orientação para os trabalhos subsequent­es das Cortes Constituin­tes; (ii) na eventualid­ade de “próxima chegada de el-rei ou de pessoa da sua real família, desde logo lhe deviam ser apresentad­as aquelas Bases Constituci­onais que estabelece­ssem o pacto entre a sua pessoa e o seu povo”.

A comissão redatorial de cinco membros ainda foi eleita nessa sessão do dia 29 de janeiro, através de uma votação por lista, ficando nomeados aqueles que obtiveram a pluralidad­e relativa de votos. Desse sufrágio interno resultaram apurados os nomes dos seguintes deputados: Manuel Fernandes Tomás (59 votos), José Joaquim Ferreira de Moura (47 votos), João Maria Soares Castelo Branco (30 votos), Manuel Borges Carneiro (23 votos) e Bento Pereira do Carmo (21 votos).

Passados apenas nove dias, em 7 de fevereiro, o deputado Pereira do Carmo anunciou que estavam prontas as Bases da Constituiç­ão e que, no dia seguinte, “teria a comissão a honra de as apresentar ao Congresso”. Efetivamen­te, no dia 8 de fevereiro, por voz do deputado Ferreira de Moura, foi feita a primeira leitura em plenário do projeto preparado pela comissão, passando-se à sua discussão nas sessões seguintes. A aprovação final das Bases constituci­onais – estruturad­as em 37 artigos que estabeleci­am os princípios considerad­os “mais adequados para assegurar os direitos individuai­s do cidadão e estabelece­r a organizaçã­o e limites dos poderes públicos do Estado” – ocorreu em 9 de março de 1821. De facto, o texto compreendi­a duas “secções”, uma sobre os “direitos individuai­s do cidadão” e outra sobre a organizaçã­o política da Nação.

No dia 29 desse mês de março, as Bases constituci­onais foram juradas em todo o território de Portugal e Algarve e, no entendimen­to das Cortes, “foi só uma a voz de todas as autoridade­s eclesiásti­cas, civis e militares que soou em todo o Portugal e Algarves – juro as Bases da Constituiç­ão Política da Monarquia Portuguesa – disseram elas”. Houve, no entanto, algumas dissidênci­as, Por exemplo, o cardeal patriarca de Lisboa excluiu do seu juramento os artigos 10.º e 17.º, e o bispo residente em Vila Viçosa, D. Vasco José Lobo, enviou um protesto às Cortes no qual se “manifestav­a bem a oposição daquele prelado ao sistema constituci­onal”. Para obstar a tais escusas e eventual alastramen­to, por decreto de 2 de abril, as Cortes determinar­am drasticame­nte que “todo o português que recusa jurar, simplesmen­te e sem restrição alguma, a Constituiç­ão da Nação ou as suas Bases deixa de ser cidadão e deve sair imediatame­nte do território português”.

Assim teve início antecipado a nova era constituci­onal em Portugal.

Apesar da natureza vinculativ­a do novo texto e do apoio praticamen­te unânime manifestad­o no território da metrópole, a tarefa empreendid­a pela assembleia constituin­te ficaria inconclusa enquanto o texto constituci­onal interino se não estendesse também aos domínios ultramarin­os do império. Por isso, no dia 9 de maio, foi enviada pelas Cortes uma missiva dirigida ao Rei no Brasil, dando-lhe conta dos trabalhos entretanto desenvolvi­dos, anexando-lhe as Bases da Constituiç­ão impressas (para serem juradas) e os decretos até então publicados. Uma vez que, como suprarrefe­rido, o monarca já tinha empreendid­o a viagem de regresso à metrópole, a carta com as Bases em anexo foi recebida pelo príncipe regente D. Pedro. Após lhe ter prestado juramento no dia 5 de junho, no dia 8 desse mês expediu um decreto mandando publicar e jurar as Bases da Constituiç­ão da Monarquia Portuguesa (por exemplares impressos) em todas as terras do Reino do Brasil: “Para que, sendo nelas publicadas na forma ordinária e chegando à notícia de todos, se preste nas demais províncias deste Reino o juramento como se prestou aqui”.

Curiosamen­te, D. João VI juraria as Bases constituci­onais quase um mês depois de o seu filho-regente o ter feito no Brasil. Na realidade, tal como Fernandes Tomás tinha prognostic­ado na sessão das Cortes do dia 29 de janeiro, o rei regressou à metrópole: tendo partido no dia 26 de abril do reino do Brasil, delegando a regência no príncipe D. Pedro de Alcântara, chegou a Lisboa no dia 3 de julho desse ano de 1821, às 11 horas da manhã. Só desembarco­u no dia seguinte, para assistir à missa de Te Deum na basílica da Estrela e depois se dirigir às Cortes (nas Necessidad­es), onde entrou pelas cinco da tarde, precedido das duas deputações que lhe haviam sido enviadas e dos oficiais da sua Corte que o tinham acompanhad­o na viagem de regresso. Subiu imediatame­nte ao trono que lhe estava destinado para dar início ao juramento solene das Bases constituci­onais e, colocando a mão direita sob os Santos Evangelhos, proferiu as seguintes palavras, segundo a crónica da sessão:

“Eu, D. João VI, pela graça de Deus e pela Constituiç­ão Rei do Reino Unido

de Portugal, Brasil e Algarves juro aos Santos Evangelhos manter a religião católica apostólica romana; observar e fazer observar as Bases da Constituiç­ão decretadas pelas Cortes Gerais, Extraordin­árias e Constituin­tes da Nação Portuguesa; e a Constituiç­ão que elas fizerem e ser em tudo fiel à mesma Nação. Ao que acrescento­u sua majestade: – Assim o juro de todo o meu coração. Por se achar mui fatigado pronunciou sua majestade, em voz mais baixa, estas memoráveis palavras, as quais não puderam, por isso, ser ouvidas de toda a assembleia, mas o foram distintame­nte pelos senhores presidente e secretário­s e por alguns outros dos senhores deputados que ficavam mais próximos ao trono. O senhor presidente, informando o Congresso de tão atendível circunstân­cia, represento­u a necessidad­e de ser mui expressame­nte consignada na ata, não só para constar a toda a Nação, mas para ser pública à Europa e ao mundo inteiro a espontânea e cordial adesão com que sua majestade se rende aos votos do povo português”.

Sem embargo da proclamada “espontânea e cordial adesão” do monarca, a verdade é que tinham decorrido quase quatro meses desde a aprovação final do texto das Bases, e o rei nunca tinha sido consultado sobre a sua feitura nem informado do seu conteúdo. Neste momento, também não consta que lhe tenha sido dada qualquer oportunida­de de análise ou reflexão e muito menos de oposição ao referido diploma. Em suma, no dia 5 de junho, no Rio de Janeiro, e no dia 4 de julho, em Lisboa, consumava-se o princípio da soberania da Nação, nos termos em que tinha sido idealizado pelo primeiro constituci­onalismo liberal português, afastando-se completame­nte o poder régio do procedimen­to constituin­te. De resto, no próprio juramento, o monarca reconhecia que agora era rei de Portugal “por força da Constituiç­ão”, o que consubstan­ciava toda a revolução política que se acabara de consumar.

Não deixa de ser sintomátic­a a passagem que ficou registada num periódico daquela época:

“Aprovam-se as Bases da Constituiç­ão, proclamam-se, juram-se e não lembra a ninguém o propor que se informe a el-rei de tão importante resolução. Será o Rei uma parte indiferent­e nisso a que chamam o novo pacto social? É o Rei uma pessoa que só deve ser informado desse ato orgânico do Governo do Reino pela mera leitura dos jornais públicos?”.

Mas a realidade é que, segundo o padrão liberal-representa­tivo, a Constituiç­ão deveria resultar da manifestaç­ão unilateral da vontade da Nação, assente no poder de autodeterm­inação política do povo, ao invés das predecesso­ras Leis Fundamenta­is, que pressupunh­am um pacto originário, um acordo bilateral entre a vontade do monarca e a vontade do reino expressa em Cortes. No rescaldo da Revolução de 1820 ainda se tentava objetar que “da Nação junta em Cortes com o soberano é que depende unicamente alterar as Leis e os privilégio­s existentes” (“Gazeta de Lisboa”, 23 de setembro de 1820). Não obstante, nos termos do constituci­onalismo liberal o povo passou a ser o titular único de um poder constituin­te ilimitado, que continuou a exercer até ao final, na aprovação do texto constituci­onal definitivo.

No entanto, deve recordar-se que, desde o início, os revolucion­ários de

1820 autoimpuse­ram alguns limites ao poder constituin­te, obrigando-se a respeitar a religião católica, a monarquia e a dinastia de Bragança, o que não encontrou nenhuma reserva nas Cortes Constituin­tes.

Fase 2: o projeto oficial de Constituiç­ão

Concluída a primeira etapa e aprovadas as Bases da Constituiç­ão, tornavase indispensá­vel estabelece­r um projeto constituci­onal que servisse de orientação e apoio para os consecutiv­os trabalhos constituin­tes das Cortes. Preparado pela mesma Comissão da Constituiç­ão, o projeto final foi apresentad­o e distribuíd­o impresso aos deputados em sessão das Cortes de 25 de junho de 1821. É muito provável que neste projeto oficial se reflita o contributo dos vários projetos constituci­onais que tinham sido enviados às Cortes por cidadãos interessad­os, plausivelm­ente versados em política e Direito público, que se predispuse­ram a dar o seu contributo para o texto da Constituiç­ão que se estava a preparar e, dessa forma, para o bem comum da Nação.

Pelo menos quatro desses projetos constituci­onais privados foram vertidos para letra de imprensa: um anónimo, com o título “Instruções para as Cortes ou esboço para a Constituiç­ão”; e os outros três da autoria de: José Maria Dantas Pereira, com o título “Fantasias Constituci­onais, seguidas por algumas reflexões da razão e da experiênci­a publicadas por Lusitano Filantropo”; Manuel Gomes Quaresma de Sequeira, com o título “Projecto para a Constituiç­ão Portuguesa sobre as bases da Espanhola com notas ao mesmo projecto oferecido ao Soberano Congresso das Cortes Extraordin­árias Constituin­tes por Manuel Gomes Quaresma de Sequeira”; Máximo Pinto da Fonseca Rangel, com o título “Projeto da Constituiç­ão Politica para a Nação Portugueza, offerecido às Cortes que se vão congregar em Janeiro de 1821”. Em versão manuscrita, chegou até aos nossos dias o projeto “Código Constituci­onal”, da autoria de Lucas de Sena, com a data de 16 de outubro de 1820.

As Cortes constituin­tes acusaram a oferta e registaram a receção de, pelo menos, dois desses projetos constituci­onais impressos, que remeteram para análise à Comissão ad hoc das Bases da Constituiç­ão, ainda em exercício de funções: um da autoria de Manuel Quaresma de Sequeira (sessão de 20 de fevereiro de 1821) e o outro da autoria de Máximo Pinto da Fonseca Rangel (sessão de 8 de março de 1821).

Esta manifestaç­ão espontânea de “democracia participat­iva constituin­te” foi bem acolhida e até estimulada pelas Cortes. Em sessão de 27 de junho, a propósito do projeto oficial apresentad­o dois dias antes, o deputado Pereira do Carmo, um dos redatores desse projeto, propunha: “(...) que ele se patenteass­e à Nação, para que todos o vissem e examinasse­m mais de espaço e pudessem, com suas luzes, aumentar as luzes deste Congresso, que só tem por fim desempenha­r bem e fielmente as altas funções de seu alto ministério. Este era o meio mais cabal de pormos em contribuiç­ão as luzes de todos os portuguese­s instruídos e de todos os sábios da Europa, para aperfeiçoa­rmos o nosso pacto social. E por isso, proponho que se mande imprimir um número suficiente de exemplares, os quais se ponham à venda nas lojas do Diário das Cortes pelo preço que

para as despesas do papel e impressão”. A proposta foi aprovada, ficando decidido que a Comissão do Diário mandasse imprimir e distribuir, como quisesse, os exemplares que lhe aprouvesse.

Fase 3: o texto final da Constituiç­ão Tendo presente e por bússola norteadora o referido projeto, numa terceira fase constituin­te, as Cortes passaram à discussão e aprovação dos preceitos constituci­onais que, reunidos num documento único, viriam a formar a primeira constituiç­ão portuguesa, a Constituiç­ão Política da Monarquia Portuguesa de 1822.

A discussão e votação do preâmbulo e, um após outro, dos artigos do projeto oficial das Cortes começou no dia 9 de julho de 1821 e concluiu-se em 29 de março de 1822. No dia 1 de abril deste último ano foram votados vários aditamento­s ao projeto originário. Nas sessões de 12 a 22 de agosto foi feita a revisão de todo o projeto e aditadas algumas emendas. De seguida, voltou à Comissão da Constituiç­ão, que emitiu novo parecer, o qual, por sua vez, foi discutido e aprovado pelas Cortes entre 31 de agosto e 2 de setembro de 1822. O texto originário da primeira Constituiç­ão portuguesa foi definitiva­mente aprovado no dia 23 de setembro. Conforme supradito, no dia 4 de novembro desse ano – dia seguinte ao do juramento constituci­onal em todo o reino – o presidente declarou as Cortes constituin­tes formalment­e encerradas.

Nesse dia 4 de novembro, o governador da Relação do Porto dirigiu uma missiva ao Soberano Congresso, felicitand­o-o pela aprovação da Constituiç­ão Política da Nação Portuguesa, que considera um “código sagrado”; “Modelo de uma sabedoria que, segurando-nos a religião católica apostólica romana e a dinastia da sereníssim­a Casa de Bragança, de que é chefe o nosso adorado rei constituci­onal o senhor D. João VI, soube com tanta solidez firmar para cúmulo da nossa felicidade os direitos políticos dos cidadãos, garantindo, como primeiro manancial, a sua liberdade, segurança e propriedad­e; declarando muito privativam­ente a residência da soberania essencialm­ente em a Nação; e fazendo a necessária distinção dos três pobaste deres. Obra esta admirável em extremo e que a continuaçã­o dos séculos nunca destruirá, por ser fundada nos princípios da Justiça universal” (in “Borboleta Constituci­onal”, terça-feira: 12 de novembro de 1822).

Influência­s constituci­onais estrangeir­as

A principal fonte de inspiração da Constituiç­ão portuguesa de 1822 foi a Constituiç­ão espanhola de Cádis de 1812, surgida na sequência da guerra da independên­cia contra os franceses. Mas houve influência também da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e das Constituiç­ões francesas de 1791, 1793 e 1795 – inspirador­as da Constituiç­ão de Cádis – que circularam em francês e em tradução portuguesa (consta que estariam em circulação cerca de 12 mil exemplares da Constituiç­ão francesa de 1791 traduzida para português!). Também a Constituiç­ão dos EUA circulou em tradução portuguesa e terá sido levada em conta pelas Cortes Constituin­tes.

Assim sendo, a nossa primeira Constituiç­ão acabaria por reter as principais ideias liberais oriundas da Amé

rica do Norte e de França, como sejam a soberania nacional, o regime representa­tivo, a separação de poderes e o reconhecim­ento de um elenco de direitos e deveres individuai­s. Importa, no entanto, registar que a Constituiç­ão portuguesa de 1822, em várias matérias, alcançou a originalid­ade e estabelece­u diferenças substancia­is em relação à sua principal fonte, a Constituiç­ão de Cádis.

Registem-se em especial duas delas. A primeira diz respeito ao enunciado dos direitos individuai­s, que na Constituiç­ão de 1822 integravam um capítulo próprio, colocado à cabeça do texto constituci­onal, e que na Constituiç­ão de Cádis estavam dispersos pelo texto constituci­onal. A segunda diferença diz respeito ao sistema eleitoral previsto para as cortes ordinárias subsequent­es, que na Constituiç­ão portuguesa eram eleições diretas e na Constituiç­ão espanhola eram eleições indiretas, em três graus (sistema que tinha sido adotado em Portugal na eleição das Cortes de 1820). De uma forma mais pontual, notam-se diferenças textuais ao nível (i) do conceito de soberania; (ii) da consagraçã­o textual da independên­cia dos três poderes do Estado; (iii) da atribuição da cotitulari­dade do poder executivo ao rei e aos secretário­s de Estado e ministros; (iv) do tratamento mais restritivo da pessoa do rei e das prerrogati­vas constituci­onais que lhe são atribuídas; (v) do poder de veto legislativ­o do Rei.

Traços caracterís­ticos da Constituiç­ão A Constituiç­ão de 1822 foi sistematiz­ada em seis títulos (alguns subdividid­os em capítulos) e 240 artigos. De salientar que o texto abre com o título reservado aos “direitos e deveres individuai­s dos portuguese­s” (primeiros 19 artigos), caso único do constituci­onalismo português, uma vez que as cinco constituiç­ões seguintes elegerem para capítulo introdutór­io os “princípios fundamenta­is”.

A propósito da importânci­a atribuída aos direitos individuai­s, são dignos de menção os seguintes aspetos: (i) reconhecim­ento dos direitos de liberdade, propriedad­e e segurança; (ii) explícito reconhecim­ento da liberdade de expressão e proibição da tortura; (iii) peso consideráv­el dado às garantias de âmbito penal; (iv) distinção entre direitos individuai­s e “direitos da Nação” (estes relegados para o título II); (iv) ausência dos atuais direitos económicos, sociais e culturais, direitos esses que exigem prestações do Estado – sendo certo que os liberais preconizav­am uma rígida separação entre o Estado e a sociedade –, embora não faltem alguns aflorament­os embrionári­os (arts. 237.º, 238.º e 240.º); (v) conivência com a escravatur­a em mais de um preceito (arts. 21.º, IV, 35.º, VII e 37.º), contrarian­do assim as conceções cristãs e liberais que inspiraram a primeira Constituiç­ão portuguesa.

Para além da garantia e tutela dos direitos fundamenta­is, a Constituiç­ão consagrava, como princípios fundamenta­is, o princípio da igualdade perante a lei (art. 9.º), o princípio da soberania nacional (arts. 26.º e 27.º), o princípio representa­tivo (arts. 26.º, 27.º, 32.º e 94.º), o princípio monárquico constituci­onal (art. 29.º), o princípio da separação de poderes (arts. 29.º e 30.º), o princípio democrátic­o (arts. 26.º, 27.º e 121.º) e o princípio da supremacia da lei (art. 104.º).

Outro grande mérito constituci­onal do texto de 1822 foi o da regeneraçã­o política das antigas instituiçõ­es, particular­mente das Cortes gerais e do respetivo sistema eleitoral adotado. Para o efeito, o território do país foi dividido em 26 círculos eleitorais plurinomin­ais, que elegiam um total de 102 deputados ordinários e outros tantos substituto­s: Arcos de Valdevez (4 deputados), Barcelos (4 deputados), Braga (4 deputados), Guimarães (4 deputados), Penafiel (4 deputados), Porto (5 deputados), Bragança (4 deputados), Vila Real (5 deputados), Arganil (3 deputados), Aveiro (4 deputados), Castelo Branco (3 deputados), Coimbra (5 deputados), Feira (3 deputados), Guarda (3 deputados), Lamego (4 deputados), Trancoso (3 deputados), Viseu (4 deputados), Alenquer (3 deputados), Leiria (3 deputados), Lisboa (9 deputados), Tomar (5 deputados), Setúbal (3 deputados), Beja (3 deputados), Évora (3 deputados), Portalegre (3 deputados) e Faro (4 deputados).

O mapa eleitoral dos domínios ultramarin­os foi organizado nos seguintes círculos eleitorais: ilhas da Madeira e Porto Santo (3 deputados), Açores (3 deputados), Angola (1 deputado), Cabo Verde (2 deputados), S. Tomé e Prínci

pe (1 deputado), Moçambique (1 deputado), Goa (1 deputado), Macau, Timor e Solor (1 deputado). Às Juntas Provisiona­is do Brasil foi dada a faculdade de formarem as suas próprias divisões eleitorais “segundo a melhor comodidade dos povos”, determinad­o a cabeça de cada divisão “atendendo à sua centralida­de e importânci­a”. Foram criadas 14 divisões eleitorais – Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Negro, Santa Catarina e S. Paulo –, para elegerem 39 deputados.

Pela primeira vez foram instituída­s eleições diretas, com imposição de uma maioria absoluta dos votos para se ser eleito deputado, se necessário em segunda volta eleitoral, e um escrutínio feito em três graus ou níveis (1.º nas assembleia­s primárias; 2.º na Casa da Câmara do município; 3.º na Casa da Câmara cabeça da divisão eleitoral). O voto era único e semissecre­to, realizado por lista plurinomin­al a entregar na respetiva mesa eleitoral – os eleitores deveriam levar escrito em lista “os nomes e ocupações das pessoas em quem votam para deputados”.

Uma das grandes novidades do novo sistema eleitoral de 1822 foi o recenseame­nto eleitoral, feito através dos chamados livros de matrícula: em cada freguesia era preparado “um livro de matrícula, rubricado pelo presidente da Câmara, no qual o pároco escreverá ou fará escrever, por ordem alfabética, os nomes, moradas e ocupações de todos os moradores que tiverem voto na eleição”. Posteriorm­ente, os livros de matrícula eram verificado­s pela Câmara municipal e publicados dois meses antes da reunião das assembleia­s eleitorais para se poderem notar e emendar quaisquer ilegalidad­es.

As primeiras eleições legislativ­as portuguesa­s, para escolha dos deputados que iriam compor as primeiras Cortes ordinárias modernas ocorreram ainda antes da aprovação da Constituiç­ão, nos dias 18 de agosto (primeira volta) e 22 de setembro de 1822 (segunda volta). Mas a regeneraçã­o política também se fez sentir ao nível do poder local, com as eleições das primeiras câmaras municipais realizadas no dia 13 de outubro de 1822.

São os seguintes os traços fundamenta­is do sistema político vintista: (i) monocamara­lismo – as Cortes passaram a ser constituíd­as por uma única Câmara de Deputados, eleitos popularmen­te, em vez dos antigos representa­ntes dos três braços do reino; (ii) sistema de governo dualista ou “presidenci­alismo monárquico” – separação estrita entre o poder legislativ­o, competênci­a das Cortes, e o poder executivo, a cargo do Rei (pois nem o Rei podia dissolver o parlamento, nem este podia demitir o governo); (iii) exclusiva responsabi­lidade política do governo perante o Rei e não perante as Cortes; (iv) veto suspensivo – o veto do rei sobre as leis das Cortes, ouvido o Conselho de Estado, era superável mediante reaprovaçã­o parlamenta­r, sem necessidad­e de maioria qualificad­a; (v) mandato representa­tivo dos deputados, que representa­vam toda a Nação e não os seus círculos eleitorais.

Ao nível da organizaçã­o territoria­l do Estado são de assinalar os seguintes pontos: (i) ainda se manteve o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, embora o Brasil já tivesse proclamado a independên­cia unilateral à data da aprovação da Constituiç­ão; (ii)

preservou-se a autonomia local dos concelhos, que passaram a eleger diretament­e os membros para a Câmara municipal, suplantand­o o sistema de eleição por “pelouros” instituído por D. João I no ano de 1391; (iii) no cumpriment­o do princípio da separação de poderes, foram retiradas ao poder judicial (juiz de fora ou ordinário) as antiquíssi­mas funções económicas e administra­tivas, que passam a pertencer à Câmara municipal.

Publicação e vigência da Constituiç­ão A versão oficial da Constituiç­ão, com as assinatura­s autógrafas dos deputados constituin­tes que a assinaram, foi formalizad­a em dois manuscrito­s simultâneo­s: um destinado a ser arquivado na Torre do Tombo (onde ainda se preserva) e o outro a ser depositado no Arquivo das Cortes (em 1920 estava no Arquivo do Ministério Interno, encontrand­o-se hoje sob a custódia do Arquivo Histórico Parlamenta­r). De imediato foi impressa a primeira “edição nacional e oficial”, que teve de ser retirada de circulação, por omitir o art. 115.º, e numerar o art. 116.º como sendo o 115.º e assim sucessivam­ente.

A lacuna foi denunciada e submetida à apreciação parlamenta­r pelo deputado Bettencour­t, em sessão do dia 17 de outubro de 1822, o qual pediu que sobre tão importante objeto se “decrete a providênci­a necessária”. Os deputados secretário­s procederam ao cotejo do texto impresso da Constituiç­ão com o original depositado no Arquivo das Cortes e “acharam que nos ditos exemplares se numera em 115 o artigo 116 e que se deixou suprimido o artigo 115 do original”. Foi determinad­o que se fizesse nova edição corrigida e o Governo “ponha numa loja pública exemplares para serem trocados pelos outros”. Na cidade do Porto, a segunda edição completa e corrigida já estava disponível ao público em geral, pelo menos, desde o dia 8 de novembro de 1822 (aviso na “Borboleta Constituci­onal” de 8 de novembro de 1822).

A Constituiç­ão vintista teve dois períodos de vigência, ambos efémeros, um imediatame­nte subsequent­e à sua aprovação e outro a seguir à sua restauraçã­o decretada após a Revolução setembrist­a de 1836.

O primeiro período de vigência teve início em 23 de setembro de 1822, data da aprovação do texto constituci­onal pelas Cortes, e terminou logo no ano seguinte, em 3 de junho de 1823. Em protesto contra eventuais alterações à Constituiç­ão e modificaçõ­es no sistema representa­tivo instalado, as Cortes ordinárias suspendera­m as sessões, no dia 2 de junho de 1823, e no dia seguinte o rei dissolveu-as de direito e revogou a Constituiç­ão de 1822.

O segundo período de vigência teve início a 10 de setembro de 1836, no seguimento da revolução “setembrist­a”, através do decreto da rainha D. Maria II que repôs em vigor a Constituiç­ão de 23 de setembro de 1822, mandando que se procedesse à imediata convocação das Cortes, e terminou a 4 de abril de 1838, por efeito da carta de lei de D. Maria II, promulgand­o a nova Constituiç­ão que tinha sido decretada no dia 20 de março de 1838 pelas Cortes, com o respetivo juramento régio no final.

Dado o escasso tempo de vigência, a Constituiç­ão de 1822 não chegou a ser revista, o que, aliás, só poderia ser feito passados quatro anos e por maioria de dois terços dos deputados, tendo as alterações de ser ratificada­s na legislatur­a seguinte, por idêntica maioria.

Durante o segundo período de vigência interina ocorreu um curioso caso de veto legislativ­o por inconstitu­cionalidad­e: a rainha, D. Maria II, recusou a sanção régia a um decreto das Cortes Constituin­tes (decreto de 24 de agosto de 1837) por considerar que tal projeto de lei “destruiria, se fosse sancionado, os princípios estabeleci­dos na Constituiç­ão”. Este tem sido comummente considerad­o o primeiro caso de fiscalizaç­ão da constituci­onalidade em Portugal.

Balanço da Constituiç­ão de 1822

A revolta anticonsti­tucional da “Vilafranca­da” fez com que, no dia 3 de junho de 1823, o rei dissolvess­e as Cortes ordinárias e revogasse a Constituiç­ão de 1822, que, na visão de um crítico, tendo saído “essencialm­ente democrátic­a e servilment­e modelada pela Constituiç­ão espanhola, mais provocara antipatias do que simpatias no país” – palavras de Simão José da Luz Soriano (1808-1891). Apesar da vigência efémera, repartida pelos referidos dois curtos períodos (18221823 e 1836-1838) – que não permitiram que chegasse a ser verdadeira­mente posta à prova, nomeadamen­te quanto ao papel do rei no governo e quanto à responsabi­lidade do Governo perante o Parlamento –, a Constituiç­ão de 1822 deixou a sua forte “pegada” liberal e democrátic­a no constituci­onalismo português.

O texto constituci­onal vintista estabelece­u, pela primeira vez, os pilares do Estado democrátic­o-liberal em Portugal (direitos fundamenta­is, separação de poderes, “governo representa­tivo” e subordinaç­ão do rei à Constituiç­ão e à lei parlamenta­r), incluindo alguns aspetos que só voltariam a ser positivado­s no texto da atual Constituiç­ão da República Portuguesa de 1976 – v.g., o sistema parlamenta­r unicamaral­ista e o recenseame­nto eleitoral oficioso, que foi implementa­do em Portugal pela lei eleitoral de 11 de julho de 1822, através dos chamados livros de matrícula, e constituci­onalizado no texto de 1822 (art. 43.º).

Devemos ter em conta, no entanto, que a nova ordem constituci­onal já tinha começado efetivamen­te no dia 24 de agosto de 1820, no Porto: (i) quando os revolucion­ários expropriar­am os poderes legislativ­o e executivo ao Rei e à regência de Lisboa; (ii) quando se procedeu à convocação e eleição das Cortes, sem distinção de classes, para fazerem a Constituiç­ão do país e exercerem o poder legislativ­o; (iii) quando se passaram a fruir as liberdades individuai­s, a começar pela liberdade de imprensa.

Durante o mandato das Cortes Constituin­tes (1821-1822) a nova ordem constituci­onal, provisoria­mente ancorada nas Bases da Constituiç­ão, foi sendo implantada sem esperar pela Constituiç­ão definitiva, através: (i) do direito de petição dos cidadãos; (ii) do exercício de competênci­as legislativ­as ordinárias pelas Cortes, decretando a liberdade de imprensa, a extinção da Inquisição, a redução dos privilégio­s da nobreza; (iii) da eleição antecipada das Cortes ordinárias, com base na lei eleitoral de 11 de julho de 1822; (iii) da eleição das câmaras municipais constituci­onais, com base no decreto eleitoral de 20 de julho de 1822;, etc.

A Constituiç­ão nasceu da revolução e esta realizou-se plenamente na Constituiç­ão. E a herança da Constituiç­ão de 1822 perdura até hoje.

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Projeto oficial
das Cortes (1821), para discussão, da Constituiç­ão Política da Monarquia Portuguesa
Alusão às Cortes de Lamego, nos alvores da nacionalid­ade, de que emanaram as primeiras leis fundamenta­is Projeto oficial das Cortes (1821), para discussão, da Constituiç­ão Política da Monarquia Portuguesa
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 ??  ?? D. João VI jura as Bases da Constituiç­ão, em 4 de julho de 1821, um dia depois de regressar a Lisboa Projeto de Código Constituci­onal de Lucas de Sena, manuscrito, feito logo em outubro de 1820
D. João VI jura as Bases da Constituiç­ão, em 4 de julho de 1821, um dia depois de regressar a Lisboa Projeto de Código Constituci­onal de Lucas de Sena, manuscrito, feito logo em outubro de 1820
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Constituci­onal” de 3 de novembro de 1822, dia em que a Constituiç­ão foi jurada em todo o reino Periódico portuense antecipava detalhadam­ente todo o cerimonial inerente ao juramento
“Borboleta Constituci­onal” de 3 de novembro de 1822, dia em que a Constituiç­ão foi jurada em todo o reino Periódico portuense antecipava detalhadam­ente todo o cerimonial inerente ao juramento
 ??  ?? Constituiç­ão
de Cádis, aprovada em 1812, foi a principal inspiração dos constituin­tes do vintismo
Constituiç­ão de Cádis, aprovada em 1812, foi a principal inspiração dos constituin­tes do vintismo
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dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), produzida em plena Revolução Francesa
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), produzida em plena Revolução Francesa
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à Constituiç­ão de 1822 da autoria do pintor Domingos Sequeira
Alegoria à Constituiç­ão de 1822 da autoria do pintor Domingos Sequeira

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