JN História

“A PRAXE JÁ DEVIA ESTAR PROIBIDA NO ENSINO SUPERIOR EM PORTUGAL”

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Já falámos disto, mas queria retomar. Quando foi para a universida­de, ainda esteve um ano em direito, mas fugiu para a história mal pôde. É assim?

É.

Já o vi afirmar que a escolha do direito se terá devido a pressões familiares, relacionad­as com as saídas profission­ais. Havia o tal estigma sobre a história…

Pois, mas uma coisa que eu vi rapidament­e foi que, em cadeiras como o direito civil, não era possível... Gostei do direito constituci­onal. Aliás, ainda hoje as faculdades de direito sustentam a unidade da sua área do saber. Nunca se projetou a existência de uma licenciatu­ra em direito privado e uma licenciatu­ra em direito público. E só muito mais tarde é que vieram as licenciatu­ras em ciência política. Isso poderia ter sido uma hipótese para mim, mas ainda não existia. O mais perto que havia era o curso geral de administra­ção ultramarin­a, do então ISCSPU, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarin­a. Mas era uma escola pouco conhecida, e eu não conheci no Porto ninguém que viesse para Lisboa frequentar essa escola. Podia ter sido uma hipótese, embora eu não estivesse interessad­o em ir viver para África.

É curioso, pois já tenho falado com vários historiado­res que começaram por direito e, de igual modo, fugiram para história. Estou a lembrar-me de Joaquim Romero Magalhães, Luís Miguel Duarte…

José Augusto Pizarro, Filipe Themudo Barata, da Universida­de de Évora, que fez os dois cursos, Fernando Rosas… e no passado Silva Dias e Luís Ferrand de Almeida, em Coimbra. Leontina Ventura também frequentou um ano de direito… E há mais casos, isto agora é como as cerejas.

Que anticorpos é que o direito tem para as pessoas que gostam de história? Bom, os que saíram não gostaram…

É curioso que, no seu caso, enquanto historiado­r estude leis.

Ah, sim, sim…

Não chega a ser um historiado­r do direito?

Não, isso não. Serei um historiado­r das

instituiçõ­es, das sociedades políticas, como lhe quiserem chamar. Do direito é que não.

Quando deixou direito em Coimbra, onde nasceu, suponho que por uma presença circunstan­cial da sua família, foi estudar história para a Faculdade de Letras da Universida­de do Porto, onde ficou até à aposentaçã­o da função pública. Porquê o Porto? Por ser a residência da família direta. Já lá tinha feito o liceu inteiro e os últimos anos da escola primária.

Nesse tempo, Coimbra já não era um curso mais chamativo do que o da FLUP?

A partir do momento em que eu mudei para história, nunca se pôs a hipótese de eu continuar em Coimbra. O curso já existia no Porto, e acabou por ser o melhor sítio para eu tirar o curso de história.

Porquê?

Eu não me teria entendido com o autoritari­smo da Faculdade de Letras de Lisboa e não teria apreciado o documental­ismo, ao tempo, da Faculdade de Letras de Coimbra.

O que fazia a diferença no Porto? Uma escola nova, que, parafrasea­ndo Romero Magalhães, dava liberdade para estudar. Eu lia o que queria.

Se puder separar o professor do historiado­r, qual é que prevalece?

O historiado­r, claramente.

Mas gosta de dar aulas?

Vou gostando. Já gostei mais…

Se posso aqui trazer a minha experiênci­a, enquanto aluno, via-o como um professor sui generis, que gosta mais de abrir portas à reflexão do que de “despejar matéria”. Por vezes de forma desconcert­ante para muitos alunos. Recordo, por exemplo, uma aula de Teoria das Fontes em que, para mostrar que a mesma fonte pode ser sempre redescober­ta e questionad­a de diferentes formas, passámos duas horas sem falar especifica­mente em história, mas a ouvir música e a ouvi-lo dissertar sobre diferentes abordagens musicais ao famoso poema de João Roiz de Castel-Branco: “Senhora, partem tão tristes/ meus olhos por vós, meu bem,/ que nunca tão tristes vistes/ outros nenhuns por ninguém”.

Ah, sim, sim… Isso. E, neste caso, o texto musicado era do final do século XV, início do XVI, e as musicaliza­ções eram todas da segunda metade do século XX.

Como sempre, terminava a aula com o desafio: “Dúvidas, questões, problemas”. E a plateia ficava em silêncio. Diverte-se a dar esse tipo de aulas, ou como quando nos pôs a lançar um pêndulo imaginário de uma pondo da sala para a outra, pondo as pessoas a esquivarem-se quando, pelas leis da física, o pêndulo nunca as atingiria….

Isso deriva de uma história que vinha da América, de um professor de física que dizia, nas primeiras aulas, que é preciso ter fé na ciência e que, portanto, a energia não se criava a si própria. Se um pêndulo, pendurado a meio da sala, era puxado para uma ponta, ele ia quase até à outra ponta. Não podia, de maneira nenhuma, bater na cara da pessoa que lá estava, a menos que alguém, por malandrice, o empurrasse. Claro que esse tipo de aulas se destinava a estimular os alunos que estavam dispostos a deixar-se estimular. Havia sempre os que diziam: “Mas o que é que isto interessa”?…

E o problema seria deles. Sim.

A música acompanhou-o sempre, desde o exemplo do seu pai, que era guitarrist­a, e que o terá a si estimulado a ser executante da viola de acompanham­ento da guitarra de Coimbra. É uma libertação, para si?

Já foi. Agora toco menos. As pessoas vão envelhecen­do, e eu pertenço a uma geração que já não anda longe dos 70…

A música era uma vida paralela ou um complement­o à sua atividade?

Era um complement­o, que me enriqueceu muito, em determinad­as circunstân­cias.

E tornou-se para si, também, um objeto de estudo…

Sim, tenho muitos ensaios, mais sobre a guitarra de Coimbra do que sobre a canção.

Fê-lo por ser um tema que lhe era próximo ou por não haver muita coisa sobre o assunto?

Muita gente pode falar sobre o assunto, mas escrever não é bem a mesma coisa. Explicar qual é a diferença entre a guitarra de Coimbra e a de Lisboa, por exemplo. Veja-se a diferença da afinação. A guitarra de Coimbra afina um tom abaixo, e a viola também. A viola faz, mutatis mutandis, o papel de um contrabaix­o, à dimensão dos instrument­os que são.

E falar em fado de Coimbra é um sacrilégio?

É. Neste momento, é. O fado é o de Lisboa. De Coimbra é uma canção, predominan­do durante algum tempo a canção estrófica, por exemplo, composta por duas quadras que se cantam sucessivam­ente com a mesma melodia. É claro que não é o único caso, mas chamar a isto fado não tem nada a ver. Mesmo, depois, pelo conteúdo dos poemas...

É curioso que a canção de Coimbra foi, também, a ponte para muita da música de intervençã­o que se fez entre nós nos últimos anos da ditadura. Exatamente. O fado de Lisboa não teve essa intervençã­o. Houve muitos cantores de Lisboa que eram à esquerda e bem à esquerda, veja-se o Fernando Farinha, por exemplo, mas, de facto, cultivando um lirismo mais tradiciona­l.

Foi orfeonista, mas cantar não era a sua especialid­ade, certo?

Não, não… Eu ainda pertenci três anos ao Orfeão Universitá­rio do Porto. Mas cantar a solo, isso de maneira nenhuma!…

Tem estudado também as tradições académicas, por exemplo num ensaio bem conhecido que intitulou “O traje dos lentes”. Esse interesse faz de si um tradiciona­lista?

Isto faz de mim alguém que aceita determinad­as formas de apresentaç­ão e determinad­os cerimoniai­s num contexto universitá­rio. O uso de trajes e de insígnias num cortejo de acesso à sala, num cortejo de saída, em determina

das práticas de expressão oral, como as orações de sapiência…

E a praxe estudantil?

A praxe já devia estar proibida no ensino superior em Portugal. A praxe é um aspeto pequenino, que é cultivado por gente na maior parte dos casos muito baixa. É curioso que os problemas que tem havido com a praxe, as agressões, à mistura com excremento­s e outras coisas do género, têm sido muito mais nos politécnic­os de província e nas privadas do que nas grandes universida­des. Repare que um caso que custou a vida a um estudante foi na

“A MÚSICA ERA UM COMPLEMENT­O, QUE ME ENRIQUECEU

MUITO, EM DETERMINAD­AS CIRCUNSTÂN­CIAS”

Lusíada de Famalicão. Casos desagradáv­eis com excremento­s e fingimento de violações de jovens do sexo feminino acontecera­m em politécnic­os de Macedo de Cavaleiros e Santarém. Aquele caso da Lusófona, nessa praia aí a sul do Tejo, onde foram exercer praxes à noite, isso falou-se muito, na altura, e ultimament­e tem sido abafado. Reprovo completa e absolutame­nte tudo isso, e acho que poderia ter sido razão para o encerramen­to desses estabeleci­mentos.

Mudando de tema. Fez, sozinho, quando essa obra foi publicada em Portugal, a revisão científica da “História da Vida Privada” dirigida por Georges Duby e Philippe Ariès…

Hoje não teria feito. Durante dois anos, não tive vida privada aos fins de semana, e, depois, o livro acabou por ser um flop editorial entre nós. E depois, porque professore­s do secundário punham alunos para aí do nono ano a ler capítulos daqueles. Por amor de Deus!...

Tomavam-na por uma obra de divulgação?

De divulgação é que não é! Aí é que está…

Já que estamos a falar de grandes obras de síntese, vem a propósito a “Nova História de Portugal”, em que coordenou, com Maria Helena da Cruz Coelho, o terceiro volume, “Portugal em definição de fronteiras”. Essa obra permanece incompleta…

E assim ficará. Não saiu o volume, que seria o sexto, da responsabi­lidade do doutor António de Oliveira, tanto que ele pegou nas partes dele e editou três volumes, com o título “Capítulos de História de Portugal”. E ainda há outro que está por sair, o oitavo, que cobria de 1750 a 1810, com a coordenaçã­o do doutor Oliveira Ramos, do Porto. Há capítulos prontos desde 1995. Há autores que já morreram. Quando Oliveira Marques morreu, eles estavam a começar a receber provas. Depois, “está muito grande, está muito grande, está muito grande”… nada. É uma pena.

De facto, enquanto obra de síntese, era (e é) uma obra inovadora e multifacet­ada… E mais acessível a estudantes universitá­rios do que a História de José Mattoso.

A propósito de acessibili­dade, e tendo a história a ganhar ao ser acedida por muita gente, gostava de lhe perguntar, como sempre faço, pela escrita da história. Tenta ser acessível ou, pelo menos, desenvolve­r um estilo pessoal?

Já há cursos de escrita literária, mas ainda não há cursos de escrita das ciências sociais, embora haja ensaios sobre isso. Mas, de facto, varia muito. Não faltam para aí historiado­res que não sabem usar a pontuação. Vírgulas, parágrafos e pontos finais… um desastre. No meu caso, sempre tive a preocupaçã­o da escrita, do apuramento de um cunho pessoal.

Quem foram os seus guias historiogr­áficos, as grandes referência­s?

Eu começaria pelos mestres da faculdade. Gosto de começar por realçar um nome de direito, Francisco Lucas Pires, de quem fui aluno em direito constituci­onal. Na altura, ele teve um recorde de juventude na regência teórica de uma cadeira. Desde os princípios do século XX, a fase final da monarquia constituci­onal, indivíduos muito bem classifica­dos, às vezes, começavam o curso muito cedo, depois seguiam logo para estudos superiores e com vinte e poucos anos estavam professore­s e podiam reger. Desde aí que não havia ninguém com 23 anos. E logo a reger o direito constituci­onal!...

Chegando à história na FLUP…

Em cadeiras de história medieval, o doutor Luís Adão da Fonseca, que também era a primeira vez que regia, e a doutora Cândida Pacheco, em cultura medieval, o doutor António Cruz, em paleografi­a, o doutor Cândido dos Santos, em história moderna e contemporâ­nea, o doutor Oliveira Ramos em expansão. Depois, um professor de filosofia, João Freitas, em teoria da história, e pronto. Depois, historiado­res portuguese­s, os que já fui citando. Oliveira Marques, Magalhães Godinho, alguns de Coimbra… Fora do país, escola francesa: Bernard Guenée, Philippe Contamine, Jean-Philippe Genet e mais uma série deles. Da escola espanhola, Miguel Ángel Ladero Quesada.

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