O FORAL “PERDIDO” DAS TERRAS DA MAIA
Encarados como espécie de certidão de nascimento, nuns casos, ou confirmação da maioridade, noutros, os ditos “forais novos” outorgados pelo rei D. Manuel I têm sido, nos últimos anos, razão de festa e exaltação da identidade em muitos concelhos portugueses. E bem. O pretexto do quinto centenário – falamos de documentos produzidos, grosso modo, no primeiro quartel do século XVI – tem servido para fomentar estudos, para vincar a importância da história local e para dar a conhecer esses diplomas, dos mais belos que a chancelaria régia nacional alguma vez produziu.
Casos há, porém, em que o documento desapareceu ou está perdido em parte incerta, como sucede com a Maia, se bem que o texto exista, à guarda da Torre do Tombo. Lá iremos. A ideia, aqui, passa por perceber como a história, assente em critérios científicos e metodológicos rigorosos (ou não seria história), pode constituir ferramenta para que as pessoas se identifiquem com o espaço que ocupam e entendam quão redutor é rotular esse espaço apenas como estando à sombra de outro: dormitório, periferia ou hinterland da cidade do Porto. E é curioso verificar, observando este caso, como a Maia não fica propriamente onde está a Maia, ou que a sede concelhia, durante a maior parte do tempo, até ao início do século XX, encontrava-se noutro sítio. E ainda, apesar dos justos e pertinentes festejos que vêm sendo promovidos pelos municípios, há que notar que os forais manuelinos não fomentaram a autonomia local, mas foram instrumentos da centralização.
Teremos de ir por partes.
A normalização dos documentos Sendo o Estado moderno algo que começou a ser construído ainda em tempos medievais, sobretudo a partir de D. Dinis, mas já desde o fortalecimento do poder régio começado pelo pai deste,
Caso do concelho vizinho do Porto, um entre muitos que vão assinalando o quinto centenário dos seus forais manuelinos,
é exemplo de gestão estratégica da história para reforçar laços identitários
Afonso III, com a disponibilidade conferida pela conquista do Algarve e pela quase fixação do território do reino, os tempos manuelinos são aqueles em que o afã centralizador mais se evidenciou, fixando o poder da Coroa acima de todos os outros. Quase em tom de anedota, pode dar-se o exemplo de, em 1503, D. Manuel ter instalado a Casa da Índia no Paço da Ribeira, em Lisboa. Ou seja, o monarca construiu a própria casa tendo a preocupação de controlar de perto o maior negócio do reino, o monopólio do fornecimento à Europa das tão preciosas especiarias. Mas o que aqui nos interessa é a organização do corpus legislativo, em que, além da produção de leis propriamente dita, se insere a reforma dos forais, naturalmente, ou a “Leitura Nova”, resultante da tradução para português desse tempo da vasta e dispersa legislação avulsa dos séculos anteriores ainda válida, muita dela escrita no peculiar e pouco clássico latim que poucos já conseguiriam decifrar ou em português arcaico, e, claro, pela sua arrumação temática, urgente face à pouco metódica arrumação até aí verificada no Arquivo Real (Torre do Tombo). A “Leitura Nova” prosseguiu ainda no reinado de D. João III.
Centremo-nos nos forais. Documentos que, no tempo medieval, sobretudo num contexto de povoamento do território, enquadravam o municipalismo, mas não só, podiam ser outorgados pela coroa ou por senhorios, laicos ou eclesiásticos (por todos, vejase o foral concedido ao Porto pelo bispo D. Hugo, ainda antes da nacionalidade), algo que a reforma manuelina desde logo alterou, pois todos os forais novos eram de outorga régia, sendo encabeçados pela célebre e longa titulatura do rei cognominado de Venturoso: “D Manuel, por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África, senhor da Guiné, da conquista e navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia”.
Como escreveu Mário Júlio de Almeida Costa, historiador do direito que escreveu o artigo “Forais” no “Dicionário de História de Portugal” (dir. Joel
Serrão), a reforma manuelina processa-se “não, porém, com o sentido de revigorar a autonomia dos municípios. Na verdade, depois da reforma empreendida pelo monarca Venturoso, os forais alcançaram um sentido diferente, perdendo o carácter de estatutos político-concelhios, para conservarem o simples aspecto de registos actualizados das isenções e encargos locais”.
No vol. V da Nova História de Portugal (1998. p 714), João José Alves Dias et al. notam que o rei fez com que “os forais novos se transformassem quase exclusivamente em pautas alfandegárias, perdendo o carácter político e diferenciador, base do poder local”.
Os trabalhos de reforma dos forais foram levados a cabo por uma comissão formada por Rui Boto, o chanceler-mor, o desembargador João Façanha e Fernão de Pina, cavaleiro da Casa Real. Este, como nota João Paulo Oliveira e Costa, biógrafo de D. Manuel I, era “filho de Rui de Pina, o cronistamor do reino, que desempenhara um papel relevante em várias missões diplomáticas no reinado de D. João II”. Fernão de Pina é, aliás, encarado como o principal obreiro da reforma dos forais, tendo integrado essa comissão até 1522, quando se tornou cronista-mor, tomando o lugar do pai, e sido premiado pelo rei com uma tença anual de 70 mil réis. Diz-nos Oliveira e Costa que Fernão de Pina visitou a maioria das localidades visadas, a fim de ouvir os povos e realizar inquirições, o que contribuiu para a morosidade do processo e levou o rei a ordenar-lhe que não visitasse todas as terras. Até 1520, foram emitidos 589 forais.
Pergaminhos desaparecidos
O Foral da Maia, que aqui damos como exemplo, insere-se, claro, nesse contexto, como veremos adiante. Mas carrega também uma aura de mistério – passe o exagero do termo –, que tantas vezes é o sal da história. Que começa por estar ligado a algo que referimos no início deste artigo, a inexistência do documento. Contrariamente a outros municípios que puderam brilhar mostrando ao público os pergaminhos qui
nhentistas do foral então recebido, sempre ricamente iluminados, em particular o primeiro fólio, a Maia nada disso tem para pôr numa vitrina. Isso, claro, terá uma explicação, sendo que a mesma ainda não foi encontrada, o que nos levará a enveredar brevemente pelo caminho das suposições.
Por carta régia emitida em 26 de agosto de 1504 – informação que integra também a redação dos vários forais, no final destes – cada foral devia ser produzido em triplicado, sendo um exemplar dirigido ao concelho em causa, outro à entidade, laica ou religiosa, detentora do senhorio da terra e a terceira para ficar à guarda do Arquivo Real. Ora, o único documento coevo que existe é aquele que está na Torre do Tombo. Porém, a questão da produção em triplicado não foi sempre levada à letra. Em muitos casos, incluindo o que aqui destacamos, o texto era copiado para os chamados livros dos forais, neste caso o respeitante ao Entre Douro e Minho. Sob o título “Foral da terra e concelho da Maia dado pelas Inquirições”, o texto surge corrido entre outros, arrancando no fundo de uma página sem decoração maior do que o singelo floreado da capitular inicial. Portanto, a legitimidade documental está lá toda, mas falta a tal riqueza visual que tão bem fica nas exposições. Este caso não é único, claro. Muitos outros forais manuelinos perderam-se, entre eles o de Penafiel, aqui relevante por outra razão: em maio de 1614, ou seja, quase cem anos após a outorga dos forais da Maia (15 de dezembro de 1519) e de Penafiel (1 de julho do mesmo ano), a Torre do Tombo emitiu uma certidão, pedida pela Câmara do Porto três meses antes, que comporta cópias manuscritas dos dois documentos.
Essa certidão, que se encontra à guarda do Arquivo Histórico Municipal do Porto (Casa do Infante), produzida já numa descontraída (digamos assim) caligrafia seiscentista, que sempre constitui um desafio maior para os paleógrafos, tem sido a base de todos os estudos até agora feitos em torno do Foral da Maia. Daí que uma das novidades mais aguardadas este ano, no âmbito das comemorações, resultará do estudo comparativo entre o Livro de Forais, na Torre do Tombo, e a certidão passada um século depois, que está a ser feito por José Augusto Maia Marques, responsável científico pelo programa, e será incluído no volume a lançar em dezembro, mês do quinto centenário.
Histórias que se contam
Voltando aos exemplares perdidos, muitas histórias podem contar-se, sendo a mais pitoresca a que se segue. O concelho da Maia era um território muito mais vasto do que a atual circunscrição municipal, abarcando freguesias que são de Valongo, outras na posse de Matosinhos, outras de Vila do Conde, outras de Gondomar. Boa parte da zona costeira a norte do Porto eram terras da Maia. Esse panorama alterou-se em 1836 com a reforma administrativa de Mouzinho da Silveira (o político liberal que extinguiu os forais), e a história que se conta é que, a páginas tantas, Matosinhos foi buscar o arquivo da Maia, usando para o efeito um longo cortejo de carros de bois. Ora, quando a documentação acabou por ser restituída à Maia, o número de carros de bois em sentido contrário seria menor. Perceber-se-á que isso, mesmo sendo verdade, nada prova. Podiam os carros ser maiores, podia o arquivo ir mais bem arrumado sobre os ditos ou, claro, a história pode não passar de invenção das gentes maiatas. O que não é invenção é o seguinte: aquando da outorga do foral, o concelho da Maia pertencia ao termo do Porto, e é muito provável que o documento concelhio tivesse ido para ali. Como sucedeu, por exemplo, com o foral de Matosinhos, que perfez 500 anos em 2014 e enriqueceu a bela exposição comemorativa com o documento quinhentista, emprestado para o efeito pelo município portuense, que o guarda no seu arquivo histórico. Mais, o facto de a certidão ter sido pedida indicia que já não se sabia dos originais no início do século XVII.
Não há aí sinal, porém, do documento maiato perdido. Seria ainda
possível ir atrás do exemplar entregue em 1519 ao senhorio das terras da Maia, que era então a família Coutinho. Também por aí não há sinal. Aliás, notam especialistas em linhagens medievais que a família dos coutinhos foi das que mais se pulverizaram ao longo dos tempos, pelo que a tarefa de busca se mostra praticamente inexequível. Outra pista a seguir seriam as coleções privadas, como é, entre outros, o caso do Banco de Portugal, que tem na sua posse 12 forais novos, retratados numa bela monografia, da responsabilidade de José Manuel Garcia e dada à estampa em 2009.
Nada. Continua a sobrar apenas a versão contida no Livro de Forais e a certidão emitida, a pedido da Câmara do Porto, no reinado de Filipe II (III de Espanha). E há ainda, no Arquivo Municipal da Maia, um traslado, pedido em 1824 (reinava D. João VI) por um grupo de moradores e lavradores da Maia, encabeçados por Manuel Francisco da Silva, eventualmente para esclarecer questões relacionadas com foros.
Identificação com o território
Pelo que vem sendo exposto, percebe-se que a não existência do documento pode ser quase tão estimulante como a posse do mesmo (não obstante, encontrar o foral seria, para os responsáveis maiatos, uma espécie de sorte grande histórico-cultural). E refletir sobre as circunstâncias e conteúdo do documento contribui, claro, para reforçar a identidade concelhia e para esclarecer questões que não passam pela cabeça da generalidade das pessoas, em especial dos maiatos.
Comece-se por Maia. Onde fica? As pessoas tenderão a referir que é o local onde se encontram os paços do concelho, isto é, o centro da Maia. Isso hoje não é mentira, mas, na essência, também não é verdade. O topónimo Maia está presente em várias localidades, como Moreira da Maia, Nogueira da Maia ou Castêlo da Maia, mas isso é coisa recente. O único lugar que tem genuinamente o nome Maia é onde hoje existe o monte do castelo (não confundir com Castêlo, de onde dista em linha reta mais de sete quilómetros), na freguesia de Águas Santas. No local conhecido, lá está, como Alto da Maia. Nesse sítio houve, de facto, um castelo, que, eventualmente, seria pouco mais do que uma torre, e é bem provável que os tais coutinhos nem ali vivessem, sendo senhores ausentes, como em tantos casos sucedia. Mas ali é que era a recebedoria do foral quinhentista.
Já a sede do concelho só foi estabelecida no sítio que hoje conhecemos em 1902, por razões não cabalmente esclarecidas. Até aí, a cabeça do concelho era o Castêlo, antes Castelejo, que só se tornou Castêlo da Maia, tal como as outras localidades “da Maia” atrás referidas, no segundo quartel do século XX. É justamente no Castêlo, onde se localiza o Museu de História e Etnologia da Terra da Maia, que será montada a grande exposição evocativa do foral, de 28 de setembro a 31 de dezembro, uma entre muitas atividades que estão em preparação, incluindo tertúlias, conferências e outras iniciativas de âmbito cultural. Atualmente, circula já pelo concelho uma exposição itinerante, dedicada ao foral de 1519, e será lançado por altura do feriado municipal, que este ano será em 15 de julho, um livro infantil dedicado ao tema, da autoria do próprio José Augusto Maia Marques.
Identificar a população com o território, em particular as pessoas que se fixaram na Maia não sendo de lá, é um claro objetivo deste programa. Uma ideia que, por esse país fora, tem dado frutos entre iniciativas culturais, de evocação histórica, de divulgação patrimonial ou até de gestão patrimonial. Do que foi a Maia, larguíssima terra de largos horizontes e referenciada desde antes da nacionalidade, terra agrária posta junto ao mar, que recebia por este foral a isenção de taxas na apanha do sargaço (entre outras anulações de foros antigos ali determinadas), o mais usado fertilizante desse tempo, passase, procurando a integração identitária das pessoas, para o que a Maia quer ser. O passado como porta de entrada para o futuro.