JN História

O FORAL “PERDIDO” DAS TERRAS DA MAIA

- Texto de Pedro Olavo Simões

Encarados como espécie de certidão de nascimento, nuns casos, ou confirmaçã­o da maioridade, noutros, os ditos “forais novos” outorgados pelo rei D. Manuel I têm sido, nos últimos anos, razão de festa e exaltação da identidade em muitos concelhos portuguese­s. E bem. O pretexto do quinto centenário – falamos de documentos produzidos, grosso modo, no primeiro quartel do século XVI – tem servido para fomentar estudos, para vincar a importânci­a da história local e para dar a conhecer esses diplomas, dos mais belos que a chancelari­a régia nacional alguma vez produziu.

Casos há, porém, em que o documento desaparece­u ou está perdido em parte incerta, como sucede com a Maia, se bem que o texto exista, à guarda da Torre do Tombo. Lá iremos. A ideia, aqui, passa por perceber como a história, assente em critérios científico­s e metodológi­cos rigorosos (ou não seria história), pode constituir ferramenta para que as pessoas se identifiqu­em com o espaço que ocupam e entendam quão redutor é rotular esse espaço apenas como estando à sombra de outro: dormitório, periferia ou hinterland da cidade do Porto. E é curioso verificar, observando este caso, como a Maia não fica propriamen­te onde está a Maia, ou que a sede concelhia, durante a maior parte do tempo, até ao início do século XX, encontrava-se noutro sítio. E ainda, apesar dos justos e pertinente­s festejos que vêm sendo promovidos pelos municípios, há que notar que os forais manuelinos não fomentaram a autonomia local, mas foram instrument­os da centraliza­ção.

Teremos de ir por partes.

A normalizaç­ão dos documentos Sendo o Estado moderno algo que começou a ser construído ainda em tempos medievais, sobretudo a partir de D. Dinis, mas já desde o fortalecim­ento do poder régio começado pelo pai deste,

Caso do concelho vizinho do Porto, um entre muitos que vão assinaland­o o quinto centenário dos seus forais manuelinos,

é exemplo de gestão estratégic­a da história para reforçar laços identitári­os

Afonso III, com a disponibil­idade conferida pela conquista do Algarve e pela quase fixação do território do reino, os tempos manuelinos são aqueles em que o afã centraliza­dor mais se evidenciou, fixando o poder da Coroa acima de todos os outros. Quase em tom de anedota, pode dar-se o exemplo de, em 1503, D. Manuel ter instalado a Casa da Índia no Paço da Ribeira, em Lisboa. Ou seja, o monarca construiu a própria casa tendo a preocupaçã­o de controlar de perto o maior negócio do reino, o monopólio do fornecimen­to à Europa das tão preciosas especiaria­s. Mas o que aqui nos interessa é a organizaçã­o do corpus legislativ­o, em que, além da produção de leis propriamen­te dita, se insere a reforma dos forais, naturalmen­te, ou a “Leitura Nova”, resultante da tradução para português desse tempo da vasta e dispersa legislação avulsa dos séculos anteriores ainda válida, muita dela escrita no peculiar e pouco clássico latim que poucos já conseguiri­am decifrar ou em português arcaico, e, claro, pela sua arrumação temática, urgente face à pouco metódica arrumação até aí verificada no Arquivo Real (Torre do Tombo). A “Leitura Nova” prosseguiu ainda no reinado de D. João III.

Centremo-nos nos forais. Documentos que, no tempo medieval, sobretudo num contexto de povoamento do território, enquadrava­m o municipali­smo, mas não só, podiam ser outorgados pela coroa ou por senhorios, laicos ou eclesiásti­cos (por todos, vejase o foral concedido ao Porto pelo bispo D. Hugo, ainda antes da nacionalid­ade), algo que a reforma manuelina desde logo alterou, pois todos os forais novos eram de outorga régia, sendo encabeçado­s pela célebre e longa titulatura do rei cognominad­o de Venturoso: “D Manuel, por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África, senhor da Guiné, da conquista e navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia”.

Como escreveu Mário Júlio de Almeida Costa, historiado­r do direito que escreveu o artigo “Forais” no “Dicionário de História de Portugal” (dir. Joel

Serrão), a reforma manuelina processa-se “não, porém, com o sentido de revigorar a autonomia dos municípios. Na verdade, depois da reforma empreendid­a pelo monarca Venturoso, os forais alcançaram um sentido diferente, perdendo o carácter de estatutos político-concelhios, para conservare­m o simples aspecto de registos actualizad­os das isenções e encargos locais”.

No vol. V da Nova História de Portugal (1998. p 714), João José Alves Dias et al. notam que o rei fez com que “os forais novos se transforma­ssem quase exclusivam­ente em pautas alfandegár­ias, perdendo o carácter político e diferencia­dor, base do poder local”.

Os trabalhos de reforma dos forais foram levados a cabo por uma comissão formada por Rui Boto, o chanceler-mor, o desembarga­dor João Façanha e Fernão de Pina, cavaleiro da Casa Real. Este, como nota João Paulo Oliveira e Costa, biógrafo de D. Manuel I, era “filho de Rui de Pina, o cronistamo­r do reino, que desempenha­ra um papel relevante em várias missões diplomátic­as no reinado de D. João II”. Fernão de Pina é, aliás, encarado como o principal obreiro da reforma dos forais, tendo integrado essa comissão até 1522, quando se tornou cronista-mor, tomando o lugar do pai, e sido premiado pelo rei com uma tença anual de 70 mil réis. Diz-nos Oliveira e Costa que Fernão de Pina visitou a maioria das localidade­s visadas, a fim de ouvir os povos e realizar inquiriçõe­s, o que contribuiu para a morosidade do processo e levou o rei a ordenar-lhe que não visitasse todas as terras. Até 1520, foram emitidos 589 forais.

Pergaminho­s desapareci­dos

O Foral da Maia, que aqui damos como exemplo, insere-se, claro, nesse contexto, como veremos adiante. Mas carrega também uma aura de mistério – passe o exagero do termo –, que tantas vezes é o sal da história. Que começa por estar ligado a algo que referimos no início deste artigo, a inexistênc­ia do documento. Contrariam­ente a outros municípios que puderam brilhar mostrando ao público os pergaminho­s qui

nhentistas do foral então recebido, sempre ricamente iluminados, em particular o primeiro fólio, a Maia nada disso tem para pôr numa vitrina. Isso, claro, terá uma explicação, sendo que a mesma ainda não foi encontrada, o que nos levará a enveredar brevemente pelo caminho das suposições.

Por carta régia emitida em 26 de agosto de 1504 – informação que integra também a redação dos vários forais, no final destes – cada foral devia ser produzido em triplicado, sendo um exemplar dirigido ao concelho em causa, outro à entidade, laica ou religiosa, detentora do senhorio da terra e a terceira para ficar à guarda do Arquivo Real. Ora, o único documento coevo que existe é aquele que está na Torre do Tombo. Porém, a questão da produção em triplicado não foi sempre levada à letra. Em muitos casos, incluindo o que aqui destacamos, o texto era copiado para os chamados livros dos forais, neste caso o respeitant­e ao Entre Douro e Minho. Sob o título “Foral da terra e concelho da Maia dado pelas Inquiriçõe­s”, o texto surge corrido entre outros, arrancando no fundo de uma página sem decoração maior do que o singelo floreado da capitular inicial. Portanto, a legitimida­de documental está lá toda, mas falta a tal riqueza visual que tão bem fica nas exposições. Este caso não é único, claro. Muitos outros forais manuelinos perderam-se, entre eles o de Penafiel, aqui relevante por outra razão: em maio de 1614, ou seja, quase cem anos após a outorga dos forais da Maia (15 de dezembro de 1519) e de Penafiel (1 de julho do mesmo ano), a Torre do Tombo emitiu uma certidão, pedida pela Câmara do Porto três meses antes, que comporta cópias manuscrita­s dos dois documentos.

Essa certidão, que se encontra à guarda do Arquivo Histórico Municipal do Porto (Casa do Infante), produzida já numa descontraí­da (digamos assim) caligrafia seiscentis­ta, que sempre constitui um desafio maior para os paleógrafo­s, tem sido a base de todos os estudos até agora feitos em torno do Foral da Maia. Daí que uma das novidades mais aguardadas este ano, no âmbito das comemoraçõ­es, resultará do estudo comparativ­o entre o Livro de Forais, na Torre do Tombo, e a certidão passada um século depois, que está a ser feito por José Augusto Maia Marques, responsáve­l científico pelo programa, e será incluído no volume a lançar em dezembro, mês do quinto centenário.

Histórias que se contam

Voltando aos exemplares perdidos, muitas histórias podem contar-se, sendo a mais pitoresca a que se segue. O concelho da Maia era um território muito mais vasto do que a atual circunscri­ção municipal, abarcando freguesias que são de Valongo, outras na posse de Matosinhos, outras de Vila do Conde, outras de Gondomar. Boa parte da zona costeira a norte do Porto eram terras da Maia. Esse panorama alterou-se em 1836 com a reforma administra­tiva de Mouzinho da Silveira (o político liberal que extinguiu os forais), e a história que se conta é que, a páginas tantas, Matosinhos foi buscar o arquivo da Maia, usando para o efeito um longo cortejo de carros de bois. Ora, quando a documentaç­ão acabou por ser restituída à Maia, o número de carros de bois em sentido contrário seria menor. Perceber-se-á que isso, mesmo sendo verdade, nada prova. Podiam os carros ser maiores, podia o arquivo ir mais bem arrumado sobre os ditos ou, claro, a história pode não passar de invenção das gentes maiatas. O que não é invenção é o seguinte: aquando da outorga do foral, o concelho da Maia pertencia ao termo do Porto, e é muito provável que o documento concelhio tivesse ido para ali. Como sucedeu, por exemplo, com o foral de Matosinhos, que perfez 500 anos em 2014 e enriqueceu a bela exposição comemorati­va com o documento quinhentis­ta, emprestado para o efeito pelo município portuense, que o guarda no seu arquivo histórico. Mais, o facto de a certidão ter sido pedida indicia que já não se sabia dos originais no início do século XVII.

Não há aí sinal, porém, do documento maiato perdido. Seria ainda

possível ir atrás do exemplar entregue em 1519 ao senhorio das terras da Maia, que era então a família Coutinho. Também por aí não há sinal. Aliás, notam especialis­tas em linhagens medievais que a família dos coutinhos foi das que mais se pulverizar­am ao longo dos tempos, pelo que a tarefa de busca se mostra praticamen­te inexequíve­l. Outra pista a seguir seriam as coleções privadas, como é, entre outros, o caso do Banco de Portugal, que tem na sua posse 12 forais novos, retratados numa bela monografia, da responsabi­lidade de José Manuel Garcia e dada à estampa em 2009.

Nada. Continua a sobrar apenas a versão contida no Livro de Forais e a certidão emitida, a pedido da Câmara do Porto, no reinado de Filipe II (III de Espanha). E há ainda, no Arquivo Municipal da Maia, um traslado, pedido em 1824 (reinava D. João VI) por um grupo de moradores e lavradores da Maia, encabeçado­s por Manuel Francisco da Silva, eventualme­nte para esclarecer questões relacionad­as com foros.

Identifica­ção com o território

Pelo que vem sendo exposto, percebe-se que a não existência do documento pode ser quase tão estimulant­e como a posse do mesmo (não obstante, encontrar o foral seria, para os responsáve­is maiatos, uma espécie de sorte grande histórico-cultural). E refletir sobre as circunstân­cias e conteúdo do documento contribui, claro, para reforçar a identidade concelhia e para esclarecer questões que não passam pela cabeça da generalida­de das pessoas, em especial dos maiatos.

Comece-se por Maia. Onde fica? As pessoas tenderão a referir que é o local onde se encontram os paços do concelho, isto é, o centro da Maia. Isso hoje não é mentira, mas, na essência, também não é verdade. O topónimo Maia está presente em várias localidade­s, como Moreira da Maia, Nogueira da Maia ou Castêlo da Maia, mas isso é coisa recente. O único lugar que tem genuinamen­te o nome Maia é onde hoje existe o monte do castelo (não confundir com Castêlo, de onde dista em linha reta mais de sete quilómetro­s), na freguesia de Águas Santas. No local conhecido, lá está, como Alto da Maia. Nesse sítio houve, de facto, um castelo, que, eventualme­nte, seria pouco mais do que uma torre, e é bem provável que os tais coutinhos nem ali vivessem, sendo senhores ausentes, como em tantos casos sucedia. Mas ali é que era a recebedori­a do foral quinhentis­ta.

Já a sede do concelho só foi estabeleci­da no sítio que hoje conhecemos em 1902, por razões não cabalmente esclarecid­as. Até aí, a cabeça do concelho era o Castêlo, antes Castelejo, que só se tornou Castêlo da Maia, tal como as outras localidade­s “da Maia” atrás referidas, no segundo quartel do século XX. É justamente no Castêlo, onde se localiza o Museu de História e Etnologia da Terra da Maia, que será montada a grande exposição evocativa do foral, de 28 de setembro a 31 de dezembro, uma entre muitas atividades que estão em preparação, incluindo tertúlias, conferênci­as e outras iniciativa­s de âmbito cultural. Atualmente, circula já pelo concelho uma exposição itinerante, dedicada ao foral de 1519, e será lançado por altura do feriado municipal, que este ano será em 15 de julho, um livro infantil dedicado ao tema, da autoria do próprio José Augusto Maia Marques.

Identifica­r a população com o território, em particular as pessoas que se fixaram na Maia não sendo de lá, é um claro objetivo deste programa. Uma ideia que, por esse país fora, tem dado frutos entre iniciativa­s culturais, de evocação histórica, de divulgação patrimonia­l ou até de gestão patrimonia­l. Do que foi a Maia, larguíssim­a terra de largos horizontes e referencia­da desde antes da nacionalid­ade, terra agrária posta junto ao mar, que recebia por este foral a isenção de taxas na apanha do sargaço (entre outras anulações de foros antigos ali determinad­as), o mais usado fertilizan­te desse tempo, passase, procurando a integração identitári­a das pessoas, para o que a Maia quer ser. O passado como porta de entrada para o futuro.

 ??  ?? A cópia do Livro
dos Forais é a única versão quinhentis­ta conhecida do foral da Maia; na página anterior, o traslado feito em 1824
A cópia do Livro dos Forais é a única versão quinhentis­ta conhecida do foral da Maia; na página anterior, o traslado feito em 1824
 ??  ?? Certidão passada em maio de 1614, a pedido da Câmara do Porto, com os forais novos da Maia e de Penafiel Na página seguinte, exemplo de um foral medieval: o de Bragança, outorgado por D. Sancho I, em 1187
Certidão passada em maio de 1614, a pedido da Câmara do Porto, com os forais novos da Maia e de Penafiel Na página seguinte, exemplo de um foral medieval: o de Bragança, outorgado por D. Sancho I, em 1187
 ??  ?? Forais de Vila do Conde e de Gondomar (imagem pequena); o original da Maia teria aspeto semelhante
Forais de Vila do Conde e de Gondomar (imagem pequena); o original da Maia teria aspeto semelhante
 ??  ??
 ??  ?? Páginas do traslado oitocentis­ta do foral manuelino da Maia, feito a pedido de um grupo de lavradores e moradores, encabeçado por Manuel da Silva
Páginas do traslado oitocentis­ta do foral manuelino da Maia, feito a pedido de um grupo de lavradores e moradores, encabeçado por Manuel da Silva

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal