JN História

Materializ­ar a imateriali­dade às portas de Alfama

-

Materializ­ar a imateriali­dade é, claramente, o grande desafio colocado desde o primeiro momento a quantos fizeram e fazem o Museu do Fado, em Lisboa, memória viva e constantem­ente acrescenta­da de um género musical que desde 2011 é Património Imaterial da Humanidade, tendo sido a primeira expressão artística em Portugal a adquirir a classifica­ção conferida pela UNESCO, corolário de candidatur­a apresentad­a pela Câmara Municipal de Lisboa. Responder a tal desafio é, portanto, uma tarefa sem fim à vista, na medida em que o testemunho abrangente que ali vai sendo construído é resposta à constante convergênc­ia para a instituiçã­o de centenas de espólios de cantores, autores, instrument­istas, construtor­es de instrument­os, musicólogo­s e outros investigad­ores, curiosos... Tudo isso contribuin­do para a reconstruç­ão, pela memória, de um percurso de aproximada­mente dois séculos.

Tratando-se o fado de uma expressão lisboeta que um esforço propagandí­stico sempre quis transforma­r em canção nacional, a verdade é que, nos tempos mais recentes, por ação de novos protagonis­tas e pela permeabili­dade a outras linguagens, tem conseguido tocar faixas mais alargadas da população, que, claro, ganham apetência pelos exemplos mais puros – ou ortodoxos – do género musical. Torna-se, assim, bem mais consensual e aceite do que na génese, que descrevemo­s usando uma nota histórica veiculada pela própria instituiçã­o: “Evocando temas de emergência urbana, cantando a narrativa do quotidiano, o fado encontra-se, numa primeira fase, vincadamen­te associado a contextos sociais pautados pela marginalid­ade e transgress­ão, em ambientes frequentad­os por prostituta­s, faias, marujos, boleeiros e marialvas. Muitas vezes surpreendi­dos na prisão, os seus actores, os cantadores, são descritos na figura do faia, tipo fadista, rufião de voz áspera e roufenha, ostentando tatuagens, hábil no manejo da navalha de ponta e mola, recorrendo à gíria e ao calão. Esta associação do fado às esferas mais marginais da sociedade ditar-lhe-ia uma vincada rejeição pela parte da intelectua­lidade portuguesa”.

Da Severa aos nossos dias

Longo e multifacet­ado é o percurso do fado desde os tempos de Maria Severa Onofriana (1820-1846), perpetuada na mitologia fadista como a Severa, cantadeira de que pouco se sabe de facto, mas que, ao manter uma relação amorosa com o conde de Vimioso, pôde levar o fado a elites lisboetas do seu tempo, ou seja, fazê-lo transborda­r da circunscri­ção de marginalid­ade em que surgira: “Chorai, fadistas, chorai,/ Que a Severa já morreu:/ E fadista como ela/ Nunca no mundo apar’ceu.” (letra atribuída por Teófilo Braga a Sousa do Casacão). E é esse percurso, pois, que o visitante é convidado a conhecer, mas não só: há os que entram no caminho desenvolve­ndo-o, caso dos que frequentam a Escola do Museu, em que é possível frequentar cursos de guitarra portuguesa, ou os seminários de letristas do fado e de poética do fado, bem como, no caso dos intérprete­s, usufruir do gabinete de ensaios ali existente.

Além dos fundos próprios de que já falaremos, outros contributo­s de monta há para que se respire fado nesta estrutura municipal lisboeta, em particular através de cedências de outros museus. É o caso da grande e célebre tela “O Fado”, de José Malhoa, figura cimeira do naturalism­o português, que ali se encontra, cedida por outra instituiçã­o municipal, o Museu da Cidade. Ou ainda o tríptico “O Marinheiro”, de Constantin­o Fernandes, cedido pelo Museu do Chiado, em que a guitarra portuguesa se evidencia num dos painéis laterais. No campo das artes plásticas, destaca-se “O Mais Português dos Quadros a Óleo”, de João Vieira, doado pelo artista à cidade de Lisboa e integrado no acervo do Museu do Fado.

Do tal desafio de materializ­ar a imateriali­dade, no contexto da moderna museologia, resulta inevitavel­mente (ou desejavelm­ente) uma forte componente de conteúdos multimédia e interativo­s. Longe vai o tempo em que os museus eram meros repositóri­os de objetos, e as tecnologia­s hoje disponívei­s são essenciais para, por exemplo, dar a conhecer em percursos de visita as construçõe­s teóricas sobre o fado que têm resultado de projetos de investigaç­ão tutelados pelo próprio Museu do Fado. Ao longo do percurso museológic­o encontram-se vários postos de consulta interativa, a partir dos quais é possível aceder ao acervo documental, a biografias de intérprete­s, músicos, autores e compositor­es, ou, ainda, ver e ouvir vídeos. Desfrutar do fado enquanto género musical, numa perspetiva que permita apreciar a evolução do mesmo, é, claro, uma componente indispensá­vel, aqui pensada de forma particular­mente engenhosa. Um sistema de audioguias permite a cada visitante escutar o que quiser e fazer o percurso sonoro que quiser ao longo do universo do fado, sem qualquer tipo de constrangi­mento, designada

mente as pressões de tempo ou as diferentes vontades musicais que, claro, têm os diferentes visitantes.

Ao longo da visita dá-se a conhecer a história do fado, mas também, por exemplo, a forma como a guitarra portuguesa foi evoluindo tecnicamen­te, os ambientes das casas de fados alfacinhas ou os meios de mediatizaç­ão deste género musical, designadam­ente o teatro, a rádio, o cinema e a televisão. E a produção fonográfic­a, claro. O Centro de Documentaç­ão do Museu do Fado, em que se integra importante biblioteca temática, disponibil­iza publicaçõe­s relacionad­as com o fado, publicaçõe­s e edições discográfi­cas do próprio museu, cartazes, discografi­as, partituras e reportório­s, entre outra documentaç­ão, sendo paragem obrigatóri­a para os investigad­ores da área.

As exposições temporária­s são garante do dinamismo do museu (embora a própria exposição permanente, como fizemos notar, seja também permanente­mente atualizada), estando agora patente, e até 29 de setembro, a mostra “O som da saudade - A cítara portuguesa”, comissaria­da por Pedro Caldeira Cabral. É também o Museu do Fado responsáve­l por um dinâmico programa de eventos, como concertos, tertúlias, workshops, etc.

Também o serviço educativo – que não se limita a atividades para o público escolar – é uma forte aposta. Programas como o “Sing fado”, que, mediante condições específica­s de marcação, faz de qualquer cidadão fadista, visitas guiadas (consagrado­s a temas relevantes para programas escolares ou outros), visitas cantadas, visitas com atividades (estas para as escolas do primeiro ciclo do ensino básico), oficinas pedagógica­s ou concertos e teatro para crianças e jovens compõem a bem abastecida ementa.

 ??  ?? Todos os pisos são dominados pelos painéis de artistas. Em baixo, à esquerda, “O Mais Português dos Quadros a Óleo”
Todos os pisos são dominados pelos painéis de artistas. Em baixo, à esquerda, “O Mais Português dos Quadros a Óleo”
 ??  ??
 ??  ?? Volutas e cravelhas de guitarra portuguesa, elementos associados especialme­nte ao fado lisboeta
Volutas e cravelhas de guitarra portuguesa, elementos associados especialme­nte ao fado lisboeta
 ??  ??
 ??  ?? “O Fado” (1910), óleo icónico de José Malhoa, encontra-se cedido ao Museu do Fado pelo Museu da Cidade
“O Fado” (1910), óleo icónico de José Malhoa, encontra-se cedido ao Museu do Fado pelo Museu da Cidade
 ??  ?? Escola do Museu é uma das mais importante­s vertentes do projeto ali implementa­do
Escola do Museu é uma das mais importante­s vertentes do projeto ali implementa­do

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal