Do século da humilhação ao advento da hegemonia
Há pouco mais de 100 anos, num tempo em que a China se sentia humilhada pelo Ocidente, cresceu entre os europeus a ideia do perigo amarelo, Perto de ser a potência N.º 1, como será o “país do meio” condicionado por esse passado?
Na transição do século XIX para o XX houve na Europa, em especial entre os britânicos, um sentimento popular de “perigo amarelo”. O escritor M. P. Shiel publicou, em 1898, uma série de ficções sob o título The Empress of the Earth: The Tale of the Yellow War, depois congregadas no livro The Yellow Danger. Anos depois, outro britânico, Sax Rohmer, criou o diabólico Dr. Fu Manchu (The Mystery of Dr. Fu-Manchu, 1912-13), arquétipo da ameaça chinesa ao Ocidente. Estava-se na era imperial e colonial. Os interesses ocidentais rivalizavam entre si e projetavam-se no Extremo-Oriente. Enfrentavam então resistência na China, governada pelo imperador Guangxu, da dinastia Qing. A Rebelião dos Boxers (18991901), nome dado pelos ocidentais à sociedade secreta chinesa Yihequan, contra a presença estrangeira, foi um episódio maior da expansão colonial ocidental. A revolta foi instigada e apoiada pela imperatriz viúva Tseu-Hi (ou Cixi, consoante a transliteração dos caracteres chineses), mulher carismática e ambiciosa que, de facto, governava o (fragilizado) império chinês.
O tempo desse “perigo amarelo” foi percebido (e profundamente interiorizado) na China como um período de fraqueza e humilhações às mãos do Ocidente e do Japão. O século da humilhação, na expressão nacionalista chinesa, designa o período entre a primeira guerra do ópio (1839-1842), em que foram derrotados pelos britânicos, e a fundação da República Popular da China (1949), por Mao Tsé-Tung. Múltiplos episódios de atritos e guerras há neste período de 110 anos. A segunda guerra do ópio (1856-60) travada com britânicos e franceses, a primeira guerra sino-japonesa pelo controlo da Coreia (1894-95) e a invasão e ocupação japonesa da Manchúria (1931-45) estão entre os mais traumáticos. Mas, para os chineses, o mais humilhante terá sido o esmagamento pelos ocidentais da Rebelião dos Boxers, com ocupação da capital. Inversamente, no imaginário ocidental fin de siècle, isso deu plausibilidade ao enredo de M. P. Shiel. Aí, o malévolo Dr. Yen How (de ascendência sino-japonesa e defensor de uma “liga de raças amarelas”) planeava enfraquecer os europeus com conflitos entre si, para depois varrer centenas de milhões de “homens amarelos” para uma Europa debilitada. No Ocidente, hoje, poucos se lembrarão do episódio histórico ou da ficção de Shiel. Na China, a memória de uma coligação militar ocidental agressora, a que se juntou o Japão (a Aliança das Oito Nações), continua viva.
Há um profundo sentido histórico entre as elites chinesas. Como o século da humilhação influencia o comportamento do país, hoje, é uma questão em aberto. No discurso oficial, a China está comprometida com uma ascensão pacífica e é afastada qualquer pretensão de hegemonia. Mas é simplista ficar por aí. No 19.º Congresso do Partido Comunista da China (PCC), em 2017, foram estabelecidas metas ambiciosas para os dois centenários da primeira metade do século XXI: em 2021, assinala-se a fundação do PCC, em 23 de julho de 1921, sob o impacto da revolução bolchevique russa; em 2049 evocar-se-á a fundação do atual Estado chinês (1 de outubro de 1949). Ainda que não seja essa a formulação oficial, no implícito, a China já deverá ser, então, o n.º 1 a nível mundial. Em qualquer caso, as tensões ligadas à ascensão de um Estado com a dimensão e poder da China são evidentes, com ou sem ambições hegemónicas. Internamente, parece haver duas visões. A dos que veem o século da humilhação como um passado encerrado e pensam que a China deverá assegurar a estabilidade internacional, procurando, apenas, uma pragmática adaptação das instituições e práticas existentes; e a dos que reconhecem nesse passado lições relevantes num mundo ainda dominado por ocidentais, em especial pelos EUA. Nesta última ótica, o objectivo chinês será reconfigurar o sistema internacional à sua maneira. Ver-se-á qual das duas visões se irá impor e com que consequências.