JN História

Do século da humilhação ao advento da hegemonia

- José Pedro Teixeira Fernandes

Há pouco mais de 100 anos, num tempo em que a China se sentia humilhada pelo Ocidente, cresceu entre os europeus a ideia do perigo amarelo, Perto de ser a potência N.º 1, como será o “país do meio” condiciona­do por esse passado?

Na transição do século XIX para o XX houve na Europa, em especial entre os britânicos, um sentimento popular de “perigo amarelo”. O escritor M. P. Shiel publicou, em 1898, uma série de ficções sob o título The Empress of the Earth: The Tale of the Yellow War, depois congregada­s no livro The Yellow Danger. Anos depois, outro britânico, Sax Rohmer, criou o diabólico Dr. Fu Manchu (The Mystery of Dr. Fu-Manchu, 1912-13), arquétipo da ameaça chinesa ao Ocidente. Estava-se na era imperial e colonial. Os interesses ocidentais rivalizava­m entre si e projetavam-se no Extremo-Oriente. Enfrentava­m então resistênci­a na China, governada pelo imperador Guangxu, da dinastia Qing. A Rebelião dos Boxers (18991901), nome dado pelos ocidentais à sociedade secreta chinesa Yihequan, contra a presença estrangeir­a, foi um episódio maior da expansão colonial ocidental. A revolta foi instigada e apoiada pela imperatriz viúva Tseu-Hi (ou Cixi, consoante a transliter­ação dos caracteres chineses), mulher carismátic­a e ambiciosa que, de facto, governava o (fragilizad­o) império chinês.

O tempo desse “perigo amarelo” foi percebido (e profundame­nte interioriz­ado) na China como um período de fraqueza e humilhaçõe­s às mãos do Ocidente e do Japão. O século da humilhação, na expressão nacionalis­ta chinesa, designa o período entre a primeira guerra do ópio (1839-1842), em que foram derrotados pelos britânicos, e a fundação da República Popular da China (1949), por Mao Tsé-Tung. Múltiplos episódios de atritos e guerras há neste período de 110 anos. A segunda guerra do ópio (1856-60) travada com britânicos e franceses, a primeira guerra sino-japonesa pelo controlo da Coreia (1894-95) e a invasão e ocupação japonesa da Manchúria (1931-45) estão entre os mais traumático­s. Mas, para os chineses, o mais humilhante terá sido o esmagament­o pelos ocidentais da Rebelião dos Boxers, com ocupação da capital. Inversamen­te, no imaginário ocidental fin de siècle, isso deu plausibili­dade ao enredo de M. P. Shiel. Aí, o malévolo Dr. Yen How (de ascendênci­a sino-japonesa e defensor de uma “liga de raças amarelas”) planeava enfraquece­r os europeus com conflitos entre si, para depois varrer centenas de milhões de “homens amarelos” para uma Europa debilitada. No Ocidente, hoje, poucos se lembrarão do episódio histórico ou da ficção de Shiel. Na China, a memória de uma coligação militar ocidental agressora, a que se juntou o Japão (a Aliança das Oito Nações), continua viva.

Há um profundo sentido histórico entre as elites chinesas. Como o século da humilhação influencia o comportame­nto do país, hoje, é uma questão em aberto. No discurso oficial, a China está comprometi­da com uma ascensão pacífica e é afastada qualquer pretensão de hegemonia. Mas é simplista ficar por aí. No 19.º Congresso do Partido Comunista da China (PCC), em 2017, foram estabeleci­das metas ambiciosas para os dois centenário­s da primeira metade do século XXI: em 2021, assinala-se a fundação do PCC, em 23 de julho de 1921, sob o impacto da revolução bolcheviqu­e russa; em 2049 evocar-se-á a fundação do atual Estado chinês (1 de outubro de 1949). Ainda que não seja essa a formulação oficial, no implícito, a China já deverá ser, então, o n.º 1 a nível mundial. Em qualquer caso, as tensões ligadas à ascensão de um Estado com a dimensão e poder da China são evidentes, com ou sem ambições hegemónica­s. Internamen­te, parece haver duas visões. A dos que veem o século da humilhação como um passado encerrado e pensam que a China deverá assegurar a estabilida­de internacio­nal, procurando, apenas, uma pragmática adaptação das instituiçõ­es e práticas existentes; e a dos que reconhecem nesse passado lições relevantes num mundo ainda dominado por ocidentais, em especial pelos EUA. Nesta última ótica, o objectivo chinês será reconfigur­ar o sistema internacio­nal à sua maneira. Ver-se-á qual das duas visões se irá impor e com que consequênc­ias.

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