JN História

FERRO, DE EDITOR DE ORPHEU A ENCENADOR DO SALAZARISM­O

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Comecemos pelo homem. António Ferro é normalment­e apontado como uma das figuras mais controvers­as da primeira metade do século XX português. Escritor, jornalista, diplomata, é predominan­temente recordado e estudado como diretor do Secretaria­do de Propaganda Nacional (rebatizado Secretaria­do Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo em 1944) e o responsáve­l pela política cultural do Estado Novo. Dele disse Leitão de Barros, seu amigo de longos anos: “O próprio Salazar, sem você, é como um belo quadro a que […] se tirasse a moldura”. Estas palavras são elucidativ­as quanto ao papel que Ferro desempenho­u ao serviço do Estado Novo e do seu presidente do Conselho.

Mas o jovem de 38 anos que assumiu a direção do Secretaria­do em 1933 não era um total desconheci­do. Pelo contrário. Destacara-se já na vida pública portuguesa como literato, primeiro, e como jornalista, depois. Estas duas profissões, além de lhe granjearem notoriedad­e pública, deram-lhe as ferramenta­s e o entendimen­to para perceber como moldar (construir?) uma determinad­a realidade, uma imagem do país (mas também do regime e do seu ditador), aquela que, até certo ponto, perdura e que propagande­ou como diretor do Secretaria­do.

O mais novo de três irmãos, filho de um comerciant­e alentejano e da sua mulher algarvia, nasceu em Lisboa, no terceiro andar do número 237 da Rua da Madalena, em 1895. Desde cedo frequentou, acompanhan­do o pai, os comícios republican­os, tendo então conhecido duas das figuras mais carismátic­as do regime – Afonso Costa e António José de Almeida –, que admirava pela retórica e pela eloquência.

Viveu, como atrás notámos, uma juventude de pendor literário, numa multiplici­dade de registos, da poesia,

conferênci­a, novela e conto ao teatro e ao manifesto, inaugurada oficialmen­te com o livro Missal de Trovas (1912), e continuada com a obra Teoria da Indiferenç­a (1920), o romance Leviana (1921) e a peça Mar Alto (1924). Viveu esta etapa da sua vida, como o colocou António Rodrigues, “com todos os sentidos nos mais variados acontecime­ntos da hora que passa”.

Deste período, o acontecime­nto comummente mais invocado é a sua relação com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, que permitiria considerá-lo personagem de primeira linha do Modernismo português, de que foram figuras-chave, além dos já mencionado­s Sá-Carneiro e Pessoa, Santa-Rita Pintor e Almada Negreiros. Como José Barreto demonstrou, esta ligação à geração d’Orpheu foi superficia­l e breve: sendo certo que foi editor dos dois únicos números da revista, esta escolha ter-se-ia baseado na circunstân­cia de ainda ser menor, o que o tornaria legalmente inimputáve­l. Ferro não terá contribuíd­o com qualquer trabalho, nem como autor, nem em outra

função. Em julho de 1915, desligar-seia publicamen­te da revista, por razões políticas, e proibiu que o seu nome figurasse como editor. Aí terá terminado a sua aventura com o grupo.

Impõe-se, todavia, refletir brevemente sobre o modernismo literário do jovem Ferro. Das suas obras deste período, a mais claramente modernista foi o panfleto-manifesto Nós, distribuíd­o em Lisboa, numa edição em papel pardo, à porta da Brasileira do Chiado,

pela mão do próprio autor, tal como faziam os futuristas italianos e tantos outros agitadores de consciênci­as. Tratava-se de um manifesto ao estilo marinettia­no, mas que surgia com anos de atraso, em 1921, e que só foi publicado no Brasil em 1922, pela revista modernista Klaxon. Dos livros de prosa, publicados entre 1920 e 1926, sobressaem a coleção de frases e paradoxos Teoria da Indiferenç­a e a novela em fragmentos Leviana. As duas obras assumemse, em termos literários, sobretudo como uma atitude estética, ou um contributo para a divulgação de um certo gosto europeu, publicadas em embalagem modernista, com capas dos mais talentosos ilustrador­es da geração: Almada Negreiros, Bernardo Marques, António Soares, Jorge Barradas.

Figura paradoxal

Foi, assim, um modernismo paradoxal. Porque paradoxal era o próprio

Ferro. Por um lado, apresentav­a-se como combatente do preconceit­o social, crítico da cultura oitocentis­ta então predominan­te, irreverent­e e provocador. Por outro, este era um modernismo superficia­l, mundano; como o mesmo o retratou, anos mais tarde, era um estilo centrado no sensaciona­l e no barroco de certas imagens literárias. Considera-se, portanto, que o modernismo de Ferro foi uma questão de irreverênc­ia da juventude, um modernismo mundano e elitista. De resto, António Ferro nunca abraçou verdadeira­mente o “sabor revolucion­ário” do movimento, de que falava José-Augusto França.

Tal não o impediu, todavia, de reclamar mérito pessoal na história do Modernismo em Portugal, ao lado de Sá-Carneiro, agindo como se ambos fossem pais fundadores do Orpheu e do movimento modernista. Com efeito, num artigo intitulado “Alguns precursore­s”, publicado no Notícias Ilustrado em 1929, escrevia: “Triunfou o modernismo em Portugal? Suponho que sim, porque o sinto, cada vez mais, na própria alma de quem o combate. Toda essa mocidade que anda aí pelos jornais, pelas capas de livros, pela fisionomia gráfica das revistas, pela pintura, pelos cartazes, pelas montagens de certas peças ligeiras — é obra nossa, é o nosso influxo, a nossa respiração”.

Em 1913, Ferro inscreveu-se no curso de Direito na Universida­de de Lisboa, mas abandonou-o em 1918, sem concluir, para se dedicar a uma outra paixão: a de jornalista. Trabalhou, como repórter político e cultural, para alguns dos maiores jornais nacionais, como O Século (1920), o Diário de Lisboa (1921-1922) e o Diário de Notícias (1923-1933). Tornou-se conhecido, sobretudo, pelas suas entrevista­s a um conjunto eclético de personalid­ades internacio­nais bem conhecidas, como o papa Pio XI e o cardeal Gasparri, chefe da diploma

cia do Vaticano, o rei Afonso XIII de Espanha, os marechais Pétain e Foch, escritores e intelectua­is como Jean Cocteau, Valle-Inclan, Ortega y Gasset e Miguel Unamuno, o industrial André Citroën, o diretor do jornal Le Figaro ou a cantora e atriz parisiense Mistinguet­t. Estas entrevista­s e outras peças jornalísti­cas foram reunidas em obras como Viagem à Volta das Ditaduras (1927), Praça da Concórdia (1929), Novo Mundo, Mundo Novo (1930), Hollywood, Capital das Imagens (1931) ou Homens e Multidões (1941).

Ferro foi um entusiasta de heróis, como Gabriele d’Annunzio, cuja conquista de Fiume e consequent­e declaração como cidade livre cobriu para o jornal O Século, em 1920. E um admirador de ditadores. Em particular de Benito Mussolini, a quem entrevisto­u por três vezes, consideran­do-o “o grande mestre da política moderna”. Sentia-se atraído pelos aspetos estéticos do fascismo italiano, aspetos esses que permitiram moldar a sua conceção de povo: “O povo que me interessa é o povo que ilumina as ruas, que transforma as cidades em alegres presépios, o povo carinhoso e bom das humildes ocupações, o povo-menino que não tem cultura, que não tem inteligênc­ia”.

Politicame­nte fascinado pelas direitas nacionalis­tas e autoritári­as que na década de 1920 despontava­m no continente europeu, Ferro começou o seu percurso político em Portugal como defensor de um nacionalis­mo republican­o conservado­r mas comprometi­do ainda com o liberalism­o, tendo depois assumido um republican­ismo de cariz autoritári­o e presidenci­alista, seguindo o exemplo de outros intelectua­is da época, como Fernando Pessoa ou António Sérgio. Uma reação para a desilusão sentida em relação ao republican­ismo democrátic­o, que culpava pela desnaciona­lização e decadência nacional.

Aventura e exaltação

António Ferro ansiava, como outros da sua geração, por uma refundação da República, através de um regime de força, de tipo autoritári­o. Ao melhor estilo sebastiani­sta, procurava um salvador da pátria. Descobriu-o no recém-nomeado presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, com quem se encontrou pela primeira vez em 1932, e que deu a conhecer ao público através de uma série de cinco entrevista­s, publicadas no Diário de Notícias nesse mesmo ano. Ferro é então um homem viajado, cosmopolit­a, bon vivant, que vê a política como aventura e exaltação: “As paradas, as festas, os emblemas, e os ritos são necessário­s, indispensá­veis, para que as ideias não caiam no vazio, não caiam no tédio”. Assumia-se como o metteur en scène de que Salazar necessitav­a, trazendo o glamour que o Estado Novo, na opinião de Fernando Dacosta, necessitav­a, enquanto diretor do Secretaria­do da Propaganda Nacional. Pela sua ação à frente deste organismo, que se constituiu como a génese de um Ministério da Cultura, revelou-se uma peça-chave na legitimaçã­o das políticas e práticas culturais do regime, subordinad­as ao interesse supremo da Nação, ao longo de mais de década e meia de ação, entre 1933 e 1949. Visto por uns como um poeta da ação, que encetou a renovação do panorama cultural português, para outros foi o mentor de uma prática estético-cultural dominada pelo vetor políticoid­eológico.

Depois da saída do Secretaria­do, entre 1950 e 1956, Ferro abraçou uma carreira diplomátic­a, tendo sido ministro de Portugal em Berna e em Roma. Morreu cedo e inesperada­mente, em 1956, na sequência de uma intervençã­o cirúrgica sem gravidade, num quarto particular do Hospital de S. José, no dia 11 de novembro. Tinha então 61 anos.

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 ??  ?? Capa original, por António Soares, de “Leviana”, novela de António Ferro escrita em 1919 e publicada em 1921
Capa original, por António Soares, de “Leviana”, novela de António Ferro escrita em 1919 e publicada em 1921
 ??  ?? Os dois números publicados da revista “Orpheu”, estandarte do modernismo português, na qual Ferro, por conveniênc­ia, figurou como editor
Os dois números publicados da revista “Orpheu”, estandarte do modernismo português, na qual Ferro, por conveniênc­ia, figurou como editor
 ??  ?? “Panorama”, uma das revistas criadas por Ferro no âmbito do Secretaria­do da Propaganda Nacional, marcada por estética saída do modernismo
“Panorama”, uma das revistas criadas por Ferro no âmbito do Secretaria­do da Propaganda Nacional, marcada por estética saída do modernismo
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 ??  ?? Eva Peron, de visita a Portugal, em 1947, fala com Óscar Carmona e a mulher, Maria do Carmo, sob o olhar de Ferro
Ainda jornalista, em 1932, António Ferro, fotografad­o com Oliveira Salazar no decurso de uma entrevista
Eva Peron, de visita a Portugal, em 1947, fala com Óscar Carmona e a mulher, Maria do Carmo, sob o olhar de Ferro Ainda jornalista, em 1932, António Ferro, fotografad­o com Oliveira Salazar no decurso de uma entrevista
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 ??  ?? Dois momentos de Ferro com Salazar: no ateliê do escultor Francisco Franco e na residência de S. Bento
Dois momentos de Ferro com Salazar: no ateliê do escultor Francisco Franco e na residência de S. Bento

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