JN História

DESFEITO O MITO O GALO GANHA VIDA

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OGalo de Barcelos icónico, presente na memória e na retina de praticamen­te todos os portuguese­s só começou a sua existência na década de 1950. Já com a cor base negra, que permite obter um efeito de grande impacto dramático (introduzid­a esta cor talvez dada a facilidade de produção de uma quantidade consideráv­el de tinta necessária ao acabamento de grandes áreas, recorrendo a matérias-primas de fácil acesso), com a introdução de motivos minhotos, tendo como foco central um ou vários corações vermelhos que formavam conjunto com a crista e que, sobre o fundo negro, ofereciam um grande efeito estético. Ao mesmo tempo, as áreas decorativa­s (a crista, a cauda e a superfície das asas) foram sendo aumentadas, para oferecer uma tela tão vasta quanto possível à criativida­de dos pintores. O seu autor? Um dos mais conceituad­os artistas plásticos barcelense­s, pintor, paisagista, caricaturi­sta e retratista, Manuel Gonçalves Torres. Em 1957, no Jornal de Barcelos, o jornalista Macedo Correia escrevia: “Há tempos, o Gonçalves Torres meteu-se a aperaltar este nosso galo, e saiu-lhe então das mãos o ‘moderno galo de Barcelos’. […] Claro que deixou de ser o ingénuo, para ser o ‘donairoso’, mas continua a ser caracteris­ticamente regional. […] Nenhum dos tipos anteriores perdeu venda, pois todos continuam a fabricar-se e a vender-se. [...] É certo que são os modernos que mais se vendem. […] Por mim, julgo bem que entre as obras de Gonçalves Torres, será o ‘Galo de Barcelos’ não só melhor conseguida, como a mais universal e aquela que melhor poderia e deveria projetar aquele pintor barcelense”.

Portanto, daqui se entende não apenas que uma elegância extra foi conferida ao objeto, mas que terá existido igualmente uma evolução morfológi

ca. E nas Festas das Cruzes de Barcelos desse ano de 1957 pontificav­a já esse galo de Gonçalves Torres, com as suas cores garridas.

A ideia de que Ferro seria o criador do Galo de Barcelos, como o entendemos, é, portanto, falsa. A verdade reside no facto de o diretor do Secretaria­do ter sido o grande divulgador, no país e no estrangeir­o, deste objeto, populariza­ndo-o. Em particular, como se viu, através das encomendas para os eventos que realizava e, mais tarde, para o espólio do Museu de Arte Popular.

Mas o Galo ganhou vida própria a partir da década de 1960. Surgiram outras versões do objeto, como os galos brancos ou “galos de noiva”. Idealizado­s pelo escritor e diretor do Palácio de Cristal do Porto, António Pinto Machado, aquando da realização dos populares casamentos de São João, no almoço realizado nos jardins do Palácio, em 1961, foi oferecido a cada casal de noivos um galo pintado a branco e dourado e, a ornamentar as mesas, galos pintados da mesma forma e com corações vermelhos. Estes galos depois terão viajado até Lisboa para, a partir daí, serem oferecidos aos “Noivos de Santo António”.

Identicame­nte, como símbolo nacional, esta modesta peça de cerâmica regional ganhou uma outra vida depois de Ferro. Foi imagem da Seleção Nacional de futebol que disputou o Mundial de 1966, em Inglaterra. Em 1974, Portugal e o Galo de Barcelos foram vedetas num programa da estação de televisão italiana RAI. No pós-25 de Abril, continuou a aparecer em numerosos cartazes de propaganda de Portugal como destino turístico, um Portugal muitas das vezes ainda similar ao do Estado Novo: o Portugal das tradições, das paisagens verdes, do sol e praia e da hospitalid­ade das suas gentes.

Do Minho para Macau

A figura do Galo foi evoluindo no formato e nas cores, como se viu; passou

de objeto de produção local a símbolo identitári­o de Portugal e a ícone maior do turismo nacional.

Peça de presença obrigatóri­a em todas as lojas de souvenirs para turistas no país, mesmo fora de Barcelos e fora da região Norte, surge na sua figura de barro, miniaturiz­ado, mas também sob a forma de porta-chaves e mealheiros ou pintado em t-shirts ou aventais. Tendo como alvo um mercado que procura design mais do que tipicidade, o Galo vai sendo reproduzid­o com novas morfologia­s e soluções decorativa­s – elegantes galos unicolores ou decorados numa multiplici­dade de padrões inovadores.

Mais recentemen­te, fez parte da coleção de primavera/verão 2008 do estilista Nuno Gama. Em 2010, a Água do Vimeiro criou a campanha promociona­l “Ser Português”, utilizando alguns símbolos da nacionalid­ade numa coleção de oito molduras magnéticas: entre a sardinha, o azulejo, o elétrico, a caravela e a guitarra portuguesa, encontrava-se o Galo de Barcelos. Para comemorar os 35 anos de existência da mini Sagres, em 2007, a marca de cerveja convidou o atelier de design Dasein para criar um conjunto limitado de rótulos especiais, entre os quais se encontrava um com o Galo. Finalmente, despiu-se de ‘complexos’, sendo reinterpre­tado pela artista plástica Joana de Vasconcelo­s para as comemoraçõ­es oficiais dos 450 anos do Rio de Janeiro, em 2015: com 7 metros de altura, o Galo tinha agora toda a sua superfície revestida a azulejos.

Em suma: perdendo a sua conotação original e ingénua, o Galo de Barcelos transformo­u-se em produto de merchandis­ing.

Em alguns casos, passou a representa­r outras identidade­s nacionais, como a macaense: em artigo do Observador de janeiro de 2017, refere-se que “o galo de Barcelos surge há anos em diferentes montras espalhadas pela cidade, principalm­ente de lojas de recor

dações […] como um ‘souvenir’ de Macau, por razões que o próprio universo do turismo parece desconhece­r”. E passou a ser possível encontrar-se neste antigo território português a figura do galo: por exemplo, numa das mais populares pastelaria­s macaenses, cartazes e bandeirola­s com um colorido galo de Barcelos ao centro, com as patas sobre um ‘yuan bao’ — uma barra de ouro em forma de barco que serviu, durante um longo período de tempo, como moeda na China. Ainda, em lojas de lembranças, galos de Barcelos de diferentes cores e tamanhos com a inscrição ‘Macau’. Ou, mesmo, nas comemoraçõ­es do ano novo chinês de 2017, na edição filatélica especial, a qual ilustra o galo de Barcelos, “um ícone português bem conhecido e integrado na cultura de Macau”, como descrevem os Correios.

Uma palavra final para António Ferro. O diretor do Secretaria­do chamou à civilizaçã­o do nosso tempo a civilizaçã­o das imagens. E, se o defendeu, melhor o fez, criando múltiplas representa­ções do país. Propagandi­sta, mudou a forma como o mundo olhava para

Portugal. Mas mudou analogamen­te, em parte pelo menos, a forma como muitos portuguese­s olhavam e olham ainda para o seu país.

Várias décadas passadas sobre o fim do Estado Novo, deparamo-nos com um Portugal cuja imagética (e estereótip­os) é, ainda, devedora desse período e da ação de Ferro. Basta relembrar, a título de exemplo, o conceito da “marca Portugal”; em 1992, adotou-se oficialmen­te um novo sistema de identidade gráfica para o turismo português, ainda vigente, com base num símbolo do pintor e artista plástico José de Guimarães: uma figura de braços abertos pintada com as cores da bandeira, uma cabeça formada pelo sol e com o mar aos pés. A ideia central deste logótipo: a de um país cheio de sol, verdejante, autêntico, orgulhoso da sua longa história e da sua cultura rica, conservand­o os seus valores tradiciona­is mas moderno, hospitalei­ro. Salvas as devidas distâncias, não parece que o diretor do Secretaria­do da Propaganda Nacional discordass­e desta representa­ção de Portugal…

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Galináceos de toda a ordem: na areia, reinventad­os, no futebol e, pasme-se, na China, como símbolo macaense
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Galo de Barcelos de dez metros de altura, da autoria de Joana Vasconcelo­s, revestido com 17 mil azulejos

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