GALOS RESSUSCITADOS A CAMINHO DE SANTIAGO
Então e a lenda? Muitos associarão a figura cerâmica à lenda do galo de Barcelos, talvez com veemência. Assim é com as lendas. Mas não é bem assim... Já lá vamos. Nas páginas anteriores, a historiadora Carla Ribeiro desmonta e clarifica superiormente o percurso do Galo de Barcelos, enquanto símbolo fabricado de um outro conceito produzido e acarinhado pelo Estado Novo, a “portugalidade”. E deixa bem claras as raízes daquilo a que chama a “estatuária galiforme”, remetendo-nos para cultos antigos, eventualmente celtas, e para a simbologia do triunfo da luz (o dia, anunciado pelo canto do galo) sobre as trevas (a noite), do bem sobre o mal. Tal simbologia surge com igual leitura no Cristianismo, que teve na incorporação de calendários e rituais pagãos um dos segredos da sua expansão, mas também com uma dimensão escatológica, isto é, respeitante ao fim dos tempos e à segunda vinda à Terra de Jesus Cristo. Também o Islão associa esta ave à luz, havendo no Hadith (a tradição associada a ditos e feitos do profeta, algo na linha do que o Talmude é para o Judaismo) referência ao que Maomé terá dito: “O galo branco é meu amigo: é inimigo do inimigo de Deus”.
Em termos de simbologia nacional – não oficial, bem entendido –, Portugal chegou bem tarde a esta capoeira, passe a fácil analogia, atendendo a que é muito mais antiga a associação do galo a França (símbolo de raiz gaulesa) e à Valónia, o sul da Bélgica, francófono e germanófono, cuja bandeira mostra um galo escarlate sobre fundo amarelo.
Ora, se aí encontramos pontos de contacto, ou mesmo a expansão em rede de representações de uma crença praticamente linear, não há espanto em esperar que o mesmo se passe em relação às lendas, por mais arreigadas que estejam nas populações e por mais que os poderes locais as agitem como estandartes identitários. Veja-se o exemplo
das tripas à moda do Porto, para as quais há fundamentações lendárias sem qualquer tipo de referência documental que as apoie, quando é fácil verificar que se trata de uma especialidade gastronómica com variações não muito significativas em diversos locais da Europa. Uma iguaria muito mais antiga do que episódios históricos como a conquista de Ceuta (1415) ou o Cerco do Porto (18321833), a que é comummente associada.
O mesmo com a lenda do galo de Barcelos, relacionada com o Caminho de Santiago, que não deve ser confundida com o galo de que tratam estas páginas.
Milagres aparentados
São conhecidas algumas variantes da lenda do galo de Barcelos, mas a história que se conta é sempre a mesma. Seja um taberneiro que ocultou um talher de prata no saco de um peregrino, para o acusar de furto; seja um galego condenado por crime que não havia praticado, mas não esclarecido; seja a associação de um romeiro galego a um crime de morte do qual estava inocente – coincide sempre a condenação à forca de um homem que seguia para Compostela e ali, em Barcelos, clamou inocência perante alguma autoridade local (v.g. um juiz), fazendo-o quando esse oficial estava à mesa, preparando-se para comer um galo assado, e clamando que o dito galo se levantaria e cantaria em sinal da sua inocência. Em todas as versões, claro, a ave depenada e devidamente cozinhada ergue-se da assadeira, transformada em galo fartamente emplumado e de crista altiva, cantando como se visse o Sol despontar no horizonte. Em todos os casos, a injustiça é reparada e o condenado posto em liberdade, sendo que numa delas é já encontrado com a corda ao pescoço, mas tendo esta quebrado ou o nó ficado lasso, poupando-o e funcionando como uma espécie de milagre complementar.
No caso de Barcelos, esta lenda é associada a um cruzeiro medieval que se ergue junto ao Paço dos Condes, que a tradição diz ter sido mandado erguer pelo próprio romeiro condenado, em louvor à Virgem e a Santiago apóstolo, da primeira vez que regressou à vila depois do episódio.
Não é de admirar, portanto, a associação da lenda medieva à figura cerâmica do Galo de Barcelos, reforçada com a forte expansão que esta conheceu no século XX.
Mas que dirão disto as gentes de Santo Domingo de la Calzada, município da comunidade autónoma de La Rioja, a mais conhecida região vinhateira espanhola – encravada entre Castela e Leão, Aragão, Navarra e o País Basco –, cruzada pelo Caminho Francês, desde a Idade Média a mais importante rota de peregrinação a Santiago de Compostela?
A história que ali se conta, colocada algures no século XIV, é centrada numa família alemã que ia em peregrinação ao túmulo do apóstolo (outra lenda, mas deixemos isso de lado) e decidiu pernoitar numa estalagem da terra. Pai, mãe e filho, um jovem de seu nome Hugonell, ali cearam, e o descendente despertou a paixão ardente e instantânea de uma jovem que servia no estabelecimento. De noite, apesar dos insistentes avanços desta, Hugonell não se mostrou disposto a corresponder ao desejo da rapariga, que, despeitada, decidiu vingar-se. Como o fez? Colocou uma taça de prata no bornal do jovem alemão e denunciou-o às autoridades pelo furto desse objeto. Apanhado em flagrante, Hugonell foi condenado de imediato à forca. Quando a sentença estava a ser executada, pai e mãe rezaram com enorme fervor a Santiago. Ao aproximarem-se do que julgavam ser já o corpo inerte do filho, este falou-lhes, dizendo que o santo o havia poupado à morte. Podiam ter todos fugido, mas os pais de Hugonell decidiram ir contar o sucedido ao corregedor, que se preparava para jantar. E este, rindo do que lhe contavam, disse que o rapaz estava tão vivo como o galo e a galinha que ele se preparava para comer. Dito e feito, as aves levantaram-se das assadeiras, cacarejando estridentemente.
“En Santo Domingo de la Calzada, donde cantó la gallina después de asada” é um dito que os peregrinos ouvem quando por ali andam. No interior da catedral, o milagre é permanentemente evocado de forma sui generis, aí existindo, quase como se altar fosse, um galinheiro em que permanecem sempre um galo e uma galinha vivos. E brancos.
Onde nasceu a lenda, se nestas duas localidades ou noutro sítio qualquer, será algo tão difícil de discernir como a precedência do ovo ou da galinha no curso dos tempos. Claro é que ambos os casos mostram como Santiago de Compostela se impunha como destino de peregrinação na Europa medieval, alternativa às grandes metas da Cristandade, Jerusalém e Roma, e prevalente sobre outros santuários então populares. Com milagres desses pelo caminho, a santidade era mais que certa.